segunda-feira, 31 de julho de 2017

Novela Gráfica III 5 - Polina


A DANÇA E A VIDA

Novela Gráfica III  
Vol. 5 
Polina
Argumento e Desenhos – Bastien Vivès
Sexta, 28 de Julho
Por + 9,99€
Polina, a novela gráfica que chega aos quiosques na próxima sexta-feira, assinala a estreia em Portugal de Bastien Vivès, o jovem prodígio da BD francesa. Nascido em Paris em 1984, Vivès é um autor tão talentoso como produtivo e versátil, de tal maneira que aos 27 anos já tinha 11 livros publicados, tendo ganho o prémio Revelação no Festival de Angoulême em 2009, com Le Gout du Chlore. Mas Polina, publicado originalmente em França em 2011 é o seu trabalho mais premiado, tendo arrebatado o prémio das Livrarias de BD, o Grande Prémio da Crítica da ACBD (a Associação de Jornalistas e Críticos de BD franceses) e o prémio Haxtur para a Melhor Novela Gráfica em Espanha.
Centrado na vida de Polina Oulinov, uma jovem bailarina russa, desde a sua entrada na Academia do Professor Bojinski, até à idade adulta, Polina é uma história de crescimento, ou um  bildungsroman para usar um termo mais preciso (e erudito), contada com grande simplicidade e emoção e um rigor narrativo ímpar.
Um dos pontos-chave do livro é a relação entre Polina e Bojinski, que apesar da rigidez dos modos, assume uma dimensão quase paternal, com Bojinski a substituir de algum modo o pai de Polina, que está totalmente ausente da história. A forma como Vivès explora a relação entre os dois é uma prova do seu génio narrativo. Repare-se como nunca vemos o olhar de Bojinski, escondido atrás dos óculos, traduzindo a distância entre o professor e o aluno que ele cultivava e, quando finalmente ele tira os óculos e encara Polina, percebemos que esta mantinha a mesma imagem idealizada de Bojinski de quando o tinha conhecido pela primeira vez, que pouco coincidia com a imagem real do velho que estava à sua frente.
Há um conselho dado por Bojinski a Polina, que assenta como uma luva ao traço de Vivès: "Mais leveza. Isto deve parecer fácil. É importante que “pareça” fácil. As pessoas não devem ver mais nada, para além da emoção que queres fazer passar". E é precisamente essa sensação de leveza e simplicidade que o desenho extremamente sintético de Vivés transmite. Um desenho diáfano a preto e branco (com o cinzento, como segunda cor, a dar volume) que sugere, mais do que mostra, mas que consegue recriar no papel, todo o movimento, a beleza e a elegância da dança.
Ao mesmo tempo que o livro chega aos quiosques, chega também às salas de cinema portuguesas o filme que o adapta. Um filme que o produtor Didier Creste propôs que fosse o próprio Vivès a realizar, mas que acabaria nas mãos de Angelin Preljocaj e Valèrie Muller, um casal com grande experiência no ballet e na dança contemporânea que, curiosamente tinham sido os responsáveis pela coreografia e encenação de Branca de Neve, o primeiro bailado que Bastien Vivès viu enquanto preparava o livro Polina. Com um elenco que inclui Juliette Binoche e a bailarina russa Anastasia Shevtsova no papel de Polina, Polina, o filme, serviu para reconciliar Vivès com o cinema e permitirá aos leitores verem os seus desenhos ganhar (ainda mais) vida.
Texto publicado originalmente no jornal Público de 22/07/2017

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Bernie Wrightson em destaque na revista Bang!

Desde dia 20 de Julho que está disponível nas lojas FNAC de todo o país, mais uma número da revista Bang!. Como é tradição, colaboro na revista desta vez com um texto de evocação de Bernie Wrightson, o mestre do terror nos comics e na ilustração recentemente falecido, que posteriormente disponibilizarei aqui no blog.
Mas naturalmente, esse não é o único motivo de interesse da revista para quem gosta de BD. Para além dos destaques a Monstress e a Nimona, os dois títulos que assinalam o regresso da Saída de Emergência à BD, há ainda espaço para uma BD de André Oliveira, ilustrada por Pedro Potier e para um conto lovecraftiano de Neil Gaiman, , protagonizado por... Sherlock Holmes. Aqui fica a sugestão para não perderem esta excelente revista, que ainda por cima, é grátis!

