sexta-feira, 28 de outubro de 2016

30 Anos de Dylan Dog comemorados em força em Itália


No passado dia 26 de Setembro, em Milão foram apresentados os planos da editora Bonelli para a comemoração dos 30 anos da série Dylan Dog, um dos mais populares fumetti da editora de Tex. E a data nao podia ser melhor escolhida, pois foi a 26 de Setembro de 1986 que o primeiro número de Dylan Dog chegou às bancas e quiosques de Itália e foi também nesse dia, há cinco anos, que faleceu Sérgio Bonelli.
E a editora Bonelli não deixou de comemorar devidamente a ocasião, através de uma série de iniciativas, como Dylan Dog Presenta, um ciclo de cinema em articulação com a Universal Itália, que culmina com a exibição de 30 Anni di Incubi, um documentário sobre a série, na noite de Halloween, uma nova adaptação radiofónica das aventuras de Dylan Dog, e uma Dylan Dog Experience, (que mais do uma exposição promete ser uma experiência sensorial irrepetível, aproveitando um palácio abandonado no centro de Lucca que vai ser transformado em Hotel) apresentada no Festival de BD de Lucca, que começa hoje na bela cidade italiana.
Mas o ponto mais alto destas comemorações é o regresso de Tiziano Sclavi, o criador de Dylan Dog, à série que lhe deu fama com Dopo un Longo Silenzio, uma aventura de Dylan Dog lançada durante o Festival de BD de Lucca e que chega também hoje aos quiosques de Itália. Um título que não podia ser mais apropriado, pois vem quebrar o silêncio de Sclavi, que já não escrevia nenhuma aventura de Dylan Dog há quase 10 anos e que agora regressa por ocasião do 30º aniversário do investigador do macabro.
Pela minha parte, também não deixei pasar esta efeméride em branco e escrevi um longo artigo sobre Dylan Dog para a revista Bang!, que aqui publicarei, depois da revista chegar às lojas FNAC, o que deverá acontecer lá mais para o final do ano.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sandman 4: estação das Brumas


MORFEU NO INFERNO

Sandman – Vol. 4
Estação das Brumas
Argumento - Neil Gaiman
Desenhos – Mike Dringenberg, Kelley Jones, Malcon Jones III, Matt Wagner, P. Craig Russell e George Pratt
Quinta, 27 de Outubro
Por + 11,90€
Depois do interregno proporcionado pelas histórias curtas de Terra do Sonho, o quarto volume da série Sandman que chega às bancas na próxima quinta-feira, volta a centrar-se na saga de Morfeu, o Mestre dos Sonhos, que tem de regressar ao Inferno onde tinha estado no 1º volume para recuperar o seu elmo.
Se há algo que fica bem evidente nesta série, é que as acções têm consequências, que mais tarde ou mais cedo, acabam por se revelar. Vimos na primeira história do 2º volume que Morfeu tinha condenado a uma eternidade no Inferno a princesa Nada, uma mortal por quem se apaixonou, mas que se recusou a ficar a seu lado, mas só durante uma reunião familiar convocada pelo Destino, em que somos apresentados a (quase) todos os Eternos, é que o Senhor do Sonho reconhece que errou e se propõe voltar ao Inferno para corrigir esse erro, mesmo que para isso tenha de enfrentar o poder de Lúcifer, o anjo caído que reina sobre as planícies infernais.
Depois de um episódio centrado nos preparativos para o combate que se adivinhava épico entre Lúcifer e Morfeu, Neil Gaiman surpreende o leitor, pois Morfeu encontra um Inferno deserto e um Lúcifer que, farto das intrigas do Inferno e da forma como os mortais o usam como justificação para os erros e os pecados que cometem, decide abandonar a sua função como guardião do Submundo e a gozar a eternidade no meio dos mortais, deixando o Inferno nas mãos de Morfeu. Uma decisão absolutamente inesperada, que vem alterar o equilíbrio cósmico e a relação entre Céu e Inferno, e que deixa o Mestre dos Sonhos como fiel depositário da chave do Inferno. Um Inferno fechado e deserto, mas que continua a ser uma propriedade muito cobiçada pelos Deuses das mais diversas religiões, que se dirigem ao Domínio do Sonho, para tentarem pelos mais diversos meios que o Mestre dos Sonhos lhes ceda a chave do Inferno.
Em termos gráficos, o principal desenhador deste volume é Kelley Jones, contando com Malcon Jones III na passagem a tinta. A mesma dupla que já tinha desenhado Caliope e Um Sonho de Mil Gatos, duas histórias do volume anterior e cujo estilo barroco se revela perfeito para uma história com um sopro épico como esta, cheia de anjos, deuses e demónios. Veja-se a escala monumental dos portões do Inferno (que parecem saídos de um desenho feito a duas mãos por Druillet e Giger), a forma como trata elementos visuais já familiares ao leitor, como o elmo ou o manto de Morfeu, dando-lhes uma nova aparência muito mais espectacular, ou o modo subtil como a própria imagem de Morfeu se altera conforme os Deuses com que fala, ou a elegância majestática dos seus anjos.
Talvez o mais estranho para os leitores americanos, para quem Thor e Odin são personagens da Marvel, é a imagem que Jones dá deles, muito mais próxima da mitologia nórdica, do que da versão dos Deuses de Asgard criada por Jack Kirby para a “Casa das Ideias”.
Tal como acontecia em Casa de Bonecas, também este volume tem um capítulo que funciona como interlúdio, permitindo algum fôlego aos desenhadores da história principal para conseguirem manter o ritmo de publicação mensal. No caso da história desenhada por Matt Wagner, protagonizada por Edwin Paine e Charles Rowland, dois rapazes mortos que se vão tornar detectives juvenis, descobrimos que o Inferno pode ser um colégio interno inglês, naquele que é o episódio da série mais inspirado na própria vivência de Gaiman. Como refere o autor: “apesar de tudo nesta história ser inventado, este número é autobiográfico. Ou noutras palavras, Charles Rowland sou, em grande parte, eu.”
Publicado originalmente no jornal Público de 21/10/2016

