sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Lucky Luke de Mathieu Bonhomme em destaque na revista do Clube Tex Portugal

Para fechar este ano que amanhã termina, deixo-vos com o texto que escrevi sobre a excelente homenagem feita por Mathieu Bonhomme a Morris e ao seu Lucky Luke, por acasião dos 70 anos da série. Um texto que, embora prevista para sair no nº 4 da dita revista, acabaria por só sair neste nº 5, por uma questão de espaço. O que permitiu que o meu texto tivesse a companhia de um excelente artigo de Jorge Magalhães sobre Lucky Luke em Portugal, formando os nossos dois textos um mini-dossier sobre os 70 anos do cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra.
Resta-me desejar um Excelente Ano de 2017 aos leitores deste blog. Eu prometo regressar logo na primeira semana de Janeiro, com a primeira parte dqa já habitual lista das 10 Melhores BDs que li no ano que findou. Até lá, boas entradas em 2017!


O HOMEM QUE MATOU LUCKY LUKE, 
OU O WESTERN SEGUNDO MATHIEU BONHOMME

O mais popular cowboy da BD europeia, Lucky Luke, comemora em 2016 setenta anos de aventuras, sendo por isso dois anos mais velho do que o “nosso” Tex, que Gian Luigi Bonelli e Aurelio Gallepini criaram em 1948.
Criado por Maurice de Bevére, mais conhecido por Morris, o cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, fez a sua estreia a 7 de Dezembro de 1946 no almanaque da revista Spirou, com a história Arizona 1880. Uma primeira história em que ainda é bem visível a influência da animação dos Estúdios Disney, mas o traço de Morris rapidamente ganhou outra personalidade e sofisticação, que se estendeu também aos argumentos, sobretudo no período áureo, de pouco mais de 20 anos, em que René Goscinny, um dos criadores de Astérix, se ocupou também do argumento de Lucky Luke.
A morte de Goscinny, em 1997, pôs fim a essa fase incontornável e, embora Morris continuasse a desenhar a série até à sua morte, em 2001, os argumentistas que com ele colaboraram, fracassaram claramente na espinhosa tarefa de fazer esquecer Goscinny…
O desaparecimento de Morris, não significou o fim do seu pobre cowboy solitário, com as aventuras de Lucky Luke a continuarem a sair com regularidade, com Achdé a assegurar o desenho de forma competente e extremamente fiel ao traço de Morris e o argumento a ser entregue a escritores como Laurent Guerra, Daniel Pennac e Tonino Benacquista, com créditos firmados em outras áreas, da televisão à literatura. Escritores que, sem deslumbrar, vieram ainda assim dar outro folego à série, mas sem nunca se afastarem da matriz de Morris.
Finalmente, aproveitando os setenta anos do herói, a Editora Lucky Comics, decidiu seguir o exemplo da Dupuis, com a série Spirou e dar carta-branca aos autores para criarem um Lucky Luke à sua imagem, à semelhança do que fez por exemplo Emile Bravo com o Spirou, no magnífico Journal D’un Ingenú, da série Spirou vu par…. É assim que vai nascer L’Homme qui Tua Lucky Luke, o livro que motiva este texto e que assinala o regresso de Mathieu Bonhomme ao Western, depois de Texas Cowboys, ao lado de Lewis Trondheim.
Nascido em Paris, em 1973, no seio de uma família ligada às artes, Bonhomme formou-se em Artes Aplicadas e iniciou-se na BD como assistente de Christian Rossi, o extraordinário ilustrador que substitui Jean Moebius Giraud como desenhador da série Jim Cutlass, o “outro” western a que o desenhador do Tenente Blueberry esteve ligado.
Grande fã do Western, Bonhomme logo no início da sua carreira abordou o género através das ilustrações que fez para o livro Contes et Recits de la Conquête de l’Ouest, editado pela Nathan em 2001, mas os seus trabalhos em BD, desde L’Age de la Raison, que lhe valeu o prémio do melhor primeiro álbum, no Festival de Angoulême de 2003, até às séries Marquis d’Anaon, Le Voyage d’Esteban e Messire Guillaume, que lhe valeu outro prémio de Angoulême, em 2010, abordavam outras épocas e outros temas, embora a aventura, mais adulta em Le Marquis D’Anaon e mais juvenil em Esteban, esteja sempre presente.
A ideia de escrever e desenhar uma aventura de Lucky Luke, não nasceu com esta oportunidade do aniversário, pois o autor é o primeiro a afirmar que “há mais de dez anos que pedia às edições Dupuis que me dessem uma oportunidade de o fazer. (…) quando fiz a enésima tentativa, não sabia que eles já estavam a reflectir na preparação dos 70 anos do personagem em 2016. Quando me apercebi que estavam receptivos à ideia, não esperei mais e mandei-lhes um dossier que acabou por os convencer. Só faltava formalizar tudo e escrever um argumento sólido e… que agradasse à editora.”
Para a disponibilidade demonstrada pela Dupuis, contribuiu, e muito, as provas já dadas no género por Bomhomme na série Texas Cowboys, criada a meias com Lewis Throndeim, a pedido do próprio Bonhomme, que queria que o prolífico argumentista lhe escrevesse um Western. Pré-publicada em capítulos na revista Spirou, como um suplemento destacável, Texas Cowboys recria a estrutura da Dime Novels, os romances de cordel que recontavam a história do Oeste, de uma forma bastante romanceada, em que a lenda se sobrepõe à História. O protagonista principal, Harvey Drinkwater, é precisamente um jornalista de Nova Iorque que vai para Forth Worth, no Texas, em busca de histórias sobre o Oeste Selvagem e que, mais do se limitar a contar as aventuras dos outros, prefere viver também ele essas aventuras, ou lado de lendas do Oeste como Sam Bass, Wyatt Earp, ou Bat Masterson.
Uma mistura entre história e lenda que encontramos também nas aventuras de Lucky Luke, personagem de ficção que se cruza frequentemente nas suas aventuras com figuras com existência real, como o Juiz Roy Bean, Jesse James, Calamity Jane, ou Billy The Kid e que, Bonhomme, a solo desta vez, aqui reinventa, de forma simultaneamente respeitosa e inovadora.
Esse respeito pela história e pela lenda (que muitas vezes se confundem) do Oeste é um elemento fundamental do trabalho de Bonhomme que refere: “queria verdadeiramente fazer um Western clássico. Queria que o Lucky Luke fosse um verdadeiro cowboy, pois ao longo do tempo, o humor tornou-se dominante na série”.
Também em termos gráficos, o trabalho de Bonhomme está mais próximo do realismo estilizado habitual nos seus trabalhos, do que do estilo mais caricatural de Morris. Como o próprio reconhece, “limitei-me a arredondar as formas do meu desenho para estar num registo mais semi-realista. Não estou muito longe do que fiz na série Esteban. Aliás, a cara de Esteban está bastante próxima da do meu Lucky Luke.”
Mas isso não o impediu de respeitar o passado de Lucky Luke, arranjando até uma explicação bastante engenhosa para o facto de o cowboy ter deixado de repente de fumar na BD, uma decisão motivada pelas exigências dos produtores de uma série de animação de Lucky Luke, de modo aos desenhos animados poderem passar na televisão americana, mas que valeu a Morris um prémio da Organização Mundial de Saúde, em 1988.
Talvez o aspecto em que Bonhomme tenha sido mais fiel ao trabalho de Morris, seja na utilização da cor. Uma cor mais narrativa e impressionista do que naturalista, que opta pela aplicação de manchas de cores planas, como o vermelho, castanho, ou azul, para destacar certos elementos e que ajuda a guiar o olhar do leitor através de uma cena, o que se revela particularmente eficaz nas cenas de multidão. Assim, o mesmo personagem pode aparecer inteiramente colorido a vermelho, amarelo, ou azul, na mesma página, ou todos os personagens podem aparecer coloridos num registo monocromático, que não tem qualquer relação óbvia com a cor dominante do cenário.
A ideia inicial de Bonhomme para a sua história, passava por revisitar o mito de OK Corral, mas dessa primeira versão apenas restou a personagem de Doc Wednesday, claramente inspirada na figura real de Doc Holliday, optando Bonhomme por contar uma história em que Lucky Luke é contratado pela população de Froggy Town para investigar o assalto a uma diligência feito por um índio e acaba por se confrontar com os diversos membros da família que domina essa cidade.
Uma história que começa precisamente com Lucky Luke abatido pelas costas no meio da enlameada rua principal de Froggy Town, com o leitor a descobrir, através do longo flash-back que se segue, o que realmente aconteceu desde a chegada de Lucky Luke à cidade, numa noite de tempestade.
Uma cena perfeitamente coreografada, que evoca no leitor a parte final do filme Imperdoável, de e com Clint Eastwood. Referência que está igualmente presente na imagem da capa do livro, em que o poncho que Lucky Luke usa não pode deixar de evocar o inconfundível vestuário do homem sem nome que Eastwood interpretou na trilogia dos dólares de Sergio Leone, cineasta a quem Bonhomme vai também recorrer na planificação do principal duelo da história, onde não faltam os grandes planos serrados dos olhos dos homens que estão prestes a bater-se e a alternância campo/contracampo. Elementos narrativos que Leone usava como ninguém e que acentuam o dramatismo dos momentos que precedem o duelo. Mas Eastwood e Leone não são as únicas referências cinematográficas presentes neste livro, que vai beber também a O Homem que Matou Liberty Valance, de John Ford, em termos de argumento.
Tão devedor da BD como do cinema, L'Homme qui Tua Lucky Luke, mais do que uma bela homenagem a Morris e ao seu Lucky Luke e uma maneira perfeita de comemorar os setenta anos do cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, que também é, revela-se um excelente Western de papel, na linha dos grandes clássicos cinematográficos do género, que Bonhomme na sua juventude, devorou nas salas de cinema.
Texto publicado originalmente no nº 5 da revista do Clube Tex Portugal, em Dezembro de 2016 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Boas Festas!