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Novela Gráfica III 4 - Batman: Uma história Verdadeira

QUANDO UMA AVENTURA DE BATMAN 
PODE SER UMA HISTÓRIA AUTOBIOGRÁFICA

Novela Gráfica III
Vol. 4 
Batman, uma História Verdadeira
Argumento -  Paul Dini
Desenhos – Eduardo Risso
Sexta, 21 de Julho
Por + 9,99€
Escrita por Paul Dini, argumentista de BD e de televisão, produtor e realizador de cinema de animação e criador da Harley Quinn, a carismática namorada do Joker, que esteve em grande destaque no filme do Esquadrão Suicida, Batman, uma História Verdadeira, a novela gráfica que chega às bancas na próxima sexta-feira, é, e não é, uma história do Batman, do mesmo modo que é, e não é, uma autobiografia.
Exemplo perfeito de como as fronteiras entre os diferentes géneros de BD nem sempre são estanques, Batman, Uma História Verdadeira é um relato autobiográfico em que Batman e os outros personagens do universo de ficção da DC Comics têm um papel preponderante. Reflexão catártica de Dini sobre um acontecimento que mudou a sua vida: um assalto e agressão ocorridos em 1993, quando trabalhava em Batman, The Animated Series, e especificamente na primeira longa-metragem derivada dessa série animada, The Mask of the Phantasm, que o deixou com cicatrizes profundas, tanto a nível físico, como sobretudo mental, este livro estilhaça literalmente a "quarta parede" entre o criador e as suas criações, colocando o autor em constante diálogo com as personagens que costumava escrever e que vão acabar por ser a porta de saída da depressão em que se encontrava preso.
Esse trauma longamente reprimido, mas nunca esquecido, só seria tornado público numa entrevista recente ao podcast Fatman on Batman, do realizador de cinema Kevin Smith. E foi depois disso que Dini decidiu transformar a sua experiência traumática numa novela gráfica publicada pela Vertigo em 2016, que está nomeada para o prémio Eisner de Melhor História Baseada em Factos Reais, na San Diego Comic Com de 2017.
A dar vida às memórias de Dini neste relato desarmante de honestidade, está o mestre argentino Eduardo Risso, bem conhecido dos leitores portugueses graças aos títulos editados pela Levoir, como Parque Chas, Batman Noir e (em breve) 100 Balas, que confirmando todo o seu imenso talento, dá aqui provas de uma versatilidade inesperada, adaptando completamente o seu traço às necessidades específicas dos diferentes momentos da história. Mestre do preto e branco, como Batman Noir demonstra à saciedade, Risso ocupa-se pela primeira vez também da cor de uma história que desenhou, com resultados deslumbrantes, mas também extraordinariamente eficazes em termos narrativos.
A cor assume uma grande importância em termos da história que Dini quer contar e Risso utiliza-a com precisão, alternando o registo gráfico e o tratamento pictórico entre as cenas em que Dini fala com as personagens do universo do Batman e os momentos reais, tratados num estilo mais próximo do que lhe é habitual. Veja-se, por exemplo, as sequências da infância de Dini, em que o jovem Paul, quase transparente para os seus colegas de escola, vai ganhando cor quando entra no seu mundo de fantasia, habitado pelas personagens da televisão, do cinema da literatura e da BD que marcaram a sua vida.
Texto publicando originalmente no jornal Público de 15/07/2017

sábado, 15 de julho de 2017

Novela Gráfica III 3 - Os Ignorantes


O MELHOR DE DOIS MUNDOS

Novela Gráfica III - Vol 3
Os Ignorantes
Argumento e Desenhos – Étienne Davodeau
Sexta, 14 de Julho
Por + 9,99 €
O que une um produtor de vinho biológico e um autor de BD? Como é o dia-a-dia em cada uma dessas actividades? Foi para tentar encontrar resposta para estas (e muitas outras) questões que Étienne Davodeau partilhou durante um ano e meio a vida do seu vizinho, o produtor vinícola Richard Leroy.