domingo, 23 de outubro de 2016

Paco Roca regressa a casa com A Casa

UMA CASA CHEIA DE MEMÓRIAS

A Casa
Argumento e Desenho – Paco Roca
Sexta, 21 de Outubro
Por + 14,90 €
Depois de O Inverno do Desenhador, publicado este ano na série II da colecção Novela Gráfica, Paco Roca volta a marcar encontro com os seus leitores portugueses através de A Casa, o seu mais recente livro que chega às bancas e quiosques nacionais com o Público de sexta-feira, dia 21, no preciso dia em que arranca mais uma edição do AmadoraBD, o maior Festival nacional de Banda Desenhada, onde se espera que o autor espanhol possa marcar presença.
Conhecido inicialmente em Portugal pelo seu livro Rugas, uma belíssima reflexão sobre um tema delicado e cruel, a doença de Alzheimer, contada com um rigor que não se revela incompatível com a delicadeza e o humor, Paco Roca nasceu em Valência, em 1969, tendo-se estreado na BD em 1990, ilustrando capas para as revista El Vibora e Kiss Comics, da editorial La Cupula, onde saíram as suas primeiras histórias de BD, histórias curtas de temática erótica, desenhadas num estilo muito diferente do actual. Só no ano 2000 com o seu livro de estreia, El Juego Lúgubre, um livro em que a personagem e a obra de Salvador Dali servem de ponto de partida para uma história policial com contornos (naturalmente) surrealistas é que o seu estilo pessoal começa a despontar, evoluindo de forma fulgurante, até chegar à maturidade de Rugas e de O Inverno do Desenhador.

