quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Novela Gráfica II 11 - Luna Park

UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA ENTRE NOVA IORQUE E A RÚSSIA

Novela Gráfica – Vol. 11
Luna Park
6 de Maio
Argumento – Kevin Baker
Desenho – Danijel Zezelj
Por + 9,90€
A proposta da colecção Novela Gráfica para a próxima quinta-feira, assinala a estreia do prestigiado escritor norte-americano Kevin Baker na Banda Desenhada, com Luna Park, uma novela gráfica publicada originalmente pela Vertigo, a prestigiada linha da DC, de onde vieram títulos como V de Vingança e Daytripper, só para falar de obras publicadas nesta série II.
História policial com um toque fantástico, que parte do cenário decadente dos parques de diversões abandonados de Coney Island, para uma viagem no espaço e no tempo pela história da Rússia, Luna Park joga com as diferenças entre os dois países de uma forma tão inesperada como eficaz. Como refere Baker: “na história da Rússia, parece que nada funciona. Os mesmos erros e os mesmos problemas repetem-se uma e outra vez. Por isso, pensei em Coney Island como aquele lugar onde a herança cultural dos imigrantes russos colide com a ideia americana de optimismo, e decidi ver o que acontece a partir daí.”
O protagonista da história é Alik Strelnikov, um antigo soldado russo que trabalha para um pequeno criminoso americano, cujo território é cobiçado por um poderoso mafioso russo. Mas, para além de ter de se haver com a ameaça ao território do seu patrão, pelo homem que é dono da mulher que ama, Alik é atormentado por pesadelos em que a história de amor que viveu e as atrocidades a que assistiu na Chechénia se misturam com visões alternativas do passado (da Nova Iorque do início do século XX, até à revolução Russa e à I Guerra Mundial) que terminam sempre da mesma forma trágica. Uma narrativa de características circulares, mas que culmina num final inesperado, centrado num momento fulcral da história da América. Nas palavras de Baker: “espero que as pessoas fiquem surpreendidas com o final, embora existam pequenas pistas ao longo da história que anunciam esse final a quem as souber descobrir.”
Mas o mais importante para dar vida a esta história é o fabuloso trabalho gráfico do croata Danijel Zezelj. Ilustrador, autor de BD e artista multimédia, Zezelj tem dividido a sua carreira entre os EUA e a Europa (França, Itália e Croácia), emprestando o seu traço único a diferentes histórias e diferentes escritores. Embora tenha trabalhado na Marvel, ilustrando uma história do Capitão América, escrita pelo seu compatriota Darko Macan, o grosso da produção de Zezelj para o mercado americano foi para a Vertigo, onde colaborou em séries como Scalped, Loveless, Sandman Presents, DMZ, Northlanders, El Diablo e American Vampire, para além deste Luna Park. Como é habitual nos comics americanos, o seu trabalho é publicado a cores, apesar do seu estilo feito de sombras e altos contrastes ser pensado para o preto e branco e funcionar muito melhor nesse registo. Por isso, a edição portuguesa de Luna Park prescinde das cores competentes de Dave Stewart de modo a permitir que o traço único de Zezelj brilhe em todo o seu esplendor de um glorioso preto e branco.
Publicado originalmente no jornal Público de 19/08/2016

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Novela Gráfica II 10 -Daytripper



No caso de Daytripper, além do texto no corpo do jornal, assegurei ainda a coluna no Ípsilon com declarações de Moon e Bá, neste caso tiradas de diversas entrevistas feitas aquando da publicação original de Daytripper nos EUA. Como podem ver pela imagem do texto do Público, devido a um erro de paginação, o meu texto saiu com o titulo diferente do que eu lhe tinha dado. Nos 4 anos em que escrevo para o Público, foi a primeira vez que isto me aconteceu. Esperemos que seja a última...

FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ CHEGAM A PORTUGAL COM DAYTRIPPER

Novela Gráfica II – Vol. 10
Daytripper
18 de Agosto
Argumento e Desenho – Fábio Moon e Gabriel Bá
Por + 9,90€

Depois de Danilo Beiruth na primeira série, a colecção Novela Gráfica dá a descobrir uma dupla de autores brasileiros, os gémeos Fábio Moon e Gabriel Bá, através de Daytripper, o seu trabalho mais premiado.

Nascidos em São Paulo, em 1976, Moon e Bá começaram a sua carreira num fanzine auto-editado chamado 10 Pãezinhos, mas rapidamente conseguem atravessar as fronteiras do Brasil, primeiro através de Roland, uma série medieval escrita por Shane Amaya e ilustrada pela dupla, a que se seguiu um convite de Frank Miller para participarem na colectânea Autobiographix da Dark Horse, editora que publicou também 10 Pãezinhos nos EUA. 
Conforme refere Gabriel Bá, o processo de internacionalização foi acontecendo de modo natural: “ um trabalho chama o outro (no caso, um quadrinho independente que fizemos, o ROCK'n'ROLL, chamou a atenção do editor da Image, que nos colocou em contato com o Matt Fraction, e desse contato fizemos o CASANOVA, que chamou a atenção do Scott Allie, editor da Dark Horse, que nos colocou em contacto com o Gerard Way, e daí veio o Umbrella Academy, que foi o primeiro trabalho de Quadrinhos que pagava nossas contas).” 
A Portugal, o trabalho dos gémeos, que estiveram no Festival de Beja, em 2010, tem chegado via Brasil, através da importação pela Devir da edição brasileira da série 10 Pãezinhos, sendo esta a primeira edição em português de Portugal de um trabalho de Fábio Moon e Gabriel Bá. 
Ao contrário de outras duplas de autores, em que há uma divisão clara entre desenhador e argumentista, Moon e Bá tanto escrevem, como desenham. No caso de Daytripper, cujo título é inspirado numa canção dos Beatles, a história foi escrita a meias e o desenho entregue a Fábio Moon, enquanto Gabriel Bá se encarregou das capas, sendo o americano Dave Stewart, colaborador habitual de Mike Mignola, o criador de Hellboy, o responsável pela cor. Senhores de um traço de grande elegância e com um universo pessoal extremamente poético, Moon e Bá têm em Daytripper, uma série publicada originalmente nos E.U.A. pela Vertigo, em 10 capítulos que este volume recolhe, o seu melhor e o mais premiado trabalho.
 Definida muito simplesmente pelos seus autores como “uma história sobre a vida”, cada capítulo de Daytripper incide sobre um momento específico, um dia, da vida de Brás de Oliva Domingos - o filho de um escritor famoso que ser ele próprio também escritor, mas que ganha a vida a escrever obituários para um jornal, personagem (muito) vagamente inspirada no músico e escritor Chico Buarque - e sobre a forma como as escolhas que faz podem modificar a sua vida, e a sua morte. E a morte é um elemento muito importante nesta história, não só porque, como diz uma das personagens: “a morte é parte da vida”, e o próprio Brás, um escritor que “queria escrever sobre a vida”, ganha a vida a escrever obituários para um jornal, ou seja a escrever “sobre a morte”, mas principalmente, porque cada um dos capítulos termina com a morte de Brás de Oliva, num toque de realismo mágico, bem sul-americano, que mostra os diferentes caminhos (e finais) que a sua vida podia ter tido.  
Intimista, mágico e surpreendente, Daytripper é um livro fabuloso, que mostra a dupla ao seu melhor nível, tanto em termos gráficos como narrativos, numa história que, apesar de produzida directamente para o mercado americano, é profundamente brasileira nos cenários – de São Paulo à Baia, passando pelo Rio de Janeiro e pelo interior do Brasil - e nas personagens, mas que lida com questões universais, como a vida, a morte e as escolhas que se fazem. 
Publicado originalmente no jornal Público de 12/08/2016

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Novela Gráfica II 9 - Valentina