Nascido em 1965 em Maine e Loire, Davodeau estudou Artes Plásticas antes de se dedicar à BD, fundando com uns colegas o estúdio de BD PSURDE. A estreia profissional deu-se em 1992, com L’Homme qui n’aimait pas les Arbres, primeiro volume da série Les Amis de Saltiel, publicado na colecção Generation Dargaud, uma linha criada pela editora para a divulgação de novos talentos. Com Alguns Dias com um Mentiroso, publicado originalmente em França em 1997 pela Delcourt e em Portugal pela MaisBD, Davodeau mudou não só de editor, mas trocou o formato tradicional do álbum a cores de 48 páginas, pela maior liberdade do formato livro, característico da novela gráfica, em que o número de páginas é apenas condicionado pelas necessidades da história a contar. Um formato que marca o resto da sua obra e que, nas palavras do próprio Davodeau, permite “fugir à prisão do formato tradicional que, por vezes, se torna curto quando queremos fazer coisas mais literárias, mais profundas. O livro permite ter mais tempo. Implica uma mudança radical ao nível narrativo, neste caso, servido pelo desenho que me agrada mais, em bruto, rápido, nervoso, sem efeitos especiais…”
Com uma carreira dividida entre a ficção e a reportagem em BD, como em Rural, onde entrou pela primeira vez em contacto com o mundo da agricultura biológica, Davodeau convidou o seu vizinho Richard que, tal como ele, se veio instalar em meados da década de 90 numa pequena aldeia perto de Anjou, para partilhar a sua experiência de produtor de vinho, ao mesmo tempo que Davodeau o iniciava no mundo da BD. Como refere numa entrevista à revista Casemate: “Richard é um produtor vinícola artesanal, muito exigente. Ele desenvolve um discurso que me interessava e onde surgiam por vezes analogias, mas também diferenças, com o mundo da Banda Desenhada. A ideia dos Ignorantes nasceu de forma progressiva, na sequência das nossas conversas. Propus ao Richard trabalhar com ele e em troca iniciá-lo-ia no mundo da BD. Duas aventuras conjuntas a partir das quais eu faria, quase em tempo real, uma Banda Desenhada.”
O resultado é este extremamente instrutivo Os Ignorantes, em que descobrimos, tal como os protagonistas, as especificidades de cada ofício. Assim, tal como Richard Leroy, acompanhamos as diferentes fases da execução de um livro de BD, até à impressão final, contactando com desenhadores como Jean-Pierre Gibrat, Marc-Antoine Mathieu, Emmanuel Guibert e Lewis Tondheim (que desenha mesmo umas das páginas do livro) e visitando Festivais e exposições de BD. E, tal como Davodeau, vemos como se plantam as videiras, se trabalha a terra, se faz a vindima, se escolhe a madeira para os barris e se acompanha o processo de maturação de um vinho, até este estar pronto a beber. E aí percebemos que o maior ponto de contacto entre estas duas actividades é o longo tempo e muito trabalho necessário para criar um produto de qualidade, que no final vai ser rapidamente consumido pelo público.
Senhor de um traço rápido, quase caligráfico, muito bem servido por um acabamento em aguada de guache que dá profundidade às páginas, Davodeau cria uma história agradável, que se lê rapidamente e com prazer, mas que, tal como um bom vinho deve ser saboreada lentamente, para absorver devidamente todas as nuances deste relato de uma iniciação cruzada.
Texto publicado originalmente no jornal Público de 08/07/2017