Galardoado com o prémio  para o Mejor Cómic Nacional de 2015, atribuído pela Confederación Española de Gremios y Asociaciones de Libreros (CEGAL), A Casa, que chegou às livrarias espanholas em Dezembro de 2015, surpreende pelo registo mais intimista, em comparação com o fôlego épico de Los Zurcos del Azar, o seu trabalho anterior, que está actualmente a ser adaptado para uma série de televisão de produção franco-espanhola.
Como bem refere o crítico e académico espanhol Pepo Perez, a memória é o tema dominante da obra de Paco Roca, seja a memória pessoal e colectiva de Zurcos del Azar, a memória perdida de Rugas, ou a memória dos derrotados de O Inverno do Desenhador. E, naturalmente, A Casa não foge a este tema, bem pelo contrário, fazendo dele o fulcro da narrativa. Uma narrativa com contornos autobiográficos, que a fotografia do autor com o pai no final do livro só vem ajudar a confirmar.
A Casa tem como ponto de partida o regresso de três irmãos à casa de família em que cresceram, um ano após a morte do seu pai, com o objectivo de esvaziarem a casa para a puderem vender. Mas o desfazer de uma casa implica um corte com um passado, cujas memórias impregnam os objectos, cheios de recordações de tempos mais simples e, talvez por isso, mais felizes. Ou seja, um relato intimista e de grande sensibilidade que fala da memória, de afectos, do passar do tempo, das relações familiares, com uma aparente simplicidade que esconde uma extraordinária eficácia narrativa.
Partindo da “Linha Clara” franco-belga para a transcender, Roca opta por um traço mais espontâneo do que o usado em O Inverno do Desenhador, em que a cor assume outra vez um papel fundamental para transmitir o passar do tempo. Gerindo com incrível precisão os diálogos e os silêncios, em páginas de estrutura clássica, em que a escolha do formato italiano (sobre o horizontal) do livro, corresponde perfeitamente à própria arquitectura da casa, lentamente “levantada do chão” (para citar Saramago) e ao ritmo da história, Roca arranja ainda espaço para algumas soluções narrativas notáveis, como a figueira transformada em árvore genealógica, ou o diagrama em que nos apercebemos das memórias guardadas pelos objectos deitados no contentor do lixo.
Livro após livro, Paco Roca tem-se afirmado rapidamente como um dos mais importantes autores europeus da actualidade e A Casa é mais um passo decisivo nesse caminho do autor espanhol em direcção ao sublime.
Publicado originalmente no jornal Público de 14/10/2016

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Sandman 3: Terra do Sonho

A MUSA, OS GATOS, O POETA E A MÁSCARA

Sandman - Vol 3
Terra do Sonho
Argumento - Neil Gaiman
Quinta, 20 de Outubro
Desenhos – Kelley Jones, Charles Vess, Colleen Doran e Malcon Jones III
Por + 11,90 €
Considerado por muita gente (entre os quais me incluo) como um dos melhores volumes da série, Terra do Sonho funciona como um interregno na longa história de Morfeu, para permitir a Neil Gaiman explorar as infinitas possibilidades que o tema do sonho oferece, num punhado de histórias que lidam com questões como a criatividade e o preço dos sonhos, tanto os concretizados, como os que ficam por cumprir.
Terra dos Sonho é pois constituída por quatro histórias autónomas e auto conclusivas, em que um escritor em busca de inspiração aprisiona uma musa, acabando por descobrir que há sempre um preço a pagar pelas ideias; uma gatinha descobre que houve um tempo em que o mundo era dominado pelos gatos e que só o poder dos sonhos poderá restaurar esse domínio; uma criatura superpoderosa anseia pela única coisa que lhe está vedada: a morte; e o poeta William Shakespeare apresenta a sua última peça para um público muito especial. Ou seja, histórias tão diferentes sobre a vida (e a morte), a criatividade, a solidão e o destino, unidas pela presença de Morfeu, o Senhor dos Sonhos e ilustradas por diferentes desenhadores que voltaremos a encontrar ao longo da série, numa demonstração do cuidado de Gaiman em encontrar sempre o artista com o traço mais adequado às diferentes histórias que quer contar.
Mesmo que seja muito difícil resistir ao encanto de Um Sonho de Mil Gatos, em que descobrimos que o Domínio do Sonho se estende também ao reino animal, a mais célebre dessas histórias é Sonho de uma Noite de Verão, em que Morfeu reencontra Shakespeare, depois de um primeiro encontro em Homens de Boa Vontade, história publicada no volume anterior, em que o poeta lhe diz “que queria dar aos homens sonhos que vivessem muito depois de ele ter morrido”. Um desejo que será satisfeito através de um acordo em que o dramaturgo se compromete a escrever duas peças para o Rei dos Sonhos.
Uma dessas peças é precisamente Midsummer’s Night Dream, conforme descobrimos nesta história de Terra dos Sonho, que foi justamente a primeira BD (e também a última, pois o regulamento foi imediatamente alterado para impedir que um sacrilégio desses voltasse a acontecer...) galardoada com o World Fantasy Award, um prestigioso prémio literário na área da literatura fantástica.
Ponto de entrada ideal no universo mágico de Sandman, o Mestre dos Sonhos, Terra do Sonho é o primeiro ponto alto de uma série incontornável, exemplo maior da obra de um autor tão criativo como talentoso, que sabe muito bem para onde vai e que se prepara para escrever algumas das páginas mais memoráveis da BD em língua inglesa.
Publicado originalmente no jornal Público de 14/10/2016 

domingo, 16 de outubro de 2016

Sandman 2: Casa de Bonecas


A CASA NO MUNDO DO SONHO 


Sandman - Vol 2
Casa de Bonecas
Argumento – Neil Gaiman
Desenhos – Mike Dringenberg e Malcon Jones III
Quinta, 13 de Outubro
Por + 11,90 €
Neste segundo volume da série Sandman que, curiosamente, até foi o primeiro a ser originalmente publicado em livro, o leitor vai ficar a conhecer, para além de uma namorada de Morfeu, a quem o orgulho do Mestre dos Sonhos condenou à eternidade no Inferno, mais dois elementos da família dos Eternos, Desejo e Desespero. Mas a história centra-se sobretudo no modo como Morfeu tem de lidar com as consequências que o seu afastamento durante os anos em que esteve prisioneiro, teve sobre o Domínio do Sonho. Uma ausência que possibilitou a fuga de alguns pesadelos, como Bruto e Sebo, e especialmente, o Coríntio, um serial-killer com dentes no lugar dos olhos, que devora os globos oculares daqueles que mata e que serviu de inspiração a uma série de assassinos em série, que se vão reunir numa convenção, numa cena que serve a  Neil Gaiman para parodiar as convenções de ficção científica e de Banda Desenhada e a glamourização da figura do serial-killer que o aparecimento da Internet só veio acentuar.
Mas o ponto fulcral da história é Rose Walker, cuja simples existência ameaça o equilíbrio entre o Domínio do Sonho e o Mundo Desperto em que vivemos, e a casa na Flórida onde ela foi viver, a tal Casa de Bonecas do título (que, ao contrário do que muitos leitores pensaram, não é uma homenagem à peça homónima de Ibsen, mas sim ao romance infantil do mesmo nome de Rumer Godden) e os seus peculiares habitantes. Habitantes como Hal Carter, o simpático senhorio, o casal Barbie e Ken, as sinistras irmãs Chantal e Zelda e a sua colecção de aranhas e o misterioso Gilbert, que na verdade é Fidler's Green, um local mágico, um campo verdejante para onde os marinheiros vão depois de morrer, referido por Herman Melville no seu romance Billy Budd e a quem Gaiman e Mike Dringenberg dão as feições de G. K. Chesterton, num bom exemplo de como as referências literárias estão sempre presentes na série.
E por falar em literatura, em Homens de Boa Fortuna, episódio intermédio, em que Dringenberg cede o lugar a Michael Zulli, para além de conhecermos Hob Gadling, o homem que não queria morrer e o único amigo humano do Senhor dos Sonhos, descobrimos que Morfeu faz um acordo com William Shakespeare, garantindo a imortalidade para sua obra, em troca de duas peças, Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade, obras do poeta inglês que irão estar em destaque em futuros volumes.  
Depois da saída, por divergências criativas, de Sam Kieth, o desenhador inaugural de Sandman, que declarou numa entrevista que se sentia na série “como Jimmy Hendrix nos Beatles”, Dringenberg que o substituiu, contando com Malcon Jones III como arte-finalista preferencial, deu um toque mais realista à arte de Sandman, que assenta como uma luva à própria evolução da série, que se foi gradualmente centrando no lado humano das personagens, mesmo das que são muito mais do que humanos, como é o caso dos Eternos, ou das criaturas que povoam o Mundo do Sonho. 
O seu estilo mais tradicional, por oposição ao traço mais barroco e fantasista de Keith não colide com uma grande versatilidade, nem com o uso de soluções narrativas engenhosas, como as cenas em plano subjectivo, vistas através dos óculos escuros do Coríntio, a alteração do sentido de leitura da página, quando entramos no Domínio do Sonho (na mesma linha do que Guido Crepax tinha feito na história Valentina no Metro, recentemente publicada na série II da colecção novela Gráfica), ou a bela homenagem a Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCkay nos sonhos de Jed. 
Publicado originalmente no jornal Público de 06/10/2016