Com esta ilustração de Hergé, para uma capa da revista Tintin, no ano em que se completam 70 anos sobre a criação da revista, aqui vão os meus votos de um Feliz Natal e de um excelente ano de 2017, para todos os leitores deste blog. Embora deseje já um Bom Ano, conto ainda aqui publicar mais um post, antes de 2016 chegar ao fim. Mas até lá... Feliz Natal!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Sandman 11: A Vigília

E assim chegou ao fim a publicação de uma das mais importantes colecções de BD já lançadas neste país e, com ela, também os textos que sobre ela escrevi no Público. Para mim, foi um prazer espacial trabalhar na série Sandman, até por ver chegar ao fim uma edição que ficou interrompida nos meus tempos da Devir. Um agradecimento à Levoir e ao Público por me permitirem participar neste belo projecto, quase de serviço público aos leitores  portugueses de BD.

DEPOIS DO SONHO TERMINAR

Sandman – Vol. 11
A Vigília
Argumento – Neil Gaiman
Desenhos –  Michael Zulli, John J. Muth e Charles Vess
Quinta, 15 de Dezembro
Por + 11,90€
Com a publicação de A Vigília, na próxima quinta-feira chega ao fim a publicação da série original do Sandman, de Neil Gaiman, corrigindo assim mais uma grave lacuna na edição de BD em Portugal.
Apesar da morte de Morfeu no volume anterior a saga de Sandman não terminou aí. Em A Vigília, Gaiman dá tempo aos leitores e a si próprio, de se despedirem condignamente das personagens que os acompanharam durante uma década. Por isso, A Vigília é centrado no velório e no funeral de Morfeu, cuja vida é celebrada e evocada por ocasião da sua morte, numa cerimónia solene a que assistem literalmente todas as personagens da série.
A ilustrar esta história em três partes e o consequente epílogo, está Michael Zulli, um extraordinário desenhador cujo traço os leitores já tinham podido apreciar em outros volumes da série, mas que aqui mostra todo o seu talento em estado puro, sem uma passagem à tinta que roubasse a espontaneidade do seu desenho inicial a lápis. Aproveitando a evolução tecnológica, A Vigília foi um dos primeiros casos de um livro colorido e impresso a partir dos desenhos a lápis, mantendo intacta toda a subtileza do sumptuoso desenho de Zulli. Um traço de grande realismo e maior elegância onde são bem evidentes as influências da pintura pré-rafaelita e simbolista.
Se a história de Morfeu e a sua substituição por um novo Mestre dos Sonhos que, na essência continua a ser o mesmo Sadman embora, na verdade não o seja, tem o final perfeito nos episódios ilustrados por Zulli, havia ainda duas histórias que Gaiman queria contar, que funcionam como continuações e codas de Lugares Instáveis e Sonho de uma Noite de Verão.
Na primeira, Jon J. Muth ilustra, usando tinta-da-china, pincel e colagens, um conto oriental que reúne o velho e novo Sandman. E finalmente, tal como ficou estabelecido em Sonho de Uma Noite De Verão, Shakespeare entrega ao Senhor dos Sonhos a segunda da duas peças que lhe prometeu, em troca da imortalidade para o seu trabalho. Essa peça é, obviamente, A Tempestade, que foi a última peça que Shakespeare escreveu sozinho.
Um final perfeito para uma série magnífica, que continuará viva na cabeça e nos sonhos dos leitores.
Publicado originalmente no jornal Público de 09/12/2016