sábado, 8 de julho de 2017

Novela Gráfica III 2 - Traço de Giz


OBRA-PRIMA DE MIGUELANXO PRADO
REGRESSA EM EDIÇÃO CHEIA DE EXTRAS

Novela Gráfica III - Vol 2
Traço de Giz
Argumento e Desenhos – Miguelanxo Prado
Quinta, 07 de Julho
Por + 9,99 € 
Depois de Presas Fáceis (o seu mais recente trabalho, que ganhou o Prémio de Melhor Livro Estrangeiro no último Amadora BD) na colecção anterior, Miguelanxo Prado regressa à colecção Novela Gráfica com a recuperação da sua obra mais emblemática, o amplamente premiado Traço de Giz, numa nova edição, repleta de extras.
Pré-publicado na revista Cimoc, a partir do número 134, de Maio de 1992, e publicado em Portugal um ano depois, numa edição há muito esgotada, Traço de Giz é um marco incontornável na carreira de Prado, que acabaria por voltar àquela ilha perdida no meio do Atlântico para duas curtas histórias, publicadas na revista (A Suivre) a propósito da morte de Hugo Pratt e do fim da mítica revista, também incluídas nesta edição.
Um trabalho emblemático e belíssimo, onde merece destaque a utilização dramática da cor, que abrange toda a prancha, incluindo as margens, jogando com a própria cor do papel, que vai mudando de acordo com as necessidades da história. Também interessante, em termos da utilização da cor como elemento narrativo, é o modo como as figuras surgem delimitadas por uma auréola luminosa, cuja intensidade varia de acordo com a dimensão mais realista, ou mais onírica, das cenas. Este aspecto resulta aqui de forma soberba, devido sobretudo à mestria com que as tintas acrílicas e os lápis de cera são explorados. Em termos estéticos, estamos perante um trabalho fabuloso, com o desenhador galego a captar perfeitamente a luz do Atlântico, trabalhando-a de forma a obter algumas das tonalidades irreais que povoavam os seus sonhos de infância, conseguindo, como o próprio refere “trazer para o papel um pouco da luz dos meus sonhos”.
Para além do esplendor da parte gráfica, Traço de Giz é também um eficaz exercício de estilo, tanto pelo rigor de construção da história, como pelo completo domínio dos mecanismos da narração em BD que revela. Jogando com os (des)encontros de um reduzido número de personagens, reunidas num espaço fechado na imensidão do oceano, Prado consegue construir uma história suficientemente "aberta", apesar da sua estrutura circular, para ser passível de várias interpretações. Isto é conseguido através da introdução de uma certa ambiguidade e de vários elementos alheios à história, alguns apenas sugeridos, outros explícitos (como a referência à Invenção de Morel de Adolfo Bioy Casares), que dão pistas ao leitor para construir a sua própria versão da história.
Como refere o próprio Prado: “A história é coerente. Desde o início que dou suficientes pistas para que a percebam. Falo de Borges, falo de Bioy Casares, faço citações explícitas de obras deles e de Tabucchi (…) o problema é que o leitor de BD não está habituado a encontrar estruturas diferentes do puramente linear, com apresentação, desenvolvimento e conclusão. Como quinta-essência da complicação incorporaram o flashback, mas isso é algo tão batido na narrativa, que me pareceu um pouco absurdo limitar-me a isso. E quanto a enganar o leitor, sou honesto e digo que parto de uma proposta de Bioy e Borges para criar um romance em que se engane o leitor, ocultando-lhe dados. Eu, na realidade, sou mais honesto do que eles, pois não chego a ocultar nada. Proporciono todos os elementos necessários para desvendar a história. Nem sempre em primeiro plano, mas é aí que exijo ao leitor que seja activo. Na realidade, proponho um jogo de cumplicidade um pouco mais profundo do que uma simples leitura linear. Podes ler a história, de uma maneira ou outra e já está. Ou podes entrar no jogo.”
A minha sugestão é que o leitor entre no jogo e se faça ao mar com Miguelanxo Prado, à procura dessa pequena ilha perdida no meio do Oceano, um “traço de giz no meio do azul do mar”, e mergulhe na leitura com todos os sentidos bem atentos.
Publicado originalmente no jornal Público de 01/07/2017

