terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Comer/Beber, de Filipe Melo e Juan Cavia



Depois da pièce de resistance que foi Os Vampiros, Filipe Melo e Juan Cavia regressam à BD com dois belos aperitivos, Majowski e Sleepwalk, reunidos no livro Comer/Beber, lançado em meados deste mês na Comic Con Portugal, onde a dupla de criadores tem sido uma presença regular.
Na origem deste projecto, diferente até no formato de histórias (mais ou menos) curtas, por oposição aos relatos de maior fôlego, como a trilogia de Dog Mendonça e, sobretudo, Os Vampiros, está um convite de Carlos Vaz Marques para que Melo e Cavia produzissem uma BD para o nº 9 da revista Granta, que tinha precisamente como tema Comer e Beber. Embora a pretensão dos autores fosse fazer, não uma, mas duas histórias para a Granta, os condicionamentos dos prazos de produção da própria revista limitaram (temporariamente) a ambição dos autores e apenas Sleepwalk, a primeira das duas histórias previstas, foi publicada na revista, completando-se o projecto meses depois, com a publicação do mini-livro que motiva este texto e que reúne, embora numa ordem diferente à que o próprio título faria esperar, Majowski e Sleepwalk, as duas histórias profundamente humanas dedicadas à comida e à bebida, ou mais exactamente a uma tarte de maçã e a uma garrafa de champanhe.
Passada na Alemanha nazi, durante a Segunda Guerra Mundial, Majowski parte de uma história real, contada por Beatrice Schilling, a avó de arquitecta e cantora (e amiga do Filipe) Nádia Schilling, sobre uma garrafa de champanhe que o seu avô, proprietário de um dos melhores restaurantes de Berlim, guardou para beber numa noite especial. Já Sleepwalk é uma história de ficção, que podia muito bem ser um filme de série B americano, ou a letra de uma canção de Bruce Springsteen, sobre um homem que faz uma longa viagem pelos Estados Unidos para levar uma tarte de maçã a um amigo.
Para mim, a mais conseguida das duas histórias, é Sleepwalk, cujo ritmo lento e contemplativo e a utilização de uma música como título, tem paralelismo com Os Vampiros. Muito bem contada e magnificamente desenhada, Sleepwalk sugere mais do que mostra, obrigando o leitor a pensar e tirar as suas próprias conclusões, um pouco à semelhança do que também acontecia em Os Vampiros. Além disso, toda a estética da história remete-nos para uma América cinematográfica, que vai de David Lynch a Wim Wenders, que nos leva a pensar que, mais até do que alguns projectos anteriores de Melo e Cavia, pensados originalmente para o cinema, também esta BD daria uma belíssima curta-metragem. Algo que, tendo em conta as ligações da dupla ao cinema, quem sabe se não se virá um dia a concretizar…
Majowski, usando uma metáfora apropriada ao tema, é uma bebida que precisava de mais tempo de maturação e também de mais páginas para ser contada, de modo a que a história pudesse respirar melhor. Se os horrores sofridos pelos judeus em território alemão são bem conhecidos, em Majowski surgem demasiado em pano de fundo, o que, provavelmente, não teria acontecido se os autores tivessem tido mais tempo e mais espaço para a história. Do mesmo modo, o momento surreal (mas que aconteceu na realidade) do elefante que deambulava por entre os destroços da Berlim bombardeada, teria outro impacto se a sua presença não se limitasse apenas a dois quadrados. Também em termos de planificação há diferenças entre as duas histórias. Se Sleepwalk tem um fôlego cinematográfico, já Majowski está mais próximo de uma série televisiva, com panorâmicas pontuais que permitem ao leitor identificar os locais, passando-se o resto da história em estúdio, em interiores filmados em planos médios e grandes planos.
Finalmente, a opção por um formato inferior ao A5, e até ao da revista Granta original, não deixa que o desenho respire devidamente, algo mais evidente até em Majowski, pelo que me parece que o livro só teria a ganhar em ser impresso num formato superior - antes de o receber em papel, já tinha tido oportunidade de ler o livro num Tablet com um ecrã de doze polegadas e a arte não só aguentou perfeitamente essa ampliação, como até beneficiou dela) - até porque o facto de se tratar de uma edição com tiragem limitada, encareceu bastante o produto final, o que, acredito que mesmo assim não irá afastar os muitos leitores fiéis da dupla.
Em conclusão, e voltando às metáforas culinárias, Comer/Beber é como aqueles pratos de nouvelle cuisine: requintado, extremamente saboroso e bem apresentado, mas a exiguidade da dose (neste caso, do tamanho do livro) faz com que o preço que o cliente vai pagar por ele pareça demasiado elevado…
Comer/Beber, de Filipe Melo e Juan Cavia, Tinta da China, 72 págs, 15€

Sem comentários: