terça-feira, 29 de novembro de 2016

NOS TRINTA ANOS DE DYLAN DOG - Parte II: Da BD para o cinema


Conforme prometido, aqui está a segunda parte da versão (muito) alargada do artigo que escrevi para o último número da revista Bang! a propósito do trigésimo aniversário de Dylan Dog. A primeira parte do artigo pode ser lida aqui e a terceira e última parte será colocada on line no sábado, dia 3 de Dezembro.  

PARTE II - DA BD PARA O CINEMA

Curiosamente, antes de criar Dylan Dog, Sclavi tinha proposto a Bonelli recuperar os personagens de um dos seus primeiros romances, Dellamorte Dellamore e transformá-los em heróis de uma série de BD, sendo Francesco Dellamorte uma espécie de estudo preparatório para Dylan Dog, com quem compartilha o aspecto físico e a forma de vestir, para além de um peculiar assistente. Essa ideia acabou por não se concretizar no papel, apesar de Sclavi ter escrito uma história, Orore Nero, publicada no Dylan Dog Speciale nº 3, de 1989, em que Francesco Dellamorte e Dylan Dog quase que se encontram, mas aconteceu de forma indirecta no cinema, graças ao filme realizado em 1994 por Michele Soavi a partir do citado romance. Nascido em 1957, Soavi trabalhou com Dario Argento e Lamberto Bava, para além de Terry Gilliam, realizadores que o escolheram pelo seu impecável sentido estético e de composição, bem patentes em Dellamorte Dellamore, o ponto mais alto de uma curta cinematografica. Depois de ter servido de modelo para Dylan Dog, o actor inglês Rupert Everett acabou por ser o protagonista de Dellamorte Dellamore, o filme visualmente deslumbrante que consegue transpor com inesperado sucesso o universo único de Tiziano Sclavi para o grande ecrã e que o próprio Sclavi considera mesmo “muito melhor do que o livro”.
Confirmando as ligações de Dylan Dog e do seu criador com o cinema, o herói emprestou o nome ao Dylan Dog Horror Fest, um festival de cinema de terror, que teve quatro edições, entre 1987 e 1993, onde os desenhadores de Dylan Dog partilhavam o protagonismo com grandes nomes do cinema de terror, como Dário Argento, Clive Barker, Lamberto Bava, Herschell Gordon Lewis, Sergio Stivaletti, Robert Englund (o actor que faz de Freddy Krueger na série Nightmare in Elm Street) e Jeffrey Combs.
Essa ligação entre Dylan Dog e o cinema, acabaria por dar origem, em 2007, a um filme realizado por Kevin Munroe, que já tinha dirigido o 4º e último filme das Tartarugas Ninja. Um filme que passou despercebido do público, apesar de contar com Brandon Routh no principal papel e Sam Huntington no do seu assistente Marcus.
Um elenco muito habituado aos filmes inspirados na BD, pois Routh participou no divertidíssimo Scott Pilgrim Vs the World, foi o Super-Homem em Superman Returns de Bryan Singer, para além de participar actualmente nas séries televisivas Arrow e Legends of Tomorrow, como Ray Palmer, o Átomo da DC. Apesar da reconhecida experiência do elenco na transposição de BDs para o cinema, esta adaptação não prima pela fidelidade à BD original, bem pelo contrário, pois a acção foi transposta de Londres para New Orleans e, por questões de direitos, o ajudante de Dylan Dog na BD, inspirado no actor Groucho Marx teve que ser substituído por Marcus, o personagem de Hutington no filme, responsável pelos momentos mais divertidos, quando é transformado num zombie e tem que aprender a adaptar-se à sua nova condição de morto-vivo.
Mas o humor da personagem de Marcus e de alguns bons diálogos não salvam um filme com um argumento cheio de buracos, uma direcção pouco criativa, efeitos especiais bastante fracos e que não consegue preservar a originalidade de Dylan Dog, que distinguia a série de outras abordagens ao género do terror, ficando bem longe dos inúmeros filmes de fã, com destaque para os escritos, realizados e interpretados por Roberto D’Antona com meios infinitamente inferiores.
Apesar do resultado estar muito longe de ser brilhante, iniciativas como o filme ajudaram à popularidade da série, que do estatuto inicial de série de culto com vendas não especialmente entusiasmantes, rapidamente evoluiu para um verdadeiro fenómeno de massas, aspecto a que não será estranho a grande qualidade dos seus principais desenhadores, como Angelo Stano, Bruno Brindisi, Giovanni Freghieri, Gustavo Trigo, Nicola Mari, Giampero Casertano e principalmente Corrado Roi. O sucesso de Dylan Dog foi tal, que chegou mesmo ultrapassar Tex como o título mais vendido da casa Bonelli, ao mesmo tempo que a personagem, para além de ver as suas aventuras reeditadas nos mais variados formatos, era adaptada a outros meios de comunicação, desde os jogos de computador ao teatro radiofónico. Nesse campo, o mérito vai para o realizador Armando Traverso que, depois do sucesso das versões radiofónicas de outros clássicos dos fumetti como Tex, Lupo Alberto e Diabolik, decidiu adaptar algumas das mais famosas aventuras de Dylan Dog à rádio, numa série de 25 programas, emitidos em 2002 pela cadeia Radio Due.
Apesar do sucesso da série, que conseguiu conciliar a crítica com o grande público, aliando o sucesso comercial ao prestígio cultural, traduzido numa série de artigos nos mais prestigiados jornais e revistas italianas e não só, e em várias Tese de Mestrado e Doutoramento, Sclavi acabaria por se afastar gradualmente da escrita das aventuras de Dylan Dog. Mais do que o cansaço em relação à personagem, o afastamento foi motivado pela dificuldade cada vez maior em escrever novas aventuras para o (anti)herói que criou. Conforme confessou a Umberto Eco: “a força de Tex provém do carácter repetitivo das histórias: duas ou três tramas e algumas variações sobre esses temas. Isso nunca funcionaria com Dylan Dog, porque o leitor quer ser surpreendido. E asseguro-lhe que ao fim de 140 números é muito difícil continuar a surpreender os leitores.”
Por isso, Sclavi abandonou o seu herói, regressando apenas por ocasião do vigésimo aniversário, em 2006, no Dylan Dog nº 240, assinando o argumento de Ucronia, uma história ilustrada por Franco Saudeli, desenhador que, depois de nos anos 80 e 90 se ter dedicado à BD erótica, trabalha actualmente para a editora Bonelli. Um regresso que se revelou temporário, pois, depois de escrever também as histórias dos nº 243 e 244, o escritor voltaria a afastar-se da escrita da série que criou.



CONTINUA...

sábado, 26 de novembro de 2016

NOS TRINTA ANOS DE DYLAN DOG - Parte I: O Nascimento de um série de Culto


Como já referi aqui, já se encontra nas lojas FNAC o nº 21 da revista Bang!, a revista de distribuição gratuita da Saída de Emergência, dedicada ao fantástico e à ficção científica nos mais diversos suportes, em que presto homenagem aos 30 anos de uma das minhas séries de BD favoritas: Dylan Dog. Apesar de não ter quaisquer limitações de espaço em relação aos textos que escrevo para a Bang!, optei  por fazer duas versões do meu texto. A versão que saiu impressa em quatro páginas da revista e uma segunda versão, mais alargada e com novidades sobre o futuro da série, que aqui publicarei em três partes. A primeira, podem lê-la já a seguir, enquanto que a segunda parte do texto ficará online aqui no Blog na terça-feira, 29 de Novembro e a parte final do texto será publicada no sábado seguinte, dia 3 de Dezembro.

PARTE 1 - O NASCIMENTO DE UMA SÉRIE DE CULTO 

Personagem maior dos fumetti (nome dado à Banda Desenhada em Itália) Dylan Dog, o investigador do oculto vegetariano, abstémio e com vertigens, criado por Tiziano Sclavi para a editora Bonelli, fez trinta anos em Outubro de 2016. Um bom pretexto para evocar neste espaço uma personagem pouco conhecida em Portugal, onde apenas chegou durante algum tempo via Brasil, através das edições da Mythos, mas cuja influência assumida é bem visível (e assumida) no Dog Mendonça, de Filipe Melo e Juan Cavia. 
Publicado pela primeira vez em Itália em Outubro de 1986, na história L’Alba dei Morti Viventi, uma história de zombies ilustrada por Angelo Stano, onde o terror se misturava com o humor, Dylan Dog cedo se tornou uma personagem de culto, capaz de conquistar tanto as leitoras, com a sua aura romântica, como os apreciadores dos filmes de terror, que não ficavam indiferentes ao lado gore da série. E a época de ouro do cinema de terror italiano, representado por nomes como Dário Argento, Mário e Lamberto Bava e Michele Soavi, é uma das grandes referências de Sclavi, que nessa primeira história leva mesmo o seu herói ao cinema para ver Dawn of the Dead, de George Romero, um filme de zombies cujo título Sclavi vai pedir emprestado para a primeira aventura de Dylan Dog. Do mesmo modo, o inspector da Scotland Yard, a quem Dylan Dog ajuda nas suas investigações, chama-se Bloch, como o escritor de Psycho e o apartamento e escritório do herói fica em Londres, no nº 7 da Craven Road, uma morada no bairro londrino de Paddington que, apesar de remeter para o cineasta Wes Craven, existe mesmo e onde está instalada um café que, a partir de 2013, mudou de nome para Café Dylan Dog.
Nesta primeira aventura de Dylan Dog, já estão presentes todos os elementos que contribuíram decisivamente para o sucesso da série, desde o humor (irónico no caso de Dylan e delirante no do seu assistente Groucho que, mais do que inspirado no actor, é o próprio Groucho Marx, ou melhor, um doente mental que acha que é Groucho Marx); o erotismo (há sempre uma bela cliente por quem Dylan se apaixona); uma angústia existencial e uma sensação de claustrofobia que o humor não consegue apagar; e o uso desenfreado das mais variadas citações e homenagens, do cinema à BD e à literatura, que Sclavi faz questão de assumir e integrar de forma harmoniosa nas suas histórias, fazendo sua a máxima de Totó, o grande actor e comediante italiano que dizia: “todos são capazes de criar, copiar bem é que é mais difícil”.
Os pormenores sobre o passado de Dylan Dog vão sendo revelados a conta-gotas, geralmente aproveitando ocasiões especiais, com edições à altura da importância do acontecimento, em que o preto e branco habitual dá lugar à cor. Assim, a estranha relação de Dylan Dog, com o pai, o mago Xabaras é explorada no nº 100 da série, enquanto que o passado de Dylan enquanto polícia, antes de se estabelecer como investigador privado e a sua história de amor com Lillie Connelly, uma jovem irlandesa militante do IRA, são tratados no nº 121, que coincide com o décimo aniversário da série. No Dylan Dog nº 200, para além do ficarmos saber como Groucho se tornou assistente do herói, descobrimos que Dylan caiu no alcoolismo após a morte de Lillie, na sequência de uma greve de fome, e que Groucho e Bloch foram decisivos para que Dylan conseguisse libertar-se do vício.
Quanto à origem do estranho nome do herói, o próprio Sclavi explica como surgiu: “Dylan vem do poeta Dylan Thomas. Quanto a Dog, o nome vem do título de um romance de Mickey Spillane que vi na montra de uma livraria. Mas Dylan Dog sempre foi o nome provisório que dei às minhas personagens (a prova é que escrevi uma história curta desenhada por Lorenzo Mattotti nos anos 70, com esse mesmo título). É o caso típico do nome de trabalho, em que pensamos “por enquanto, vamos chamar-lhe assim, até encontrarmos um nome melhor”. A diferença entre Dylan Dog e as minhas personagens precedentes é que desta vez o nome manteve-se.” E, curiosamente, Mattotti, que desenhou esse primeiro Dylan Dog em 1977, num Western que nunca chegou a ser publicado, só voltaria a desenhar o detective do oculto em 2015, na capa da edição especial do Dylan Dog nº 350, distribuído na edição desse ano do Festival de Lucca.

Se Dylan Dog é um herói fascinante, Tiziano Sclavi, o seu criador não o é menos. Personagem torturada, afectada por várias depressões e bloqueios criativos que o levaram mesmo a tentar o suicídio, Sclavi é uma figura envolta numa aura de mistério. Mistério para o qual muito contribuiu o facto de quase não aparecer em público, raramente dar entrevistas e muito menos se deixar fotografar. Numa dessas raras entrevistas, ficou célebre a resposta que deu quando lhe perguntaram se se identificava com Dylan Dog: “Nem com Dylan, nem com Groucho” disse. “Eu sou os monstros.”
Tendo ganho um prémio literário aos dezanove anos, o reconhecimento precoce do seu talento não lhe serviu de muito em termos de carreira pois, como refere “o público recebeu os seus livros com uma indiferença entusiástica”, o que o obrigou a trabalhar como jornalista, revisor e argumentista de BD para poder sobreviver, enquanto os seus romances aguardavam por um editor disposto a publicá-los.
É precisamente enquanto argumentista de BD que Sclavi vai iniciar uma colaboração com a editora Bonelli cujos fumetti são um verdadeiro fenómeno editorial e sociológico. Assim, além de criar Gli Aristocratici, com Alfredo Castelli (o criador de Martin Mystere, outra das mais interessantes séries da Bonelli) Sclavi vai assinar argumentos para outras séries da editora, antes de criar finalmente Dylan Dog, abrindo assim as portas do sucesso com o carismático detective do paranormal, cujas virtudes são gabadas até por Umberto Eco, que não tem pejo em colocar Dylan Dog a par da Bíblia e dos poemas de Homero, no top das suas leituras favoritas.

(CONTINUA...)

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Sandman 8: A Estalagem do Fim do Mundo

A CASA DAS HISTÓRIAS

Sandman – Vol. 8
A Estalagem do Fim do Mundo 
Argumento – Neil Gaiman
Desenho –Michael Allred, Gary Amaro, Mark Buckingham, Steve Leialoha, Vince Locke, Bryan Talbot e Michael Zulli
Quinta, 24 de Novembro
Por + 11,90€
Prosseguindo a alternância, que se tornou uma imagem de marca da série Sandman, entre volumes com histórias curtas e outros com narrativas mais longas centradas na jornada de Morfeu, A Estalagem do Fim do Mundo, volume a ser distribuído na próxima quinta-feira em todo o país, recolhe um punhado de histórias curtas, que confirmam Gaiman como um mestre da short story, também na BD.
Mas, ao contrário do que acontece em Terra do Sonho e Fábulas e Reflexões, desta vez há um dispositivo narrativo a unir todas essas histórias, com excepção de Ramadão, publicada originalmente na revista Sandman nº 50, que na edição americana foi incluída no volume 6 e que na versão portuguesa surge neste volume, por uma questão de equilíbrio de páginas entre cada volume e por, em termos da cronologia da série, ser a estória que precede o final de Vidas Breves (que termina no Sandman nº 49) e antecede A Estalagem… (que começa no nº 51 da edição americana).
Mas voltando ao tal dispositivo narrativo que agrupa todas as estórias, em A Estalagem… temos um grupo de viajantes refugiados numa estalagem, que contam histórias um aos outros para passarem o tempo. Se o conceito soar familiar ao leitor mais atento é porque este esquema narrativo remonta ao século XV e aos Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer, uma influência que o próprio Neil Gaiman é o primeiro a admitir, referindo: “agradava-me a ideia de usar um dos mais velhos dispositivos narrativos da história da literatura inglesa. Se vais roubar, é melhor roubares os melhores e os Canterbury Tales estão definitivamente nessa categoria.”
Assim, neste volume, temos histórias sobre cidades que sonham, fadas, monstros marinhos e necrópoles, e estórias dentro das histórias, que permitem a Gaiman e ao alargado leque de colaboradores que ilustram estas histórias, homenagear diversos géneros e autores, em singelos contos magnificamente construídos, em que as referências literárias mais ou menos explicitas, não perturbam em nada o fluir da narrativa.
E outra prova do génio de Gaiman, está na escolha do desenhador certo para cada história. Basta ver como o traço etéreo de Alec Stevens se revela perfeito para Um Conto de Duas Cidades que, apesar do título que remete para Dickens, é o mais borgesiano texto de Gaiman, ou como Michael Zulli, desenhador que estará em destaque no último volume da série, ilustra O Leviatã de Hob, uma história que recupera o fascínio da vida no mar dos romances de Conrad e Melville.
Publicado originalmente no jornal Público de 18/11/2016