sábado, 1 de julho de 2017

Novela Gráfica III 1 - Ronin

Este é um daqueles títulos que eu tinha sugerido desde a primeira série de Novelas Gráficas e que, agora que foi finalmente editado em Portugal, tive o privilégio de traduzir e também prefaciar. Como é habitual nestes casos, deixo-vos com o texto do prefácio, enquanto que o texto de apresentação do volume, publicado no Público, surge apenas em imagem. Mas basta clicar sobre a imagem para o conseguir ler.


RONIN, OU O DERRUBAR DAS FRONTEIRAS

Apesar de trabalhos como Sin City, ou 300, que não se enquadram no género, o nome de Frank Miller é imediatamente associado às histórias de super-heróis, muito por via das história incontornáveis protagonizadas pelo Batman ou pelo Demolidor que escreveu e/ou desenhou, como Ano Um, O Regresso do Cavaleiro das Trevas, ou Renascido, só para falar de títulos publicados em Portugal pela Levoir.
Daí que, para os leitores menos atentos, possa parecer estranho ver o seu nome no título que abre esta terceira colecção dedicada à Novela Gráfica. Mas essa estranheza não tem qualquer razão de ser, pois Ronin é um marco dos comics americanos, uma obra extraordinariamente inovadora e que rompeu as fronteiras, até então fechadas a sete chaves, entre os comics americanos, a BD europeia e o manga japonês e, apesar de ter sido publicado originalmente em 1983 como uma mini-série em seis partes, conta um história complexa, pensada para ser lida como se de um livro se tratasse.
Como refere Jenette Kahn, a editora e mais tarde, Presidente da DC Comics, que está na génese de Ronin, ao convidar Frank Miller a apresentar uma proposta para fazer na DC a história com que sempre sonhou: “Frank queria escrever uma aventura de tamanho razoável, mas que funcionasse por si só, com um princípio, um meio e um fim. Se juntássemos as páginas que compunham os seis volumes (o que fizemos mais tarde, pois na altura, a ideia de recolher tudo num único volume nem sequer nos passou pela cabeça), obtínhamos uma história com o tamanho, a complexidade e o impacto de um romance.”
O esbater da fronteira entre os géneros, foi algo que sempre esteve bem presente no trabalho de Miller, que na série Daredevil, juntou elementos do romance policial negro e dos filmes de Kung-Fu e de ninjas às histórias de super-heróis, mas foi em Ronin que ele levou mais esta viagem das formas e em que a influência do manga e das histórias de samurais se fez sentir de forma mais evidente, tanto em termos da história, como em termos visuais e narrativos.
Numa entrevista à revista The Comics Jounal em 1981, dois anos antes de Ronin começar a ser publicado, Miller referia pela primeira vez, a influência da arte japonesa no seu trabalho dizendo: “Ultimamente, tenho estado imerso nas gravuras japonesas. Há algumas coisas nelas que me atraem e são próximas da BD. A sua influência pode não ser visível no meu trabalho nos tempos mais próximos, mas pode tornar-se bastante visível dentro de um ano. Pode demorar algum tempo para absorver um estilo”. Mas em termos narrativos, essa absorção já estava a ser feita, pois nesse mesmo ano de 1981, numa aventura de Elektra publicada na revista Bizarre Adventures #28 Miller experimenta pela primeira vez um tipo de narrativa baseada puramente na imagem. Como o próprio refere, essa história, “foi sobretudo um exercício de narrativa para mim. Foi um exercício em vários aspectos. Queria contar uma história sem balões de pensamento, ou caixas de narração. Foi também uma maneira de fazer uso das técnicas que aprendi ao ler os comics japoneses de samurais. Achei os comics japoneses verdadeiramente notáveis em vários aspectos. Consegui “ler” uma centena de páginas de um deles no outro dia sem me sentir confuso. E estava escrito em japonês! Eles apoiam-se completamente na parte visual. A abordagem deles à linguagem da BD é feita de uma forma mais pura do que a dos autores americanos.”    