domingo, 9 de outubro de 2016

Sandman 1: Prelúdios e Nocturnos


SANDMAN DE NEIL GAIMAN 
FINALMENTE EM PORTUGAL, EM EDIÇÃO INTEGRAL

Sandman
Vol 1 - Prelúdios e Nocturnos
Argumento - Neil Gaiman
Desenhos – Sam Keith, Mike Dringenberg e Malcon Jones III
Quinta, 06 de Outubro
Por + 11,90 €
No ano em que se completam vinte anos sobre o fim da publicação original em revistas mensais, Sandman, a série de culto de Neil Gaiman chega finalmente a Portugal em versão integral, suprindo assim mais uma grave lacuna da edição nacional de Banda Desenhada. São onze volumes inéditos em Portugal - com a excepção do primeiro e do terceiro - que o Público e a Levoir dão a descobrir aos leitores portugueses, numa cuidadosa edição em capa dura que faz justiça à obra de Gaiman, um dos maiores e mais populares escritores do fantástico, seja na literatura, na BD, no cinema e na televisão, campos em que o prolífico escritor inglês tem espalhado o seu talento, sempre com grande sucesso.
 Primeiro grande sucesso de Gaiman, que antes de Sandman tinha assinado apenas Violent Cases e Orquídea Negra, duas novelas gráficas ilustradas pelo seu amigo Dave McKean, a série é, nas palavras do seu autor: “um conto acerca dos sonhos, uma história acerca das histórias. É acerca do sentido dos sonhos, da razão pela qual precisamos deles e deles talvez precisarem de nós. E é acerca do Rei dos Sonhos, que é chamado por muitos nomes durante a história.”
Publicada pela DC, a editora de Batman e Super-Homem, a série Sandman oferecia aos leitores habituais da editora algo de diferente e inesperado, mas que permitiu que Sandman conquistasse tanto os fãs dos super-heróis, como o público da fantasia e do terror, ou os apreciadores das novelas gráficas, género que só então começava a ganhar o devido reconhecimento, graças ao sucesso de títulos como Maus, Batman: O Regresso do Cavaleiro das Trevas, ou Watchmen. Dando novamente a palavra a Gaiman: “eu estava realmente na corda bamba. Queria que a série se parecesse suficientemente com uma revista de super-heróis, para permitir que as pessoas que gostam de super-heróis a lessem; e ao mesmo tempo queria que se parecesse também com uma revista de terror, para me permitir escrever as histórias de fantasia que eu estava interessado em escrever.”
A estratégia do escritor é bem evidente neste primeiro volume, marcado pelo registo do terror, mas que segue a estrutura clássica da viagem do herói. Uma estrutura linear que acompanha o percurso de Morfeu, o Mestre dos Sonhos, que começa a história como prisioneiro de um grupo de ocultistas ingleses, que pensavam ter capturado a Morte e que, depois de conseguir escapar ao seu cativeiro, tem de recuperar os símbolos do seu poder. Um percurso em que conta com o auxílio de outras personagens da DC, como a Liga da Justiça e John Constantine e Hettie Louca, criadas por Alan Moore na série Swamp Thing e que leva Morfeu até ao Inferno, onde encontra Lúcifer, A Estrela-da-Manhã, o anjo caído e Senhor dos Infernos que irá ter um papel fundamental ao longo da série e ganhará até uma série própria,

escrita por Mike Carrey com a bênção de Gaiman.
Indo buscar personagens e locais a diversas mitologias clássicas, à literatura e à história da DC, a que se juntam inúmeras personagens criadas por si, Gaiman constrói um mundo de fantasia tão fascinante como coerente, onde reina a família dos Eternos, constituída por sete irmãos, que são a corporização de conceitos, sentimentos e ideais como o Destino, a Morte (Death, no original), o Sonho (Dream, no original), a Destruição, o Desejo, o Desespero e o Delírio (que antes de enlouquecer, era o Deleite).  
Depois de recuperar o capacete, a bolsa com areia e o rubi que são os símbolos do seu poder, Morfeu tem de reconstruir o seu Domínio do Sonho, deixado ao abandono durante o seu cativeiro, mas antes, este primeiro volume termina com um momento de pausa entre o Sonho e a sua irmã, Morte, que é também um momento de viragem na série, que deixou de ser apenas uma série de aventuras fantásticas, vividas por criaturas com poderes para além da imaginação, para se concentrar nas relações humanas, pois apesar de todo o seu poder, os Eternos são uma família perfeitamente disfuncional, muita humana nos seus comportamentos.
Publicado originalmente no jornal Público de 30/09/2016

