sábado, 9 de julho de 2016

Novela Gráfica II 4 - A Dança das Andorinhas

No caso deste volume, para além do editorial, tive a oportunidade de fazer uma pequena entrevista via Skype, com a Zeina Abirached, que estava em Berlim, para o coluna que o jornal Púbico dispensou no Ípsilon, para divulgação da desta série II das Novelas Gráficas. Tanto o texto do Público, como a entrevista podem ser lidos simplesmente clickando nas imagens. Quanto ao meu editorial está em texto aqui em baixo.

UMA NOITE EM BEIRUTE


Durante a década de 60 do século XX, Beirute, a capital do Líbano, era conhecida como a “Paris do Médio Oriente”. Mas essa foi uma realidade que Zeina Abirached, a autora da história que poderão ler nas próximas páginas, já não conheceu. O país que deixou de ser uma colónia francesa em 1945, conseguiu manter durante algumas décadas um delicado equilíbrio entre muçulmanos (xiitas e sunitas) e cristãos (maronitas, ortodoxos e arménios católicos e protestantes). Um equilíbrio que o exílio das tropas palestinianas da OLP no sul do Líbano, na sequência do “Setembro Negro”, veio destruir, dando origem a uma primeira guerra civil que durou entre 1975 e 1990 e provocou mais de cento e cinquenta mil mortos. Quando Zeina nasceu, em 1981, Beirute, a sua cidade natal, estava dividida ao meio, entre as tropas muçulmanas, apoiadas pela Síria e as milícias cristãs, com o apoio de Israel, que no ano seguinte, invadiria oficialmente o Líbano, no âmbito da “Operação Paz na Galileia”, cercando e bombardeando a cidade de Beirute, onde rapidamente deixou de haver electricidade, ou água canalizada.
Como a própria refere: “até aos 10 anos, a guerra foi a única realidade que conheci.” O muro que cortava a sua rua, na fronteira da zona de demarcação, mantinha toda a vizinhança “amputada” do resto da cidade. O muro não só limitava a sua liberdade de movimentos, mas era sobretudo uma lembrança constante de que viviam numa cidade em guerra. Uma barreira física, mas sobretudo psicológica, que perdurou muito para além da sua destruição. Abirached que, quando o muro foi demolido, descobriu surpreendida, que a rua do outro lado do muro tinha o mesmo nome que a sua, conta que, anos depois do fim da guerra, quando já tinha 20 ou 21 anos, se perdeu no meio da cidade, sem saber onde estava. Na verdade, estava muito perto de casa, mas numa área que antes lhe era inacessível, por causa do muro que cortava a sua rua. O muro já lá não estava, mas ela continuava a movimentar-se na cidade como se ele existisse. Nem ela, nem nenhum dos seus vizinhos se recordava com precisão quando é que o muro foi deitado a baixo.
Num país mais interessado em esquecer do que recordar os anos de guerra civil, onde não existe nenhum monumento às vítimas da guerra e o conflito não é ensinado nas escolas, por não existir consenso quanto à versão oficial a transmitir aos alunos, a Banda Desenhada foi o meio escolhido por Abirached para manter (e ao mesmo tempo exorcizar) essas memórias, prestando tributo às vitimas inocentes que a cidade, ao apagar o seu passado, quer deixar esquecer.
Em 2004 Abirached trocaria Beirute por Paris, onde estudou Artes Decorativas e trabalhou como designer, antes de se dedicar à BD. Uma escolha natural, tendo em conta a sua educação francófona, onde a Banda Desenhada estava bem presente (em A Dança das Andorinhas podemos ver um álbum do Tintin, na mesa de cabeceira do pai de Zeina), mas que lhe valeu inevitáveis comparações com Marjane Satrapi, a autora de Persepolis.
O facto de ambas terem nascido no Médio Oriente, terem vivido situações de guerra na sua infância e terem optado pela linguagem da BD para darem a conhecer a sua história, permite estabelecer um paralelo entre Marjane Satrapi e Zeina Abirached. E os pontos de contacto não se ficam por aí, pois ambas também se aventuraram na animação (Satrapi com Persepolis e Abirached com Le Mouton, uma curta metragem sobre os seus cabelos encaracolados) e escolheram contar a histórias de parentes seus ligados à música (um violinista, em Poulet Aux Prunes, de Satrapi, e um pianista, em Le Piano Oriental, de Abirached). Mas se é mais ou menos óbvio que o grande sucesso de Persepolis tornou mais fácil para Abirached encontrar uma editora disposta a publicar o seu trabalho, a verdade é que estamos perante duas autores com uma voz própria e bem distinta, como distintos são Persepolis e A Dança das Andorinhas.