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Dylan Dog em destaque na revista Bang!


Já chegou às lojas FNAC o nº 21 da revista Bang!, em que dou o devido destaque ao trigésimo aniversário da série de culto da editora Bonelli, criada por Tiziano Sclavi, que se estreou nos quiosques italianos em  Outubro de1986.

No próximo sábado colocarei aqui a versão alargada e actualizada (pois o Festival de BD de Lucca que ocorreu entre 28 de Outubro e 1 de Novembro, já depois de eu ter enviado o texto trouxe muitas novidades) do artigo que escrevi sobre Dylan Dog para a Bang! e que, pela sua extensão, será publicado em duas partes.
A primeira parte, dedicada às origens da série e às ligações ao cinema, que ficará online no sábado, dia 26 de Novembro, e a segunda, mais centrada na nova fase do personagem, coordenada por Roberto Recchioni, na terça-feira, dia 29.
Até lá, em jeito de teaser, deixo-vos com a capa da Bang! e com a primeira página do meu artigo sobre uma das melhores séries da BD europeia que, exceptuando a distribuição das edições brasileiras da Mythos, nunca teve em Portugal o destaque que bem merece.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Sandman 7: Vidas Breves


PELA ESTRADA FORA

Sandman – Vol. 7 
Vidas Breves
Argumento - Neil Gaiman
Desenho – Jill Thompson, Vince Locke
Quinta, 17 de Novembro
Por + 11,90€