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Sandman 10: As Benevolentes - Parte 2


O ÚLTIMO COMBATE DE MORFEU

Sandman – Vol. 10
As Benevolentes - Parte 2
Argumento - Neil Gaiman
Desenhos – Marc Hempel, Teddy Kristiansen, Richard Case
Quinta, 08 de Dezembro
Por + 11,90€
Com a publicação do 10º volume de Sandman, que chega aos quiosques na próxima quinta-feira, chega ao fim a mais épica (e a maior) das histórias de Sandman, As Benevolentes, cujo inevitável desfecho vem confirmar a dimensão trágica do percurso de Morfeu, o Mestre dos Sonhos.
Um dos segredos do sucesso de Gaiman em Sandman, para além do seu talento a articular inúmeras personagens e diferentes histórias, dentro de uma narrativa global complexa, como se fosse a coisa mais simples do mundo, é a sua capacidade invulgar de harmonizar os elementos e a mitologia da tragédia clássica, com a dimensão mundana do dia-a-dia, a brevidade da vida e a importância do amor. No fundo, Os eternos e as outras divindades e criaturas mitológicas que Gaiman convocou para a saga de Sandman, são profundamente humanos nos seus comportamentos e atitudes.
Como bem refere o académico e escritor Frank McConnell, no prefácio do volume anterior: “É esta a premissa básica de As Benevolentes, e da própria saga de Sandman: a lenta realização que Sonho tem da intensidade da vida mortal, e da sua inescapável implicação nessa mesma intensidade. As Benevolentes, as Erínias, as Euménides, caçam-no ao longo deste livro porque ele matou o seu filho, Orfeu: claro, a pedido dele, mas mesmo assim matou-o. E com esse acto, Sonho entrou no tempo, escolha, culpa e remorso - entrou na esfera do que é humano.
No capítulo onze, depois de abandonar a segurança do Domínio do Sonho, a fada Nuala, que o invocou, faz-lhe a pergunta que poderá ser o segredo central da história. “Tu... queres que elas te castiguem, não queres? Queres ser castigado pela morte de Orfeu.”
E a vinheta seguinte, a resposta de Morfeu, é simplesmente a cara dele, vista de perto, sem palavras, uma cara torturada. (E já agora, um efeito que, nem um romance, nem um filme, poderiam conseguir com a mesma força, já que o romance teria de descrever a cara dele, e o filme apenas nos poderia mostrar um actor a tentar imitar aquela máscara sombria do remorso. O comic, com o estilo de desenho brilhantemente redutor de Marc Hempel, dá-nos a coisa em si.)”
E neste último parágrafo, McConnell alerta-nos para outro inegável talento de Neil Gaiman que, para além do grande escritor que a sua carreira de romancista demonstra, é alguém que tem um profundo conhecimento dos mecanismos narrativos da Banda Desenhada e que domina a linguagem da BD como poucos. A prová-lo está a escolha de Marc Hempel para desenhar esta história. Hempel, não sendo o mais vistoso, ou o mais talentoso dos desenhadores da série, bem longe disso, é alguém cujo estilo único se adequava perfeitamente ao tipo de história que Gaiman queria contar. E é precisamente esse casamento perfeito entre o texto e a imagem que torna única a linguagem da Banda Desenhada.
Texto publicado originalmente no jornal Público de 02/12/2016

sábado, 3 de dezembro de 2016

NOS TRINTA ANOS DE DYLAN DOG - Parte III: Uma Nova Era


Como prometido, aqui fica a parte final do artigo sobre o trigésimo aniversário da série Dylan Dog, que saiu inicialmente na revista Bang! numa versão bastante mais reduzida. A primeira parte do texto pode ser lida aqui e a segunda, aqui. Espero que gostem  do artigo e que em breve possamos ver Dylan Dog editado em Portugal. Afinal, os principais trabalhos de Alan More também só tiveram direito a edição nacional, trinta ou mais anos depois da sua publicação original...