A história de Marjane Satrapi tem um âmbito mais alargado, traçando o destino do Irão, desde a queda do Xá e o triunfo da Revolução Iraniana, no início dos anos 80 até meados da década de 90, quando Satrapi regressa ao Irão, depois de um exílio na Austria, mas, paradoxalmente, apesar dessa perspectiva mais global, a presença da história pessoal e das vivências da autora, acabam por se sobrepor a tudo o resto. Já Zeina Abirached limita o âmbito da sua história à sua rua, cortada ao meio pela zona de demarcação, e ao prédio onde vivia, com a família e com os restantes habitantes do nº 38 da rua Youssef Semaani, reduzindo a sua presença na história a um papel mais passivo de mera espectadora (normal numa criança de três ou quatro anos).
Também em termos gráficos, as diferenças são óbvias, apesar de ambas trabalharem o preto e branco. Satrapi nunca se conseguiu libertar completamente do estilo do seu mestre David B., enquanto Abirached utiliza a sua experiência do design para criar um estilo sintético, altamente estilizado, em que a influência da Arte bizantina se cruza com os teatros de sombras chinesas, aspecto que a representação bidimensional e a repetição hipnótica dos cenários, acentua. Mas o ponto alto do trabalho de Zeina Abirached é o seu sentido narrativo e de planificação, que lhe permite controlar com mestria o tempo da narrativa, através de soluções tão simples como inesperadas.

O pequeno mundo a que Zeina se viu confinada nesta fase do cerco de Beirute, já tinha sido abordado nos seus trabalhos anteriores, Beyrouth Catharsis - o seu primeiro livro, desenhado no Líbano em 2002, quando Zeina estudava ainda na Academia de Belas Artes de Beirute, mas só publicado em livro em França em 2006 - cujo título fala por si, e também no seu segundo livro, desse mesmo ano. Um pequeno livro-objecto de formato italiano, chamado precisamente 38, rue Youssef Semanni, em que cada tira corresponde a um andar e aos seus habitantes, que tanto pode ser lido na horizontal, como na vertical, numa primeira demonstração da capacidade da autora de jogar e subverter as características da narrativa na Banda Desenhada, que será desenvolvido em O Jogo das Andorinhas.
O ponto de partida para o seu primeiro trabalho de fôlego, foi a descoberta de um vídeo na Internet. Mas deixemos que seja a própria Zeina a contar como tudo se passou: “Em Outubro de 2006, no site na Internet do Instituto Nacional do Audiovisual (INA) encontrei uma reportagem gravada em Beirute em 1984.
Os jornalistas entrevistavam os habitantes de uma rua situada na proximidade da linha de demarcação, que cortava cidade em duas. Uma mulher, bloqueada pelos bombardeamentos, na entrada do seu apartamento, disse uma frase que me perturbou: “Sabem, acho que, mesmo assim, estamos, talvez, mais ou menos em segurança, aqui”. Essa mulher era a minha avó”.
O título do livro foi Zeina buscá-lo a um grafitti em francês num muro de uma zona de Beirute abandonada durante a guerra, assinado Florian e que, de acordo, com o que Ziena conseguiu descobrir, teria sido feito nos anos 90 por um bailarino belga de passagem por Beirute.
O resultado é uma obra fascinante, de grande ternura e humanismo, que centrando-se numa noite de bombardeamentos no auge da guerra, em 1984, retrata com grande sensibilidade e humor, a dicotomia entre a realidade exterior hostil de uma cidade destruída pela guerra e a intimidade protectora do espaço familiar. Mesmo que esse espaço esteja confinado ao átrio de um apartamento fustigado pelas bombas.

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