sábado, 26 de novembro de 2016

NOS TRINTA ANOS DE DYLAN DOG - Parte I: O Nascimento de um série de Culto


Como já referi aqui, já se encontra nas lojas FNAC o nº 21 da revista Bang!, a revista de distribuição gratuita da Saída de Emergência, dedicada ao fantástico e à ficção científica nos mais diversos suportes, em que presto homenagem aos 30 anos de uma das minhas séries de BD favoritas: Dylan Dog. Apesar de não ter quaisquer limitações de espaço em relação aos textos que escrevo para a Bang!, optei  por fazer duas versões do meu texto. A versão que saiu impressa em quatro páginas da revista e uma segunda versão, mais alargada e com novidades sobre o futuro da série, que aqui publicarei em três partes. A primeira, podem lê-la já a seguir, enquanto que a segunda parte do texto ficará online aqui no Blog na terça-feira, 29 de Novembro e a parte final do texto será publicada no sábado seguinte, dia 3 de Dezembro.

PARTE 1 - O NASCIMENTO DE UMA SÉRIE DE CULTO 

Personagem maior dos fumetti (nome dado à Banda Desenhada em Itália) Dylan Dog, o investigador do oculto vegetariano, abstémio e com vertigens, criado por Tiziano Sclavi para a editora Bonelli, fez trinta anos em Outubro de 2016. Um bom pretexto para evocar neste espaço uma personagem pouco conhecida em Portugal, onde apenas chegou durante algum tempo via Brasil, através das edições da Mythos, mas cuja influência assumida é bem visível (e assumida) no Dog Mendonça, de Filipe Melo e Juan Cavia. 
Publicado pela primeira vez em Itália em Outubro de 1986, na história L’Alba dei Morti Viventi, uma história de zombies ilustrada por Angelo Stano, onde o terror se misturava com o humor, Dylan Dog cedo se tornou uma personagem de culto, capaz de conquistar tanto as leitoras, com a sua aura romântica, como os apreciadores dos filmes de terror, que não ficavam indiferentes ao lado gore da série. E a época de ouro do cinema de terror italiano, representado por nomes como Dário Argento, Mário e Lamberto Bava e Michele Soavi, é uma das grandes referências de Sclavi, que nessa primeira história leva mesmo o seu herói ao cinema para ver Dawn of the Dead, de George Romero, um filme de zombies cujo título Sclavi vai pedir emprestado para a primeira aventura de Dylan Dog. Do mesmo modo, o inspector da Scotland Yard, a quem Dylan Dog ajuda nas suas investigações, chama-se Bloch, como o escritor de Psycho e o apartamento e escritório do herói fica em Londres, no nº 7 da Craven Road, uma morada no bairro londrino de Paddington que, apesar de remeter para o cineasta Wes Craven, existe mesmo e onde está instalada um café que, a partir de 2013, mudou de nome para Café Dylan Dog.
Nesta primeira aventura de Dylan Dog, já estão presentes todos os elementos que contribuíram decisivamente para o sucesso da série, desde o humor (irónico no caso de Dylan e delirante no do seu assistente Groucho que, mais do que inspirado no actor, é o próprio Groucho Marx, ou melhor, um doente mental que acha que é Groucho Marx); o erotismo (há sempre uma bela cliente por quem Dylan se apaixona); uma angústia existencial e uma sensação de claustrofobia que o humor não consegue apagar; e o uso desenfreado das mais variadas citações e homenagens, do cinema à BD e à literatura, que Sclavi faz questão de assumir e integrar de forma harmoniosa nas suas histórias, fazendo sua a máxima de Totó, o grande actor e comediante italiano que dizia: “todos são capazes de criar, copiar bem é que é mais difícil”.
Os pormenores sobre o passado de Dylan Dog vão sendo revelados a conta-gotas, geralmente aproveitando ocasiões especiais, com edições à altura da importância do acontecimento, em que o preto e branco habitual dá lugar à cor. Assim, a estranha relação de Dylan Dog, com o pai, o mago Xabaras é explorada no nº 100 da série, enquanto que o passado de Dylan enquanto polícia, antes de se estabelecer como investigador privado e a sua história de amor com Lillie Connelly, uma jovem irlandesa militante do IRA, são tratados no nº 121, que coincide com o décimo aniversário da série. No Dylan Dog nº 200, para além do ficarmos saber como Groucho se tornou assistente do herói, descobrimos que Dylan caiu no alcoolismo após a morte de Lillie, na sequência de uma greve de fome, e que Groucho e Bloch foram decisivos para que Dylan conseguisse libertar-se do vício.
Quanto à origem do estranho nome do herói, o próprio Sclavi explica como surgiu: “Dylan vem do poeta Dylan Thomas. Quanto a Dog, o nome vem do título de um romance de Mickey Spillane que vi na montra de uma livraria. Mas Dylan Dog sempre foi o nome provisório que dei às minhas personagens (a prova é que escrevi uma história curta desenhada por Lorenzo Mattotti nos anos 70, com esse mesmo título). É o caso típico do nome de trabalho, em que pensamos “por enquanto, vamos chamar-lhe assim, até encontrarmos um nome melhor”. A diferença entre Dylan Dog e as minhas personagens precedentes é que desta vez o nome manteve-se.” E, curiosamente, Mattotti, que desenhou esse primeiro Dylan Dog em 1977, num Western que nunca chegou a ser publicado, só voltaria a desenhar o detective do oculto em 2015, na capa da edição especial do Dylan Dog nº 350, distribuído na edição desse ano do Festival de Lucca.

Se Dylan Dog é um herói fascinante, Tiziano Sclavi, o seu criador não o é menos. Personagem torturada, afectada por várias depressões e bloqueios criativos que o levaram mesmo a tentar o suicídio, Sclavi é uma figura envolta numa aura de mistério. Mistério para o qual muito contribuiu o facto de quase não aparecer em público, raramente dar entrevistas e muito menos se deixar fotografar. Numa dessas raras entrevistas, ficou célebre a resposta que deu quando lhe perguntaram se se identificava com Dylan Dog: “Nem com Dylan, nem com Groucho” disse. “Eu sou os monstros.”
Tendo ganho um prémio literário aos dezanove anos, o reconhecimento precoce do seu talento não lhe serviu de muito em termos de carreira pois, como refere “o público recebeu os seus livros com uma indiferença entusiástica”, o que o obrigou a trabalhar como jornalista, revisor e argumentista de BD para poder sobreviver, enquanto os seus romances aguardavam por um editor disposto a publicá-los.
É precisamente enquanto argumentista de BD que Sclavi vai iniciar uma colaboração com a editora Bonelli cujos fumetti são um verdadeiro fenómeno editorial e sociológico. Assim, além de criar Gli Aristocratici, com Alfredo Castelli (o criador de Martin Mystere, outra das mais interessantes séries da Bonelli) Sclavi vai assinar argumentos para outras séries da editora, antes de criar finalmente Dylan Dog, abrindo assim as portas do sucesso com o carismático detective do paranormal, cujas virtudes são gabadas até por Umberto Eco, que não tem pejo em colocar Dylan Dog a par da Bíblia e dos poemas de Homero, no top das suas leituras favoritas.

(CONTINUA...)

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