Embora continuasse a ser a segunda mais popular série da Bonelli, logo a seguir ao cowboy Tex, a popularidade do detective do oculto foi caindo e a própria editora apercebeu-se de uma certa estagnação criativa, que levou a uma remodelação da série, coordenada por Roberto Recchioni. Recchioni que tinha sido o argumentista de Mater Morbi, história magnificamente ilustrada por Massimo Carnevale, que é considerada como uma das melhores aventuras de Dylan Dog da última década, contou com a bênção e supervisão do próprio Sclavi, no seu projecto de renovação da série.
Uma renovação de que os leitores italianos puderam ver os primeiros resultados em finais de Outubro de 2013, a partir do Dylan Dog nº 338, em que o inspector Bloch finalmente se reforma e vai viver para Wickedford, uma pequena e pacata cidade de província que, como seria de esperar nesta série, esconde terríveis segredos. A substituir Bloch na Scotland Yard temos o inspector Tyron Carpenter, que para além de ser contra a colaboração informal de Dog com a polícia, o que vem introduzir um elemento de tensão novo na série, conta com uma assistente paquistanesa e muçulmana, Rania Rakim que usa véu, dando um toque mais multicultural a uma série em que as novas tecnologias têm uma presença cada vez mais visível, sendo evidente a preocupação dos escritores em adaptarem o mais possível as aventuras de Dylan Dog à realidade do mundo contemporâneo. Assim não só o próprio Dylan, sempre avesso a essas tecnologias, passa a usar um smartphone, como ganha um novo Némesis em John Ghost, um milionário proprietário da Wolfconn, a empresa que domina o mercado dos smartphones, (ou seja, uma espécie de versão maléfica de Steve Jobs) que surge pela primeira vez no nº 341, onde há ainda espaço para uma curiosa homenagem a Alan Moore.
Também é visível uma evolução a nível dos argumentistas, com mais mulheres a juntarem-se a Paola Barbato, que se vai afirmando como a principal escritora da série. É o caso de Sílvia Mericone e Rita Poretto, duas fãs da série, que cresceram a ler Dylan Dog e que agora escrevem as suas aventuras.
Outra das características da série, é o multiplicar de títulos, que faz que todos os meses haja dois, ou mais títulos novos de Dylan Dog à venda nos quiosques italianos. Assim, além da série mensal e das suas reedições, os fãs da fase anterior à actual remodelação têm a revista Maxi Dylan Dog Old Boy, um título quadrimestral de quase 300 páginas, com histórias passadas na época em que Bloch ainda estava no activo. Outro título interessante é o trimestral Dylan Dog Color Fest, uma edição temática a cores, composta por histórias curtas, normalmente desenhadas por artistas pouco habituais na série, como o argentino Enrique Breccia, ou o italiano Giuseppe Camuncoli, que trabalha para a Marvel. Outro título que foi reformulado, foi o clássico Almanaque della Paura, uma publicação anual que foi substituída pelo Dylan Dog Magazine. Também um dos títulos mais antigos, o Dylan Dog Speciale, publicado anualmente, abrigou nos últimos dois anos a história Pianeta dei Morti, uma saga iniciada no Dylan Dog Color Fest, escrita por Alessandro Bilotta, cuja acção se passa vinte anos no futuro, num planeta ameaçada por uma grande invasão de zombies, de que Groucho, que Dylan Dog não teve coragem de matar, foi o paciente zero.
Trinta anos depois da sua primeira aventura, Dylan Dog, está presente em força nos quiosques e nas colecções dos jornais, ao mesmo tempo que ganha um espaço cada vez maior nas livrarias. Nos jornais, depois do relativo fiasco da Collezione Storica a Colori, lançada com os jornais La Reppublica e L’Espresso, que recolhia por ordem cronológica, em versões coloridas, as histórias da revista original (e que já tinham sido reeditadas por diversas vezes, em diferentes formatos, o que pode explicar a fraca aderência dos leitores), a parceria com La Gazzetta dello Sport, iniciada com a colecção I Colori della Paura, que recolhe as histórias de Dylan Dog Color Fest , correu bastante melhor, tendo terminado no nº 54, por já não haver mais histórias para publicar, de tal maneira que o maior jornal desportivo italiano voltou imediatamente a colaborar com a Bonelli numa nova colecção Il Nero della Paura, que começou a sair em Julho deste ano, no mesmo dia em que terminou a colecção anterior. Nas livrarias, onde as histórias de Dylan Dog já estavam presentes através das recolhas em capa dura da editora Mondadori e das luxuosas edições da Bao Publishing, juntam-se agora as edições da própria Bonelli de algumas obras seleccionadas, como Dopo un Lungo Silenzio, título que assinala o regresso do seu criador, Tiziano Sclavi à escrita da série.
E o regresso de Sclavi é uma das melhores notícias deste 30º aniversário, pois Dopo un Lungo Silenzio, ilustrada por Giampero Casertano e lançada em finais de Outubro durante o Festival de BD de Lucca, é uma belíssima e sombria reflexão sobre o alcoolismo, que revela um Sclavi em grande forma e bastante contido nas referências à cultura Pop. Uma história incontornável, que teve direito a três edições diferentes: a edição dos quiosques com uma capa completamente branca, uma edição de luxo para as livrarias, que inclui o argumento completo de Sclavi e uma terceira edição, exclusiva da cadeia de Livrarias da Mondadori. E a editora Bonelli não deixou de comemorar devidamente a ocasião, através de uma série de iniciativas, como Dylan Dog Presenta, um ciclo de cinema em articulação com a Universal Itália, que culmina com a exibição de 30 Anni di Incubi, um documentário sobre a série, na noite de Halloween, uma nova adaptação radiofónica das aventuras de Dylan Dog, que incluirá também a mais recente história escrita por Sclavi e uma Dylan Dog Experience, (uma experiência interactiva, aproveitando um palácio abandonado no centro de Lucca que vai ser transformado em Hotel) apresentada também em Lucca.
 Foi também em Lucca que foi revelada a alteração no responsável pelas capas da edição mensal, com Angelo Stano, que substituiu Claudio Villa a partir do nº 41, a dar lugar a Gigi Cavenago, ao fim de 26 anos e mais de 300 capas depois. Mas a grande novidade do Festival, foi o anúncio de que Tiziano Sclavi está a trabalhar numa nova série de Dylan Dog, chamada I Racontti di Domani, a lançar em 2017.
Ou seja, não restam dúvidas que trinta anos depois, Dylan Dog está mais vivo do que nunca e em muito boas mãos!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Sandman 9: As Benevolentes - Parte 1

O PRINCÍPIO DO FIM

Sandman – Vol. 9
As Benevolentes  - Parte 1
Argumento - Neil Gaiman
Desenhos –  Marc Hempel, D’Israeli, Glyn Dillon e Charles Vess
Quinta, 01 de Dezembro
Por + 11,90€
Com o nono volume, que chega aos quiosques nacionais na próxima quinta-feira, a história de Sandman entra no seu acto final e o preço que Morfeu terá de pagar por derramar o seu próprio sangue – ao conceder ao seu filho Orfeu, o alívio da morte por que ele ansiava há séculos – vai ser muito alto.
Se dúvidas ainda houvesse de que a história de Morfeu, o Mestre dos Sonhos, é uma tragédia clássica, o capítulo decisivo, que ocupa os próximos dois volumes da série, dissipá-las-á de vez.
Pensada inicialmente para ser contada em seis capítulos, As Benevolentes acabou por ocupar treze números da série mensal, sendo de muito longe, a mais longa história de Sandman, o que fez com que, por uma questão de equilíbrio entre o tamanho dos volumes, fosse dividida em dois na edição portuguesa. Mesmo assim, os leitores portugueses apenas terão de esperar uma semana pelo desenlace da mais decisiva história da série, ao contrário de quem leu na altura a edição original americana, em que a história se prolongou por mais de um ano.
História extraordinariamente meticulosa, em que todas as peças do puzzle que Gaiman foi construindo de forma rigorosa ao longo da série, se encaixam finalmente no espaço previsto desde o início, As Benevolentes foi o maior desafio que Gaiman enfrentou até então enquanto escritor. Como o próprio refere numa entrevista, “quando comecei a escrever As Benevolentes, vi-me a mim próprio dentro de um camião muito, muito, grande, apontado a uma parede e a meter o pé no acelerador”.  Mas, mostrando que tinha mãos para conduzir esse camião, o escritor evita o desastre com brilhantismo, construindo uma história fantástica a todos os níveis, que contribui de forma decisiva para a mitologia da série.
Falando de mitologia, As Benevolentes é o volume de Sandman em que a mitologia clássica está mais presente, começando logo nas Benevolentes, as Euménides, as Três Parcas que tecem o destino dos homens com os seus fios e que aqui aparecem com uma imagem de três simpáticas senhoras inglesas, a fiarem enquanto bebem o seu chá, mesmo que uma delas prefira acompanhar o chá com um rato morto, em vez de biscoitos de gengibre… E a imagem do fio da vida que se interrompe ao ser cortado por uma das Benevolentes está presente a abrir cada um dos capítulos, frisando a ideia que o destino de Morfeu está traçado e irá ser cumprido, tal como estava escrito no livro do seu irmão cego, Destino.
Em termos gráficos, Gaiman também optou por correr riscos. Numa fase em que a popularidade e prestígio da série lhe permitiriam ter qualquer desenhador que quisesse, Gaiman optou por Marc Hempel, cujo estilo expressionista está longe de ser consensual, mas que se adequa perfeitamente às necessidades de uma história carregada de emoções, em que as fronteiras entre o mundo real e a fantasia se esbatem.
Publicado originalmente no jornal Público de 25/11/2016