domingo, 2 de outubro de 2016

Sandman - Apresentação da nova colecção da Levoir

Mal acabou a série II da colecção Novela Gráfica, eis que surge mais uma colecção Público/Levoir, neste caso dedicado a Sandman, a série de culto de Neil Gaiman, que finalmente vai ser publicado na integra em Portugal. Para a semana, aqui deixarei o texto sobre o 1º volume, mas antes disso, aqui fica o texto de apresentação da colecção e do seu autor.

BEM-VINDO À TERRA DO SONHO, O REINO DE SANDMAN


Para aqueles que, depois de duas séries da colecção Novela Gráfica, ainda têm dúvidas de que a Banda Desenhada possa atingir a qualidade e complexidade da literatura, a série Sandman que o Público e a Levoir vão finalmente publicar na íntegra - depois de uma primeira tentativa, por outra editora, que se ficou apenas pela publicação do primeiro e do terceiro volumes – deve ser suficiente para dissipar de vez essas dúvidas.
Desde os primórdios da Banda Desenhada, com o Little Nemo de Winsor McCkay que o mundo dos Sonhos se revelou um palco privilegiado para a imaginação dos autores de BD. Mas ninguém soube explorar tão bem as infinitas possibilidades do mundo dos sonhos como o britânico Neil Gaiman nesta série.
Pegando num obscuro personagem da DC Comics, a editora de Batman e do Super-Homem, criado nos anos 40 e recriado posteriormente por Jack Kirby e, partindo do universo dos super-heróis e dos contos de terror para muito rapidamente os transcender, Gaiman soube transformar uma série desconhecida, inicialmente ilustrada por desenhadores de segunda linha, numa obra-prima da BD, verdadeiro exemplo de como é possível contar histórias interessantes e bem escritas, em que a temática fantástica não perturba a profunda humanidade das personagens.
O Sandman que Neil Gaiman criou em 1989, a partir de um convite da editora da DC, Karen Berger, e a que deu vida ao longo de mais de 8 anos e 75 números mensais e um número especial que durou a revista, nada tem a ver com o Sandman de Kirby, mesmo que o escritor homenageie as diferentes incarnações da personagem, introduzindo-as, de forma tão hábil como eficaz, na história de Morfeu. O Senhor dos Sonhos é, nas palavras do seu criador, “uma personificação antropomórfica, quase uma ideia”, uma entidade mítica mais poderosa do que os Deuses (que morrem quando os homens deixam de acreditar neles) cujas aventuras têm como palco o Mundo dos Sonhos, onde reina.
Publicada numa editora especializada em super-heróis, por um escritor que sempre abraçou o fantástico nas suas mais variadas formas, Sandman mistura fantasia, mitologia e literatura, numa série protagonizada por criaturas fantásticas, mas que têm qualidades e defeitos muito próximos dos seres humanos cuja vida controlam e influenciam. A série, como refere Neil Gaiman no prefácio à primeira edição portuguesa, é: “um conto acerca dos sonhos, uma história acerca das histórias. É acerca do sentido dos sonhos, da razão pela qual precisamos deles e deles talvez precisarem de nós. E é acerca do Rei dos Sonhos, que é chamado por muitos nomes durante a história.”
E a história começa precisamente com Morfeu, o Rei dos Sonhos, a conseguir libertar-se da redoma mágica onde esteve aprisionado durante décadas. Mas o Mestre dos Sonhos terá de percorrer um árduo caminho para recuperar os símbolos dispersos do seu poder e restaurar o esplendor perdido do Domínio do Sonho e acabará por compreender que as decisões que tomar ao longo desse caminho terão custos elevados, que terá forçosamente de pagar.
Terminada a história de Sandman em 1996, após mais de duas mil páginas de BD, e um total de 26 Prémios Eisner, incluindo 3 de Melhor Série Mensal e 4 de Melhor Argumentista, Gaiman dedicou-se a outros projectos mas, ocasionalmente, acaba por voltar ao Reino dos Sonhos. Foi o que aconteceu com The Dream Hunters, um conto de Sandman ambientado no Japão medieval, ilustrado por Yoshitaka Amano (responsável pela concepção visual do jogo Final Fantasy), com Endless Nights, em que os membros da família dos Eternos são desenhados por grandes nomes da BD mundial, como Milo Manara e Miguelanxo Prado e, mais recentemente com Sandman: Overture, uma história maravilhosamente ilustrada por J. H. Williams III, que funciona simultaneamente como prólogo e epílogo da série e explica como é que Morfeu foi parar na situação de prisioneiro de um grupo de ocultistas ingleses, em que o encontramos no começo da série. Projectos paralelos, que talvez possamos ver um dia editados em Portugal, se o interesse dos leitores assim o justificar.
Mas o que é absolutamente garantido é a publicação integral dos 10 volumes da série principal (que serão 11 na versão portuguesa, já que o volume 9 da edição original será desdobrado em dois, por questões de equilíbrio no número de páginas de cada volume), que chega às bancas e quiosques nacionais já no próximo dia 6 de Outubro. Por isso, aqui fica o convite para viajarem com Morfeu até à Terra do Sonho e descobrirem uma das melhores séries de BD de todos os tempos. Com um guia como Neil Gaiman e as dezenas de artistas que dão vida e cor à sua imaginação, esta vai ser certamente uma viagem inesquecível.