VALENTINA DE CREPAX FINALMENTE EM PORTUGUÊS

Novela Gráfica – Vol. 9
Valentina
11 de Agosto
Argumento e Desenho – Guido Crepax
Por + 9,90€
Depois de Sergio Toppi na série anterior, a colecção Novela Gráfica dá descobrir aos leitores portugueses mais um grande nome dos fumetti, a BD italiana: Guido Crepax que com Valentina, a sua mais popular criação e uma das mais sensuais heroínas da BD europeia, está em destaque no volume nove.
Nascido em Milão em 1933, Crepax formou-se em arquitectura, mas cedo trocou essa área pelo mundo da publicidade, fazendo carreira como ilustrador publicitário, ilustrando capas de livros e discos, para além de ter ilustrado uma campanha publicitária para a Shell, que lhe valeu a Palma de Ouro, em 1957. Em 1959, decidiu trocar a publicidade pela Banda Desenhada, estreando-se na revista Tempo Médico. Mas o momento decisivo da sua carreira dá-se em 1965, quando começa a publicar na revista Linus a série Neutron. É precisamente numa aventura de Neutron, La Curva di Lesmo, que surge pela primeira vez Valentina Rosselli, uma fotógrafa de moda, como personagem secundária. Uma personagem, fisicamente inspirada nas actrizes Louise Brooks (a protagonista de A Caixa de Pandora), Anna Karina (a musa de Godard) e na sua própria mulher, Luísa, que se vai rapidamente emancipar e tornar-se a sua mais conhecida criação, graças às suas aventuras surreais, desenhadas com grande elegância e uma planificação e divisão da página inovadoras, em que o onirismo e o erotismo se fundem e confundem.
Das mais de 30 histórias protagonizadas por Valentina entre 1965 e 1995, este volume recolhe quatro. As duas primeiras dão a conhecer ao leitor a origem de Valentina. Segue-se Baba Yaga, uma história de 1971 em que Valentina enfrenta a famosa bruxa do folclore russo, que seria adaptada ao cinema dois anos depois, num filme realizado por Corrado Farina, que tinha dirigido anteriormente um documentário sobre Crepax.
A fechar, temos Valentina no Metro, uma criativa (e emotiva) homenagem de Crepax à Banda Desenhada e aos seus heróis e criadores, onde Valentina se cruza com os principais heróis clássicos da BD e com outras criações do próprio Crepax. Publicada originalmente por episódios no jornal Corriere d’Informazione, a história foi pensada para as páginas de grande formato do jornal. E (coisa rara nas reedições recentes da obra de Crepax) surge aqui publicada no formato pretendido pelo autor, com as páginas “deitadas”, sendo por isso antecedida de uma introdução de duas páginas em que a própria Valentina explica ao leitor que precisa virar o livro para continuar a ler a história.
Publicado originalmente no jornal Público de 05/08/2016

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Novela Gráfica II 8 - Fax de Sarajevo