terça-feira, 29 de novembro de 2016

NOS TRINTA ANOS DE DYLAN DOG - Parte II: Da BD para o cinema


Conforme prometido, aqui está a segunda parte da versão (muito) alargada do artigo que escrevi para o último número da revista Bang! a propósito do trigésimo aniversário de Dylan Dog. A primeira parte do artigo pode ser lida aqui e a terceira e última parte será colocada on line no sábado, dia 3 de Dezembro.  

PARTE II - DA BD PARA O CINEMA

Curiosamente, antes de criar Dylan Dog, Sclavi tinha proposto a Bonelli recuperar os personagens de um dos seus primeiros romances, Dellamorte Dellamore e transformá-los em heróis de uma série de BD, sendo Francesco Dellamorte uma espécie de estudo preparatório para Dylan Dog, com quem compartilha o aspecto físico e a forma de vestir, para além de um peculiar assistente. Essa ideia acabou por não se concretizar no papel, apesar de Sclavi ter escrito uma história, Orore Nero, publicada no Dylan Dog Speciale nº 3, de 1989, em que Francesco Dellamorte e Dylan Dog quase que se encontram, mas aconteceu de forma indirecta no cinema, graças ao filme realizado em 1994 por Michele Soavi a partir do citado romance. Nascido em 1957, Soavi trabalhou com Dario Argento e Lamberto Bava, para além de Terry Gilliam, realizadores que o escolheram pelo seu impecável sentido estético e de composição, bem patentes em Dellamorte Dellamore, o ponto mais alto de uma curta cinematografica. Depois de ter servido de modelo para Dylan Dog, o actor inglês Rupert Everett acabou por ser o protagonista de Dellamorte Dellamore, o filme visualmente deslumbrante que consegue transpor com inesperado sucesso o universo único de Tiziano Sclavi para o grande ecrã e que o próprio Sclavi considera mesmo “muito melhor do que o livro”.
Confirmando as ligações de Dylan Dog e do seu criador com o cinema, o herói emprestou o nome ao Dylan Dog Horror Fest, um festival de cinema de terror, que teve quatro edições, entre 1987 e 1993, onde os desenhadores de Dylan Dog partilhavam o protagonismo com grandes nomes do cinema de terror, como Dário Argento, Clive Barker, Lamberto Bava, Herschell Gordon Lewis, Sergio Stivaletti, Robert Englund (o actor que faz de Freddy Krueger na série Nightmare in Elm Street) e Jeffrey Combs.
Essa ligação entre Dylan Dog e o cinema, acabaria por dar origem, em 2007, a um filme realizado por Kevin Munroe, que já tinha dirigido o 4º e último filme das Tartarugas Ninja. Um filme que passou despercebido do público, apesar de contar com Brandon Routh no principal papel e Sam Huntington no do seu assistente Marcus.
Um elenco muito habituado aos filmes inspirados na BD, pois Routh participou no divertidíssimo Scott Pilgrim Vs the World, foi o Super-Homem em Superman Returns de Bryan Singer, para além de participar actualmente nas séries televisivas Arrow e Legends of Tomorrow, como Ray Palmer, o Átomo da DC. Apesar da reconhecida experiência do elenco na transposição de BDs para o cinema, esta adaptação não prima pela fidelidade à BD original, bem pelo contrário, pois a acção foi transposta de Londres para New Orleans e, por questões de direitos, o ajudante de Dylan Dog na BD, inspirado no actor Groucho Marx teve que ser substituído por Marcus, o personagem de Hutington no filme, responsável pelos momentos mais divertidos, quando é transformado num zombie e tem que aprender a adaptar-se à sua nova condição de morto-vivo.
Mas o humor da personagem de Marcus e de alguns bons diálogos não salvam um filme com um argumento cheio de buracos, uma direcção pouco criativa, efeitos especiais bastante fracos e que não consegue preservar a originalidade de Dylan Dog, que distinguia a série de outras abordagens ao género do terror, ficando bem longe dos inúmeros filmes de fã, com destaque para os escritos, realizados e interpretados por Roberto D’Antona com meios infinitamente inferiores.
Apesar do resultado estar muito longe de ser brilhante, iniciativas como o filme ajudaram à popularidade da série, que do estatuto inicial de série de culto com vendas não especialmente entusiasmantes, rapidamente evoluiu para um verdadeiro fenómeno de massas, aspecto a que não será estranho a grande qualidade dos seus principais desenhadores, como Angelo Stano, Bruno Brindisi, Giovanni Freghieri, Gustavo Trigo, Nicola Mari, Giampero Casertano e principalmente Corrado Roi. O sucesso de Dylan Dog foi tal, que chegou mesmo ultrapassar Tex como o título mais vendido da casa Bonelli, ao mesmo tempo que a personagem, para além de ver as suas aventuras reeditadas nos mais variados formatos, era adaptada a outros meios de comunicação, desde os jogos de computador ao teatro radiofónico. Nesse campo, o mérito vai para o realizador Armando Traverso que, depois do sucesso das versões radiofónicas de outros clássicos dos fumetti como Tex, Lupo Alberto e Diabolik, decidiu adaptar algumas das mais famosas aventuras de Dylan Dog à rádio, numa série de 25 programas, emitidos em 2002 pela cadeia Radio Due.
Apesar do sucesso da série, que conseguiu conciliar a crítica com o grande público, aliando o sucesso comercial ao prestígio cultural, traduzido numa série de artigos nos mais prestigiados jornais e revistas italianas e não só, e em várias Tese de Mestrado e Doutoramento, Sclavi acabaria por se afastar gradualmente da escrita das aventuras de Dylan Dog. Mais do que o cansaço em relação à personagem, o afastamento foi motivado pela dificuldade cada vez maior em escrever novas aventuras para o (anti)herói que criou. Conforme confessou a Umberto Eco: “a força de Tex provém do carácter repetitivo das histórias: duas ou três tramas e algumas variações sobre esses temas. Isso nunca funcionaria com Dylan Dog, porque o leitor quer ser surpreendido. E asseguro-lhe que ao fim de 140 números é muito difícil continuar a surpreender os leitores.”
Por isso, Sclavi abandonou o seu herói, regressando apenas por ocasião do vigésimo aniversário, em 2006, no Dylan Dog nº 240, assinando o argumento de Ucronia, uma história ilustrada por Franco Saudeli, desenhador que, depois de nos anos 80 e 90 se ter dedicado à BD erótica, trabalha actualmente para a editora Bonelli. Um regresso que se revelou temporário, pois, depois de escrever também as histórias dos nº 243 e 244, o escritor voltaria a afastar-se da escrita da série que criou.