OS ETERNOS E OUTRAS CRIATURAS DO SONHO

Embora dê nome à série, Morfeu, o Oneiromante, Mestre do Sonho, é apenas um de uma vasta galeria de personagens criadas por Neil Gaiman, a partir da mitologia clássica, da literatura, do panteão da editora DC, ou da sua própria imaginação. E, naturalmente o destaque maior vai para a família de Morfeu, os Eternos. Sete entidades que já existiam antes da humanidade sonhar com os Deuses e continuarão a existir depois de o último Deus morrer. Estes sete irmãos, por ordem de idade, são a corporização de conceitos, sentimentos e ideais como o Destino, a Morte (Death, no original) , o Sonho (Dream, no original), a Destruição, o Desejo, o Desespero e o Delírio. Depois do Sonho (Morfeu), o primeiro Eterno a entrar em cena é a Morte, a sua irmã mais velha, a quem Gaiman e os desenhadores que com ele trabalharam deram uma aparência inspirada na cantora Siouxsie Sioux, dos Siouxsie and the Banshees, cujo estilo e indumentária serviram parcialmente de modelo aos góticos, na mesma época em que se publicaram também os primeiros romances de vampiros da Anne Rice. Também por ir de encontro ao Zeitgeist da época, a Morte tornou-se a mais popular personagem da série e a primeira a protagonizar outras histórias, nas mini-séries The High Cost of Living e The Time of Your Life. Os restantes Eternos vão sendo introduzidos lentamente na trama, com Destruição a ser o ultimo a ser apresentado aos leitores.
Interagindo com os Eternos, encontramos personagens mitológicas, como a musa Calíope, com quem Morfeu, tem um filho, Orfeu, cuja trágica e infrutífera descida aos infernos para salvar a sua amada Eurídice, é um dos episódios mais célebres da mitologia clássica, que Gaiman recria na BD.
É também no Inferno que encontramos outra personagem mitológica e literária, que Gaiman vai reinventar: Lúcifer, A Estrela-da-Manhã, o Anjo Caído do poema de Milton que reina nos infernos. Um Lúcifer que, na versão de Gaiman, farto da vida que levava, decide abandonar o Reino das Trevas e gozar a eternidade no mundo da superfície, na companhia dos mortais, vivendo diversas aventuras numa série paralela a Sandman, escrita por Mike Carrey, com a bênção de Gaiman e cujo sucesso fez com que tenha sido recentemente adaptada à televisão.
Mas, para além de outras personagens mitológicas, como Caín e Abel, cuja presença já era recorrente no Universo DC, graças à série House of Secrets, ou do Coríntio, o mais terrível dos pesadelos criado por Morfeu, com dentes no lugar dos olhos, a série vive muito da interacção destas criaturas fantásticas com os humanos.
E aqui, dois humanos se destacam. O primeiro é Hob Gadling, o homem que não queria morrer e a quem Morfeu concede esse dom, para que se possam encontrar de cem em cem anos no mesmo bar. O outro humano em destaque, também obteve a vida eterna, não para si, mas para a sua obra. Falo de William Shakespeare, que em troca da imortalidade das suas criações literárias, se comprometeu a escrever duas peças para Morfeu; Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade. Peças que servem de base a dois dos mais famosos capítulos de Sandman, ilustrados por Charles Vess.