CERCADO EM SARAJEVO

Novela Gráfica II – Vol. 8
Fax de Sarajevo
Argumento e Desenho – Joe Kubert
Quinta, 04 de Agosto
Por + 9,90€
Depois da Guerra do Líbano, em A Dança das Andorinhas, de Zeina Abirached, a segunda série da colecção Novela Gráfica volta dar destaque à guerra vista na perspectiva de quem a sofreu na pele, neste caso com Fax de Sarajevo, a adaptação à BD feita por Joe Kubert da experiência real de Ervin Rustemagic, durante o cerco de Sarajevo, no início da década de 90 do século XX.
Nascido em 1926 (no seio de uma família de emigrantes judeus polacos, que imigrou para os Estados Unidos pouco depois do seu nascimento) e falecido em 2012, Kubert começou a trabalhar como arte-finalista para a MLJ Publications aos 12 anos de idade, tendo publicado a sua primeira BD, Voltron, em 1942. Senhor de uma carreira muito preenchida, em que abordou os mais diversos géneros, com destaque para as histórias de guerra, em Sgt Rock, Enemy Ace e Tales of the Green Berets, Kubert, além da sua actividade como autor de BD, foi também professor na Joe Kubert School of Cartoon and Graphics, uma escola de BD fundada por si e por onde passaram grandes talentos, como Stephen Bissette, Amanda Conner, Tom Mandrake e Adam e Andy Kubert, os dois filhos de Joe Kubert, que optaram por seguir as pisadas do pai com grande sucesso.
Na altura em que rebentou a guerra na ex-Jugoslávia, Kubert estava a trabalhar num álbum gigante da série Tex para a editora italiana Bonelli, trabalho que tinha sido intermediado pelo seu editor Ervin Rustemagic, que negociava os direitos das séries da Bonelli fora de Itália, mas optou por interromper esse Tex para escrever e desenhar Fax de Srajevo, sobre o drama bem real de Ervin Rustemagic.
Fundador e proprietário da editora Strip Art Features (SAF), Rustemagic lançou-se no mercado editorial de banda desenhada em 1972, com apenas 19 anos, quando começou a publicar uma revista de BD, distribuída por toda a Jugoslávia. Durante os anos 80, Rustemagic consolidou a sua posição como agente de direitos, representando no mercado editorial internacional grandes nomes, como Hugo Pratt, Carlos Trillo, Hermann, o desenhador de Bernard Prince e, claro, Joe Kubert.
Instalado nos arredores de Sarajevo, Rustemagic, assistiu impotente ao agudizar de um conflito latente desde a morte do General Tito, na década de 80, cujo punho de ferro mantinha artificialmente unida a então República Federal Socialista da Jugoslávia, que acabaria por se dividir numa série de pequenas repúblicas, correspondentes às diferentes comunidades étnicas e religiosas, de croatas, sérvios e muçulmanos. Com a proclamação de independência da Bósnia-Herzegovina, os sérvios da Bósnia, com o apoio de Belgrado, iniciam em Abril de 1992 o bombardeamento e cerco de Sarajevo, a capital da Bósnia-Herzegovina. Um cerco que se prolongará, durante mais de três anos, até Setembro de 1995.
Rustemagic e a sua família vêm a casa ser destruída pelos bombardeamentos sérvios, que não pouparam também os escritórios da sua editora, destruindo um espólio único de mais de 14.000 pranchas originais de BD. Refugiado na cave de um edifício, numa cidade sobre bombardeamentos constantes, em que a existência de electricidade e água canalizada eram luxos raros, e os tiros dos snipers eram uma ameaça constante, Rustemagic tinha como único contacto com o mundo exterior, uma linha telefónica (que nem, sempre funcionava) e um aparelho de fax, através do qual relatava aos seus amigos, como Joe Kubert, a sua luta para sobreviver. São precisamente esses faxes que serviram de base a Kubert para transformar em imagens o inferno vivido pelo seu editor e pela sua família, num livro fortíssimo.
Pode dizer-se, sem exagero, que foi a BD que salvou a vida de Rustemagic, pois para além de usar revistas de BD e placas de metal para forrar o carro, diminuindo assim o impacto das balas dos snipers que o alvejavam sempre que tinha que se deslocar ao consulado francês, o editor apenas conseguiu sair de Sarajevo graças ao esforço conjunto de uma série de autores que representava, como Joe Kubert, Hermann e Hugo Pratt.
Publicado originalmente em 1996, Fax de Sarajevo foi considerada a melhor Novela Gráfica do ano pelo New York Times, ganhou os Prémios Eisner e Harvey no ano seguinte e o Prémio de Melhor Livro Estrangeiro no Festival de Angoulême de 1998. Vinte anos depois, aqui está finalmente a edição portuguesa!
Publicado originalmente no jornal Público de 29/07/2016

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Evocando Jack Kirby, a propósito do Quarto Mundo


 Na altura em que escrevi o editorial para o volume da Colecção Super-Heróis DC dedicado ao Quarto Mundo, de Jack Kirby, fiquei com a sensação de que muito tinha ficado ainda por dizer sobre a obra mais pessoal do King Kirby. mas as limitações de espaço (e as alterações impostas pela DC ao mesmo texto original), acabaram por condicionar fortemente o texto publicado no livro. Felizmente, a revista Bang!, como de costume, deu-me carta branca para escrever o que quisesse, sem limites de espaço, ou censura e o resultado é o texto que podem ler a seguir, publicado no nº 20 da revista Bang!, publicação gratuita produzida pela Saída de Emergência que já se encontra em distribuição pelas lojas FNAC de todo o país, desde finais de Julho. Obrigado ao Luís Corte-Real e à Safaa Dib por acolherem os meus textos, sem qualquer condicionante, ou limitação. 


EVOCANDO JACK KIRBY 
NO 45º ANIVERSÁRIO DO QUARTO MUNDO

No preciso mês em que se completam 45 anos sobre a publicação do nº 1 da revista New Gods, os leitores portugueses tiveram finalmente a oportunidade de aflorar esse complexo universo, graças à publicação pela Levoir no final de Março, de um volume antológico, que recolhe um punhado de histórias do Quarto Mundo de Jack Kirby, obra maior do mais importante criador de histórias de super-heróis.
Extraordinário criador, capaz de se reinventar continuamente, Jack King Kirby, nasceu como Jacob Kurtzberg, em 1917 e começou a sua carreira artística em 1936, trabalhando em animação no estúdio dos irmãos Fleischer, onde colabora na série Popeye. Em 1939, ingressa nos estúdios Eisner/Iger, onde trabalhou também Bob Kane, o criador de Batman. Aí, sob a orientação de Will Eisner - que relata esses momentos na graphic novel The Dreamer - Kirby esteve directamente ligado ao arranque da indústria dos Comics, produzindo o mais variado tipo de histórias, para várias publicações. Ao longo de uma carreira de décadas, Kirby abordou os mais diversos géneros, do Western, às histórias românticas, passando pelas histórias de monstros e o policial negro, mas foi como criador de super-heróis que ganha um lugar maior na história da Banda Desenhada.
Um percurso que começou em 1940, ao lado de Joe Simon, com quem criou o Capitão América, que inclui títulos como Sky Masters, Black Magic e Chalengers of the Unknown, durante os anos 50, e teve o seu apogeu na década de 60, ao lado de Stan Lee, com a criação da maioria dos heróis da Marvel, de Thor aos Inumanos, passando pelos X-Men, com destaque para o Quarteto Fantástico, em cujas histórias vão aparecer Galactus e o Surfista Prateado, numa história épica, onde a dimensão cósmica da sua arte, que atinge o apogeu com o Quarto Mundo, tem aqui o seu primeiro grande momento.
Se os fãs tinham bem consciência da importância de Kirby no sucesso da Marvel, já os novos donos da editora não estavam tão bem informados, propondo-lhe um contrato de renovação que o seu biógrafo, Mark Evanier descreve como “insultuoso”. Desiludido pela falta de reconhecimento (crítico e material) do seu contributo para a criação do universo Marvel, quando comparado com a atenção dedicada a Stan Lee, Kirby decide trocar a Marvel pela DC no início da década de 70, regressando assim a uma casa para onde já tinha trabalhado com alguma regularidade durante as décadas de 40 e 50, criando a Newsboy Legion, ou reformulando heróis como o Arqueiro Verde, ou o Sandman.
É ai, contando com total liberdade e autonomia, que Kirby vai desenvolver uma ideia que tinha tido nos anos 60, enquanto trabalhava na série Thor, que consistia em explorar o Ragnarok, a morte dos velhos Deuses, como ponto de partida de uma saga épica, que lançasse uma nova mitologia. Esse projecto, irrealizável na Marvel, pois a editora nunca o deixaria matar os Deuses de Asgard, como o Poderoso Thor, vai ser concretizado na DC, dando origem ao Quarto Mundo. Uma saga épica, de uma dimensão cósmica, que levava o termo Larger than Life a uma escala inusitada, inteiramente editada, escrita e desenhada pelo King, cujo contrato com a editora o obrigava a produzir um mínimo de 15 páginas de BD por semana, contando apenas com a participação de Vince Colletta na passagem a tinta dos seus desenhos a lápis.
Ainda antes da saída dos três novos títulos que contam a saga dos Novos Deuses e o combate entre Nova Génese e Apokolips, os personagens do Quarto Mundo fazem a sua aparição gradual na revista Superman's Pal Jimmy Olsen, o primeiro título onde Kirby trabalha no seu regresso à DC, e para o qual vai recuperar personagens como o Guardião e a Newsboy Legion, criadas aquando da sua primeira passagem pela DC (então National Comics) e introduzir conceitos inovadores, como a clonagem e a nanotecnologia.