CONTINUA...

sábado, 26 de novembro de 2016

NOS TRINTA ANOS DE DYLAN DOG - Parte I: O Nascimento de um série de Culto


Como já referi aqui, já se encontra nas lojas FNAC o nº 21 da revista Bang!, a revista de distribuição gratuita da Saída de Emergência, dedicada ao fantástico e à ficção científica nos mais diversos suportes, em que presto homenagem aos 30 anos de uma das minhas séries de BD favoritas: Dylan Dog. Apesar de não ter quaisquer limitações de espaço em relação aos textos que escrevo para a Bang!, optei  por fazer duas versões do meu texto. A versão que saiu impressa em quatro páginas da revista e uma segunda versão, mais alargada e com novidades sobre o futuro da série, que aqui publicarei em três partes. A primeira, podem lê-la já a seguir, enquanto que a segunda parte do texto ficará online aqui no Blog na terça-feira, 29 de Novembro e a parte final do texto será publicada no sábado seguinte, dia 3 de Dezembro.

PARTE 1 - O NASCIMENTO DE UMA SÉRIE DE CULTO 

Personagem maior dos fumetti (nome dado à Banda Desenhada em Itália) Dylan Dog, o investigador do oculto vegetariano, abstémio e com vertigens, criado por Tiziano Sclavi para a editora Bonelli, fez trinta anos em Outubro de 2016. Um bom pretexto para evocar neste espaço uma personagem pouco conhecida em Portugal, onde apenas chegou durante algum tempo via Brasil, através das edições da Mythos, mas cuja influência assumida é bem visível (e assumida) no Dog Mendonça, de Filipe Melo e Juan Cavia. 
Publicado pela primeira vez em Itália em Outubro de 1986, na história L’Alba dei Morti Viventi, uma história de zombies ilustrada por Angelo Stano, onde o terror se misturava com o humor, Dylan Dog cedo se tornou uma personagem de culto, capaz de conquistar tanto as leitoras, com a sua aura romântica, como os apreciadores dos filmes de terror, que não ficavam indiferentes ao lado gore da série. E a época de ouro do cinema de terror italiano, representado por nomes como Dário Argento, Mário e Lamberto Bava e Michele Soavi, é uma das grandes referências de Sclavi, que nessa primeira história leva mesmo o seu herói ao cinema para ver Dawn of the Dead, de George Romero, um filme de zombies cujo título Sclavi vai pedir emprestado para a primeira aventura de Dylan Dog. Do mesmo modo, o inspector da Scotland Yard, a quem Dylan Dog ajuda nas suas investigações, chama-se Bloch, como o escritor de Psycho e o apartamento e escritório do herói fica em Londres, no nº 7 da Craven Road, uma morada no bairro londrino de Paddington que, apesar de remeter para o cineasta Wes Craven, existe mesmo e onde está instalada um café que, a partir de 2013, mudou de nome para Café Dylan Dog.
Nesta primeira aventura de Dylan Dog, já estão presentes todos os elementos que contribuíram decisivamente para o sucesso da série, desde o humor (irónico no caso de Dylan e delirante no do seu assistente Groucho que, mais do que inspirado no actor, é o próprio Groucho Marx, ou melhor, um doente mental que acha que é Groucho Marx); o erotismo (há sempre uma bela cliente por quem Dylan se apaixona); uma angústia existencial e uma sensação de claustrofobia que o humor não consegue apagar; e o uso desenfreado das mais variadas citações e homenagens, do cinema à BD e à literatura, que Sclavi faz questão de assumir e integrar de forma harmoniosa nas suas histórias, fazendo sua a máxima de Totó, o grande actor e comediante italiano que dizia: “todos são capazes de criar, copiar bem é que é mais difícil”.
Os pormenores sobre o passado de Dylan Dog vão sendo revelados a conta-gotas, geralmente aproveitando ocasiões especiais, com edições à altura da importância do acontecimento, em que o preto e branco habitual dá lugar à cor. Assim, a estranha relação de Dylan Dog, com o pai, o mago Xabaras é explorada no nº 100 da série, enquanto que o passado de Dylan enquanto polícia, antes de se estabelecer como investigador privado e a sua história de amor com Lillie Connelly, uma jovem irlandesa militante do IRA, são tratados no nº 121, que coincide com o décimo aniversário da série. No Dylan Dog nº 200, para além do ficarmos saber como Groucho se tornou assistente do herói, descobrimos que Dylan caiu no alcoolismo após a morte de Lillie, na sequência de uma greve de fome, e que Groucho e Bloch foram decisivos para que Dylan conseguisse libertar-se do vício.
Quanto à origem do estranho nome do herói, o próprio Sclavi explica como surgiu: “Dylan vem do poeta Dylan Thomas. Quanto a Dog, o nome vem do título de um romance de Mickey Spillane que vi na montra de uma livraria. Mas Dylan Dog sempre foi o nome provisório que dei às minhas personagens (a prova é que escrevi uma história curta desenhada por Lorenzo Mattotti nos anos 70, com esse mesmo título). É o caso típico do nome de trabalho, em que pensamos “por enquanto, vamos chamar-lhe assim, até encontrarmos um nome melhor”. A diferença entre Dylan Dog e as minhas personagens precedentes é que desta vez o nome manteve-se.” E, curiosamente, Mattotti, que desenhou esse primeiro Dylan Dog em 1977, num Western que nunca chegou a ser publicado, só voltaria a desenhar o detective do oculto em 2015, na capa da edição especial do Dylan Dog nº 350, distribuído na edição desse ano do Festival de Lucca.