Depois dos maravilhosos interlúdios que foram as histórias curtas de Fábulas e Reflexões, a jornada de Morfeu volta a ocupar o centro do palco em Vidas Breves, capítulo que dá início ao último acto da série e que os leitores poderão descobrir no capítulo 7 da premiada série de Neil Gaiman, disponível a partir da próxima quinta-feira.
Reflexão sobre a mudança e a brevidade da vida, Vidas Breves dá destaque a dois dos Eternos, Sonho e Delírio, na sua busca por outro irmão, Destruição, que abandonou as suas funções e desapareceu no mundo desperto. Assim, na aparência estamos perante a mais linear das histórias, centrada numa viagem on the road de Sonho e Delírio pelos Estados Unidos da América, em busca das pessoas que possam conhecer o paradeiro de Destruição.
Um capítulo que se serve sobretudo para fazer avançar a história central, fazendo convergir diversos fios da intriga para a intricada tapeçaria tecida pelo autor, pois como o próprio Gaiman refere: “Vidas Breves, fornece informações sobre como e porquê Destruição abandonou o seu cargo e a família; conta como Orfeu consegue finalmente morrer; concretiza o objectivo de Desejo de conseguir com que o Sonho derrame o sangue da família, o que já vem da história do Imperador Norton e da Casa de Bonecas; e revela também muito sobre a Delírio… que é um dos raros personagens que chega ao fim desta história mais ou menos incólume.”
Mas, como é habitual em Gaiman, nem tudo é tão simples como parece, e muitos dos (aparentemente) meros mortais que encontramos ao longo da história e que vão sendo mortos para evitar que Morfeu descubra o paradeiro de Destruição, são na verdade Deuses que perderam os seus poderes quando deixaram de ter quem os adorasse e que, longe do esplendor de outrora (sobre)vivem escondidos no meio da humanidade, como Ishtar, a deusa do sexo da Babilónia, que agora dança como stripper num bar decadente. Um tema que Gaiman irá explorar posteriormente de forma mais profunda e complexa no seu romance American Gods, que está a ser adaptado à televisão pelo canal americano de cabo Starz, numa série de grande orçamento com estreia marcada (possivelmente também em Portugal) em 2017.
Em termos gráficos, este é um dos volumes mais consistentes da série, sendo inteiramente desenhado por Jill Thompson, com o apoio de Vince Locke na passagem a tinta. Thompson, que já tinha desenhado O Parlamento das Gralhas, a história final do volume anterior e que empresta o corpo e o rosto a Etain, a rapariga que consegue fugir do seu apartamento antes dele explodir, faz um excelente trabalho no tratamento das personagens, dando grande expressividade ao rosto e aos gestos de Delírio e tem sequências de grande beleza, como o céu estrelado sob o qual os Eternos conversam, ou a sequência em que as gotas do sangue que escorre das mãos de Morfeu, se transformam em flores vermelhas ao cair no chão.
Publicado originalmente no jornal Público de 11/11/2016

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Sandman 6: Fábulas e Reflexões


OS IMPERADORES, O VIAJANTE E OS FILHOS DO SONHO

Sandman – Vol. 6 
Fábulas e Reflexões
Argumento – Neil Gaiman
Desenho – Bryan Talbot, Stan Woch, Shawn McManus, Collen Doran, Jill Thompson
Quinta, 10 de Novembro
Por + 11,90€
Confirmando a alternância entre grandes sagas que fazem avançar a narrativa global e histórias curtas que permitem explorar aspectos distintos da relação entre o Domínio do Sonho e o mundo Desperto, Fábulas e Reflexões, o sexto volume da série Sandman que chega às bancas na próxima quinta-feira, centra-se no modo como os percursos individuais de diferentes personagens históricas são afectados pelo encontro com o Mestre dos Sonhos.
Agosto, Termidor e Três Setembros e um Janeiro, os três contos que abrem o livro, para além de terem em comum serem histórias que têm títulos com nomes de meses (Termidor era o equivalente ao mês de Julho no novo calendário que a Revolução Francesa tentou implementar) centram-se na relação de três diferentes Imperadores com Morfeu. Seja o maior Imperador romano, Augusto, em Agosto, mês que lhe deve o nome, Robespierre, um dos principais responsáveis pela Revolução Francesa e pelo banho de sangue que se lhe seguiu em Termidor e o Imperador Norton, em Três Setembros e um Janeiro, título inspirado no do filme Quatro Casamentos e um Funeral, cujo argumentista, Richard Curtis, é amigo de Gaiman.
Por mais estranho do que possa parecer, Joshua Abraham Norton, o primeiro (e único) Imperador dos Estados Unidos é um personagem com existência real, cuja incrível história inspirou também Goscinny numa aventura de Lucky Luke, O Imperador Smith, e que aqui é o alvo inconsciente de uma disputa entre três dos Eternos, em que a força do sonho se revela superior ao desespero e à tentação.
Também o explorador Marco Polo encontra Morfeu no deserto, numa história que, alem de nos explicar o porquê de Morfeu também ser conhecido por Sandman, mostra-nos como o tempo se escoa de modo diferente nas faldas do domínio do Sonho, onde existem lugares suaves, onde as fronteiras entre o sonho e a realidade são porosas e a geografia dos sonhos se intromete na realidade.
Na história mais importante do livro, A Canção de Orfeu, Gaiman recupera uma lenda da mitologia clássica, o mito de Orfeu, para incorporar Orfeu e Eurídice no universo da série, num conto  que vai ter consequências decisivas para o destino de Morfeu e em que descobrimos que Orfeu é filho de Morfeu e da musa Calíope. Finalmente, em O Parlamento das Gralhas, Daniel, o filho de Lyta Hall que Morfeu disse que viria buscar, faz a sua primeira vista ao Domínio do Sonho.
Em termos gráficos, os destaques deste volume vão para Bryan Talbot, o autor de História de um Rato Mau, que assina os desenhos de Agosto e de A Canção de Orfeu, com grande rigor e um domínio perfeito da narrativa, e para Jill Thompson que, na sua estreia na série cria uma versão infantil dos Eternos transbordante de “fufura”, cujo estrondoso sucesso junto dos leitores levou a que protagonizassem duas histórias autónomas, Little Endless Storybook e Delirium’s Party, escritas e desenhadas por Jill Thompson.
Publicado originalmente no jornal Público de 04/11/2016