A presença do Super-Homem na revista - mesmo que os rostos do Homem de Aço e de Jimmy Olsen fosse redesenhadas por Al Plastino, e mais tarde, por Murphy Anderson, para ficarem mais próxima da imagem oficial do Super-Homem na época, que tinha como modelo o Super-Homem desenhado por Curt Swan -  permitiu apresentar as personagens do que viria a ser o Quarto Mundo, a um leque mais vasto de leitores, abrindo o caminho ao lançamento em Fevereiro/Março de 1971 do primeiro número da revista New Gods, a que se seguiram as revistas The Forever People, no mesmo mês  e Mister Miracle, em Abril, completando o conjunto de quatro títulos bimestrais (o que obrigava Kirby a desenhar duas revistas por mês) que contam a história do Quarto Mundo.
Curiosamente, nem o próprio Kirby percebeu muito bem de onde apareceu o termo “Quarto Mundo”, pois a série deveria chamar-se New Gods, mas quando a revista pensada para ter como título Orion, saiu com New Gods na capa, a DC foi obrigada a arranjar um novo título para a série. Mas, com um título ou com outro, o resultado continua a ser uma série extremamente inovadora, na forma como os quatro títulos se articulam, formando uma intricada tapeçaria, pensada para ser recolhida como uma obra fechada, após a sua publicação inicial em revista. Como refere Mark Evanier: “a história, que ele via como finita pelo menos no seu arco inicial, tinha como tema a guerra contra um vilão intergaláctico chamado Darkseid. Essa batalha iria ocupar várias centenas de páginas antes de terminar num final épico. Depois, Kirby esperava que toda essa saga seria editada e recolhida numa série de volumes bem impressos a cores, que estariam sempre disponíveis nas livrarias, como acontece com os livros de Tolkien. “
O tema central da saga dos Novos Deuses é a eterna luta entre o Bem e o Mal, representados por Nova Génese e Apokolips, dois mundos opostos nascidos do conflito cósmico que levou à queda dos Velhos Deuses e ao aparecimento dos Novos Deuses. Para pôr um termo à guerra sem quartel que ameaçava destruir galáxias, Izaya, o Pai Supremo de Nova Génese e o impiedoso Darkseid de Apokolips, decidem trocar filhos como reféns, de modo a assegurar uma trégua. Assim, Orion, o filho de Darkseid vai ser criado em Nova Génese, enquanto Scott Free, o filho de Izaya, é enviado para Apokolips.
É precisamente este momento fulcral da história do Quarto Mundo, que é contado em flashback em O Pacto, episódio que abre o volume da Levoir e que o próprio Kirby considerou em diversas entrevistas como a melhor história que já fez. Este episódio é também importante por dar a conhecer a origem de Scott Free, cuja fuga de Apokolips para a Terra, onde se tornará o Mr. Miracle, traz a guerra entre Apokolips e Nova Génese para o nosso mundo e dá a Darkseid o pretexto ideal para pôr fim à trégua entre Nova Génese e Apokolips. Inspirado directamente no autor de BD, Jim Steranko, que substituiu Kirby como desenhador de Nick Fury e se dedicava ao escapismo, na melhor tradição de Harry Houdini, Scott Free, o Mr. Miracle, vai ser uma figura fulcral do Universo DC, formando com a guerreira Big Barda, um dos raros casais assumidos das histórias de Super-heróis, onde os namoros se prolongam por décadas…
Para além de Big Barda, inspirada visualmente na actriz e cantora Lainie Kazan, a série deu origem a personagens fantásticos, como Metron, que viaja entre o espaço e o tempo na sua cadeira de Moebius, ou caricatas, como Glorious Godfrey, ou o vigarista Funky Flashman, que, dizem as más-línguas, apresentava mais do que uma simples parecença física com Stan Lee… Mas a maior criação de Kirby na série, foi o vilão Darkseid, cujas feições se inspiraram no actor Jack Palance, que ainda hoje continua a ser a encarnação suprema do Mal no Universo DC.