Se Dylan Dog é um herói fascinante, Tiziano Sclavi, o seu criador não o é menos. Personagem torturada, afectada por várias depressões e bloqueios criativos que o levaram mesmo a tentar o suicídio, Sclavi é uma figura envolta numa aura de mistério. Mistério para o qual muito contribuiu o facto de quase não aparecer em público, raramente dar entrevistas e muito menos se deixar fotografar. Numa dessas raras entrevistas, ficou célebre a resposta que deu quando lhe perguntaram se se identificava com Dylan Dog: “Nem com Dylan, nem com Groucho” disse. “Eu sou os monstros.”
Tendo ganho um prémio literário aos dezanove anos, o reconhecimento precoce do seu talento não lhe serviu de muito em termos de carreira pois, como refere “o público recebeu os seus livros com uma indiferença entusiástica”, o que o obrigou a trabalhar como jornalista, revisor e argumentista de BD para poder sobreviver, enquanto os seus romances aguardavam por um editor disposto a publicá-los.
É precisamente enquanto argumentista de BD que Sclavi vai iniciar uma colaboração com a editora Bonelli cujos fumetti são um verdadeiro fenómeno editorial e sociológico. Assim, além de criar Gli Aristocratici, com Alfredo Castelli (o criador de Martin Mystere, outra das mais interessantes séries da Bonelli) Sclavi vai assinar argumentos para outras séries da editora, antes de criar finalmente Dylan Dog, abrindo assim as portas do sucesso com o carismático detective do paranormal, cujas virtudes são gabadas até por Umberto Eco, que não tem pejo em colocar Dylan Dog a par da Bíblia e dos poemas de Homero, no top das suas leituras favoritas.

(CONTINUA...)

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Sandman 8: A Estalagem do Fim do Mundo

A CASA DAS HISTÓRIAS

Sandman – Vol. 8
A Estalagem do Fim do Mundo 
Argumento – Neil Gaiman
Desenho –Michael Allred, Gary Amaro, Mark Buckingham, Steve Leialoha, Vince Locke, Bryan Talbot e Michael Zulli
Quinta, 24 de Novembro
Por + 11,90€
Prosseguindo a alternância, que se tornou uma imagem de marca da série Sandman, entre volumes com histórias curtas e outros com narrativas mais longas centradas na jornada de Morfeu, A Estalagem do Fim do Mundo, volume a ser distribuído na próxima quinta-feira em todo o país, recolhe um punhado de histórias curtas, que confirmam Gaiman como um mestre da short story, também na BD.
Mas, ao contrário do que acontece em Terra do Sonho e Fábulas e Reflexões, desta vez há um dispositivo narrativo a unir todas essas histórias, com excepção de Ramadão, publicada originalmente na revista Sandman nº 50, que na edição americana foi incluída no volume 6 e que na versão portuguesa surge neste volume, por uma questão de equilíbrio de páginas entre cada volume e por, em termos da cronologia da série, ser a estória que precede o final de Vidas Breves (que termina no Sandman nº 49) e antecede A Estalagem… (que começa no nº 51 da edição americana).
Mas voltando ao tal dispositivo narrativo que agrupa todas as estórias, em A Estalagem… temos um grupo de viajantes refugiados numa estalagem, que contam histórias um aos outros para passarem o tempo. Se o conceito soar familiar ao leitor mais atento é porque este esquema narrativo remonta ao século XV e aos Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer, uma influência que o próprio Neil Gaiman é o primeiro a admitir, referindo: “agradava-me a ideia de usar um dos mais velhos dispositivos narrativos da história da literatura inglesa. Se vais roubar, é melhor roubares os melhores e os Canterbury Tales estão definitivamente nessa categoria.”
Assim, neste volume, temos histórias sobre cidades que sonham, fadas, monstros marinhos e necrópoles, e estórias dentro das histórias, que permitem a Gaiman e ao alargado leque de colaboradores que ilustram estas histórias, homenagear diversos géneros e autores, em singelos contos magnificamente construídos, em que as referências literárias mais ou menos explicitas, não perturbam em nada o fluir da narrativa.
E outra prova do génio de Gaiman, está na escolha do desenhador certo para cada história. Basta ver como o traço etéreo de Alec Stevens se revela perfeito para Um Conto de Duas Cidades que, apesar do título que remete para Dickens, é o mais borgesiano texto de Gaiman, ou como Michael Zulli, desenhador que estará em destaque no último volume da série, ilustra O Leviatã de Hob, uma história que recupera o fascínio da vida no mar dos romances de Conrad e Melville.
Publicado originalmente no jornal Público de 18/11/2016

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Dylan Dog em destaque na revista Bang!


Já chegou às lojas FNAC o nº 21 da revista Bang!, em que dou o devido destaque ao trigésimo aniversário da série de culto da editora Bonelli, criada por Tiziano Sclavi, que se estreou nos quiosques italianos em  Outubro de1986.

No próximo sábado colocarei aqui a versão alargada e actualizada (pois o Festival de BD de Lucca que ocorreu entre 28 de Outubro e 1 de Novembro, já depois de eu ter enviado o texto trouxe muitas novidades) do artigo que escrevi sobre Dylan Dog para a Bang! e que, pela sua extensão, será publicado em duas partes.
A primeira parte, dedicada às origens da série e às ligações ao cinema, que ficará online no sábado, dia 26 de Novembro, e a segunda, mais centrada na nova fase do personagem, coordenada por Roberto Recchioni, na terça-feira, dia 29.
Até lá, em jeito de teaser, deixo-vos com a capa da Bang! e com a primeira página do meu artigo sobre uma das melhores séries da BD europeia que, exceptuando a distribuição das edições brasileiras da Mythos, nunca teve em Portugal o destaque que bem merece.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Sandman 7: Vidas Breves


PELA ESTRADA FORA

Sandman – Vol. 7 
Vidas Breves
Argumento - Neil Gaiman
Desenho – Jill Thompson, Vince Locke
Quinta, 17 de Novembro
Por + 11,90€