História da luta entre um Ronin, um samurai sem mestre vindo do Japão medieval e o demónio que matou o seu senhor, na Nova Iorque distópica do século XXI, Ronin mistura as histórias de samurais e a ficção científica, numa narrativa complexa e ambígua, em que as coisas podem não ser bem o que parecem. Em relação ao anterior trabalho de Miller, Ronin é um salto no escuro. Uma aposta arriscada de um criador rebelde, que optou por sair da sua zona de conforto para criar algo inovador. Prescindindo de um arte-finalista, Miller, para além de escrever e editar a história, desenhou e passou ele próprio a tinta os seus desenhos, deixando a cor (que assume aqui uma dimensão tanto estética como narrativa) nas mãos de Lynn Varley, a sua namorada e futura colaboradora em inúmeros outros projectos, do Regresso do Cavaleiro das Trevas a 300.
Também em termos de planificação, é evidente o explorar de novos caminhos e de um tipo de narração mais fluida e dinâmica do que o habitual nos comics americanos, necessariamente mais apoiada na parte visual, face à ausência de balões de pensamento, ou de um narrador. Compare-se os primeiros capítulos, em que a alternância ritmada entre tiras horizontais e verticais, que marcou o seu trabalho na série Daredevil ainda se mantém, com os capítulos posteriores em que a dupla página ganha cada vez maior importância, seja para mostrar o crescimento orgânico do Complexo Aquarius, seja para dar outro impacto e espectacularidade às cenas de acção.  
Momento de viragem na carreira de Miller que, pela primeira vez reteve os direitos de autor sobre uma criação sua, Ronin foi, nas palavras do próprio Miller, “um processo de libertação. Passei do tipo de história que estava treinado para fazer, que toda a gente fazia, para desenvolver uma nova direcção para os comics.” (…) Consegui jogar com isso. Sair do registo convencional e introduzir temas e métodos visuais de diferentes origens. Além disso, tinha descoberto o que se fazia em França e no Japão em termos de BD… através dos trabalhos de Moebius e de Goseki Kojima. Essas duas influências colidiram comigo mais ao menos ao mesmo tempo e estão bem patentes em Ronin.”
O próprio traço de Miller ao longo da história reflecte essas duas influências, com as achuras nervosas do início a fazerem lembrar o traço incrivelmente dinâmico de Kojima, o desenhador de Lone Wolf and Cub, enquanto que o universo futurista do Complexo Aquarius e dos robots criados por Virgo, evocam os mundos de ficção científica de Moebius.
Inovador também em termos de produção, Ronin obrigou a utilização de um tipo de papel especial e pôs problemas específicos de impressão, de modo a que o excelente trabalho de cor em aguarela e guache de Lynn Varley pudesse ser devidamente reproduzido, criando assim condições para o aparecimento do prestige format, um tipo de edição mais cuidada que se tornaria regra para as mini-séries e graphic novels assinadas por autores com um certo estatuto.
Talvez por estar claramente à frente do seu tempo, Ronin não teve o sucesso imediato que os autores e a editora esperavam, não obstante o acolhimento entusiástico por parte dos seus colegas no meio dos comics. Mas o extraordinário sucesso de O Regresso do Cavaleiro das Trevas veio trazer outra visibilidade a Ronin que foi finalmente publicado num único volume em 1987 e que, precisamente trinta anos depois dessa primeira recolha em livro, conhece a sua primeira edição em português de Portugal.
Para terminar, demos mais uma vez a palavra a Frank Miller, para seja o próprio a definir o que foi para ele esta aventura de Ronin: “Foi um parque de diversões e foi um pesadelo. Nada me podia ter ensinado mais… fazer-me sentir melhor em relação à linguagem da BD ou fazer-me sentir mais motivado com essa linguagem do que Ronin”.