Se quisermos encontrar um adjectivo que melhor descreva o trabalho de Kirby em O Quarto Mundo, o único adequado é mesmo kirbyesco, mas épico, também está bastante próximo. Essa dimensão épica está patente na força majestática dos desenhos, na imponência das arquitecturas a que apenas as duplas páginas faziam justiça, na corporalidade miguelangelesca das figuras que se retorcem em poses barrocas, na pura energia que irradia das páginas cheias de acção, na maquinaria impossível, radiante de poder, que Kirby desenhava como ninguém, e também no próprio tom empolado da narrativa e dos diálogos. Aspectos que, aliados aos próprios nomes das personagens, que rementem para a Bíblia (como Izaya e Esak), para a mitologia clássica (como Orion), ou para a literatura - Desaad, o torturador remete para o Marquês de Sade e Kalibak, o filho monstruoso de Darkseid, evoca o Caliban, de A Tempestade, de Shakespeare - mostram a vontade de Kirby em criar uma mitologia para o século XX, pois como o próprio refere numa entrevista de 1984, republicada, quase três décadas mais tarde, na revista Jack Kirby Collector: "com os Novos Deuses, senti que estava a criar uma mitologia para os nossos tempos. Parecia-me que essa mitologia entretinha os leitores, como era o meu objectivo. O que eu estava a fazer era uma parábola dos nossos tempos."
Mas a verdade é que, ao contrário do que o próprio Kirby pensava, a sua criação estava muito à frente do seu tempo e os leitores não estavam ainda preparados para uma história cuja acção se espraiava por quatro títulos diferentes e que lhes pedia uma capacidade de assimilar um grande leque de personagens e de cenários, que fugiam daquilo a que estavam habituados.
O resultado - a que a queda abrupta das vendas de BD nos quiosques, numa altura em que ainda não existia uma rede de livrarias especializadas, ajudou - foi o cancelamento das revistas New Gods e The Forever People ao fim de apenas 11 números e de Mr. Miracle (a mais próxima do registo tradicional das histórias de super-heróis) após 18 números, numa fase em que a história idealizada por Kirby estava ainda bem longe de estar contada.
Só em 1984, aproveitando a reedição da série New Gods, como uma mini-série de seis volumes, Kirby pôde continuar a contar a história dos Novos Deuses, primeiro, com Even Gods Must Die, uma nova história de 48 páginas, incluída no sexto volume dessa reedição, e depois com The Road to Armagetto, uma história de 22 páginas que não chegou a ser publicada, mas cujas páginas foram aproveitadas em The Hunger Gods, uma novela gráfica original, que concluiu, de forma mais ou menos satisfatória a série, deixando no entanto a porta aberta para a utilização das personagens criadas pelo King por outros autores.
Mesmo que Kirby nunca tenha conseguido contar a história que queria, da maneira como queria, o impacto do Quarto Mundo no universo DC é incontornável. Basta ver histórias como The Cosmic Odissey, de Jim Stralin e Mike Mignola, ou as experiências de Walt Simonson com as personagens dos New Gods. Também Mr. Miracle e Barda vão sobreviver ao Quarto Mundo, sendo presença regular no Universo DC e assumindo um papel fundamental na divertidíssima fase da Liga da Justiça escrita por Keith Giffen e J. M De Matteis. Isto já para não falar em Darkseid, que é presença regular na era Novos 52 e que, ao que tudo indica, será o vilão de serviço no filme da Liga da justiça que Zack Snyder está preparar.
Como refere Brent Staples, num artigo publicado no New York Times em 2007, Kirby: “criou uma nova gramática para a narrativa em BD e uma forma cinematográfica de tratar a acção. Personagens antes rígidas saltam de quadrado em quadrado – ou mesmo de página para página – para cair directamente no colo do leitor. A força dos murros desferidos torna-se visível de forma explosiva. Mesmo em repouso, as personagens de Kirby pulsavam de tensão e energia de uma maneira que faz com que as suas versões cinematográficas pareçam estáticas em comparação.”
É por isso que o trabalho de Kirby permanece incontornável, e a edição da Levoir, mesmo que recolha pouco mais de um décimo das páginas que Kirby desenhou da Saga dos Novos Deuses, é uma óptima porta de entrada para o universo fantástico de Jack King Kirby.
Publicado originalmente na revista Bang! nº 20, de Julho de 2016