Depois dos maravilhosos interlúdios que foram as histórias curtas de Fábulas e Reflexões, a jornada de Morfeu volta a ocupar o centro do palco em Vidas Breves, capítulo que dá início ao último acto da série e que os leitores poderão descobrir no capítulo 7 da premiada série de Neil Gaiman, disponível a partir da próxima quinta-feira.
Reflexão sobre a mudança e a brevidade da vida, Vidas Breves dá destaque a dois dos Eternos, Sonho e Delírio, na sua busca por outro irmão, Destruição, que abandonou as suas funções e desapareceu no mundo desperto. Assim, na aparência estamos perante a mais linear das histórias, centrada numa viagem on the road de Sonho e Delírio pelos Estados Unidos da América, em busca das pessoas que possam conhecer o paradeiro de Destruição.
Um capítulo que se serve sobretudo para fazer avançar a história central, fazendo convergir diversos fios da intriga para a intricada tapeçaria tecida pelo autor, pois como o próprio Gaiman refere: “Vidas Breves, fornece informações sobre como e porquê Destruição abandonou o seu cargo e a família; conta como Orfeu consegue finalmente morrer; concretiza o objectivo de Desejo de conseguir com que o Sonho derrame o sangue da família, o que já vem da história do Imperador Norton e da Casa de Bonecas; e revela também muito sobre a Delírio… que é um dos raros personagens que chega ao fim desta história mais ou menos incólume.”
Mas, como é habitual em Gaiman, nem tudo é tão simples como parece, e muitos dos (aparentemente) meros mortais que encontramos ao longo da história e que vão sendo mortos para evitar que Morfeu descubra o paradeiro de Destruição, são na verdade Deuses que perderam os seus poderes quando deixaram de ter quem os adorasse e que, longe do esplendor de outrora (sobre)vivem escondidos no meio da humanidade, como Ishtar, a deusa do sexo da Babilónia, que agora dança como stripper num bar decadente. Um tema que Gaiman irá explorar posteriormente de forma mais profunda e complexa no seu romance American Gods, que está a ser adaptado à televisão pelo canal americano de cabo Starz, numa série de grande orçamento com estreia marcada (possivelmente também em Portugal) em 2017.
Em termos gráficos, este é um dos volumes mais consistentes da série, sendo inteiramente desenhado por Jill Thompson, com o apoio de Vince Locke na passagem a tinta. Thompson, que já tinha desenhado O Parlamento das Gralhas, a história final do volume anterior e que empresta o corpo e o rosto a Etain, a rapariga que consegue fugir do seu apartamento antes dele explodir, faz um excelente trabalho no tratamento das personagens, dando grande expressividade ao rosto e aos gestos de Delírio e tem sequências de grande beleza, como o céu estrelado sob o qual os Eternos conversam, ou a sequência em que as gotas do sangue que escorre das mãos de Morfeu, se transformam em flores vermelhas ao cair no chão.
Publicado originalmente no jornal Público de 11/11/2016

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Sandman 6: Fábulas e Reflexões


OS IMPERADORES, O VIAJANTE E OS FILHOS DO SONHO

Sandman – Vol. 6 
Fábulas e Reflexões
Argumento – Neil Gaiman
Desenho – Bryan Talbot, Stan Woch, Shawn McManus, Collen Doran, Jill Thompson
Quinta, 10 de Novembro
Por + 11,90€
Confirmando a alternância entre grandes sagas que fazem avançar a narrativa global e histórias curtas que permitem explorar aspectos distintos da relação entre o Domínio do Sonho e o mundo Desperto, Fábulas e Reflexões, o sexto volume da série Sandman que chega às bancas na próxima quinta-feira, centra-se no modo como os percursos individuais de diferentes personagens históricas são afectados pelo encontro com o Mestre dos Sonhos.
Agosto, Termidor e Três Setembros e um Janeiro, os três contos que abrem o livro, para além de terem em comum serem histórias que têm títulos com nomes de meses (Termidor era o equivalente ao mês de Julho no novo calendário que a Revolução Francesa tentou implementar) centram-se na relação de três diferentes Imperadores com Morfeu. Seja o maior Imperador romano, Augusto, em Agosto, mês que lhe deve o nome, Robespierre, um dos principais responsáveis pela Revolução Francesa e pelo banho de sangue que se lhe seguiu em Termidor e o Imperador Norton, em Três Setembros e um Janeiro, título inspirado no do filme Quatro Casamentos e um Funeral, cujo argumentista, Richard Curtis, é amigo de Gaiman.
Por mais estranho do que possa parecer, Joshua Abraham Norton, o primeiro (e único) Imperador dos Estados Unidos é um personagem com existência real, cuja incrível história inspirou também Goscinny numa aventura de Lucky Luke, O Imperador Smith, e que aqui é o alvo inconsciente de uma disputa entre três dos Eternos, em que a força do sonho se revela superior ao desespero e à tentação.
Também o explorador Marco Polo encontra Morfeu no deserto, numa história que, alem de nos explicar o porquê de Morfeu também ser conhecido por Sandman, mostra-nos como o tempo se escoa de modo diferente nas faldas do domínio do Sonho, onde existem lugares suaves, onde as fronteiras entre o sonho e a realidade são porosas e a geografia dos sonhos se intromete na realidade.
Na história mais importante do livro, A Canção de Orfeu, Gaiman recupera uma lenda da mitologia clássica, o mito de Orfeu, para incorporar Orfeu e Eurídice no universo da série, num conto  que vai ter consequências decisivas para o destino de Morfeu e em que descobrimos que Orfeu é filho de Morfeu e da musa Calíope. Finalmente, em O Parlamento das Gralhas, Daniel, o filho de Lyta Hall que Morfeu disse que viria buscar, faz a sua primeira vista ao Domínio do Sonho.
Em termos gráficos, os destaques deste volume vão para Bryan Talbot, o autor de História de um Rato Mau, que assina os desenhos de Agosto e de A Canção de Orfeu, com grande rigor e um domínio perfeito da narrativa, e para Jill Thompson que, na sua estreia na série cria uma versão infantil dos Eternos transbordante de “fufura”, cujo estrondoso sucesso junto dos leitores levou a que protagonizassem duas histórias autónomas, Little Endless Storybook e Delirium’s Party, escritas e desenhadas por Jill Thompson.
Publicado originalmente no jornal Público de 04/11/2016