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Sandman 5: Um Jogo de Ti

A PRINCESA E O CUCO

Sandman  – Vol. 5 
Um Jogo de Ti
Argumento - Neil Gaiman
Desenhos – Shawn McManus, Collen Doran, Bryan Talbot, George Pratt e Stan Woch
Quinta, 03 de Novembro
Por + 11,90€
Depois de ter estado em grande destaque no volume anterior, Morfeu, o Mestre dos Sonhos desta vez quase que sai de cena, cedendo o protagonismo a Barbie, uma das personagens de Casa de Bonecas, o segundo volume da série, que aqui se revela uma personalidade muito mais complexa do que deixava transparecer, capaz de criar o seu próprio reino encantado num recanto distante do Domínio do Sonho.
O problema é que Barbie deixou de sonhar na sequência do vórtice provocado por Rosie Walker no volume 2 e o reino encantado onde reinava como Princesa Bárbara está abandonado, tendo ficado à mercê do misterioso Cuco, que o pretende destruir, bem como aos companheiros de brincadeiras da Princesa Bárbara.
Conforme Gaiman refere na introdução para a edição brasileira deste volume, Um Jogo de Ti: “é uma história que toca diferentes géneros de ficção, da aventura mais comercial, aos contos de fadas e às histórias de terror. Tenta entrelaçar muitas coisas sobre as quais penso e tenho reflectido – as relações entre as pessoas e as histórias, as diferenças entre homem e mulher, adultos e crianças, contos e realidade. Talvez seja realismo mágico, mas nem a magia nem a realidade são tão fáceis de separar, ou até, de identificar, como as pessoas gostariam.”  
Para esta complexa fábula profundamente humana, em que ninguém é o que parece ser, Gaiman encontrou o artista ideal em Shawn McManus, um desenhador que descobriu através de Pog, uma belíssima homenagem ao Pogo de Walt Kelly escrita por Alan Moore na série Swamp Thing, em que McManus demonstra uma capacidade única de conciliar um registo caricatural de grande elegância e ternura, na linha da Disney, com momentos de terror e de grande intensidade dramática. E se McManus tinha estado perfeito em Pog, aqui consegue ir ainda mais além, contribuindo de forma decisiva para um dos momentos mais altos da série Sandman que, não sendo das histórias mais populares junto dos leitores, é uma das raras que está realmente próxima das expectativas iniciais do seu autor.
 Publicado originalmente no jornal Público de 28/10/2016