Neil Gaiman
Nascido a 10 de Novembro de 1960, Neil Gaiman é um dos mais importantes nomes da BD de língua inglesa, género em que se estreou em 1987, depois de uma curta carreira como jornalista musical, com Violent Cases, uma novela gráfica feita em colaboração com o seu amigo Dave McKean, com quem voltaria a colaborar em diversas ocasiões, mas foi a série Sandman que o ajudou permitiu atingir o estatuto impar que hoje detém no mundo da Banda Desenhada. Mas a actividade de Gaiman como escritor não se limita à BD, pois o autor inglês tendo espalhado igualmente o seu talento pela literatura, pelo cinema e pela televisão.
Escritor com presença assídua nas listas de Best Sellers do jornal New York Times, Gaiman escreveu contos, romances, livros infantis e ensaios, que lhe permitiram tornar-se num dos mais premiados escritores de sempre, vencendo quatro prémios Hugo, dois Nebulas, seis Locus, quatro Bram Stoker, as medalhas Newberry and Carnegie e muitas outras distinções importantes. Sendo um escritor eminentemente visual; Gaiman escreveu muitas vezes com a transposição para a imagem em mente não só na BD, mas também no cinema e na televisão. O criador britânico viu várias obras suas adaptadas ao cinema (como Coraline e Stardust), ou à televisão (como Neverwhere e American Gods). Além de participar na adaptação dos seus textos a outros meios, Gaiman adaptou os diálogos da versão inglesa do filme Princesa Mononoke, de Myiazaki; escreveu, a meias com Roger Avary (Pulp Fiction) o argumento do filme Beowulf e, com o seu amigo Dave McKean como director, escreveu o guião de Mirror Mask, para os estúdios de Jim Henson, o criador dos Marretas; para além de ter escrito e realizado uma curta-metragem chamada A Short Film About John Bolton, em que transforma o seu amigo e colaborador John Bolton numa personagem de ficção.



Dave McKean
Nascido em Maindenhead, Inglaterra, em 1963, Dave McKean é um extraordinário criador de imagens, um designer de nível mundial, conhecido pela forma harmoniosa (e talentosa) como mistura desenho, fotografia, pintura, colagens e imagens digitais, em ilustrações ou em Banda Desenhada, género pelo qual é mais conhecido em Portugal. Apesar da sua formação em Belas-Artes, o seu principal interesse sempre foi contar histórias e a Banda Desenhada revelou-se o meio ideal para o fazer. Conforme ele próprio confessa: “adoro o suporte (a BD). Adoro contar histórias. Adoro arte narrativa. Nunca me interessei muito em pintar para expor nas galerias de arte: Acima de tudo, o que eu gosto é de contar histórias. E mesmo nas ilustrações isoladas tento sempre que elas contenham uma história. Sempre adorei o cinema, mas acabei por fazer desenhos, pinturas e fotografias. E se juntarmos a arte com a narrativa temos Banda Desenhada. Sempre li BD desde miúdo e à medida que cresci e entrei nas Belas-Artes, continuei a fazê-lo.”

McKean é responsável pelo design e pela totalidade das capas da série Sandman, seja das revistas mensais, seja das várias edições encadernadas, criando uma imagem gráfica extremamente inovadora e imediatamente reconhecível, que rompia com as convenções da época, sendo o primeiro comic book mensal em que, por regra, o protagonista não aparece nas capas, afirmando-se como um elemento distintivo da série. Magníficas ilustrações, em que o design se sobrepõe ao desenho, as capas de Sandman são um exemplo da criatividade e da versatilidade de McKean, que adapta o seu registo, criando um estilo e uma abordagem distinta para cada arco de história, utilizando para isso as mais variadas técnicas artísticas.
Textos publicados originalmente no jornal Público de 01/10/2016