quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O regresso de Simon Du Fleuve

SIMON DU FLEUVE, 
A REDESCOBERTA DE UM CLÁSSICO PÓS-APOCALÍPTICO

Para os leitores de uma geração, actualmente entre os 40 e os 50 anos, que cresceu com a edição portuguesa da revista Tintin, há nomes que trazem recordações imediatas. Um desses nomes é o de Simon Du Fleuve, o herói da série homónima de Claude Auclair, que foi uma das primeiras a explorar a aventura num cenário pós-apocalíptico, abrindo caminho a outras abordagens posteriores ao género, como Le Transperceneige, de Lob e Rochette (já analisado numa anterior edição da revista Bang!), Armalite 15, de Michel Crespin, ou Jeremiah, de Hermann, para nos limitarmos a exemplos da BD franco-belga. Uma série de culto, que volta finalmente a estar disponível graças à edição integral da Lombard, cujo primeiro volume já terá fechado às lojas FNAC, na altura em que este número da Bang! for publicado.
Nascido em 1943, Claude Auclair tirou o curso de Belas Artes, em Nantes, tendo trabalhado como cenógrafo e decorador de teatro durante grande parte da década de 60. A profissão leva-o a mudar-se para Paris onde fica até 1967, quando, já cansado do trabalho no teatro, decide deixar tudo e viajar pelo Mediterrâneo durante um ano. No regresso a Paris, que coincide com o Maio de 68, decide mudar de vida e dedicar-se primeiro à ilustração e depois à BD.
Os seus primeiros trabalhos de ilustração são para as revistas de ficção científica das Editions OPTA, enquanto que a sua estreia na BD se faz no fanzine Phénix, com uma história curta. A redescoberta da BD, de que Auclair nem era leitor assíduo, dá-se graças a Robert Roquemartine, o primeiro proprietário da Livraria Futuropolis – Livraria que, anos mais tarde, nas mãos de Etienne Robial e Florence Cestac vai dar origem à histórica editora como o mesmo nome - que lhe dá a descobrir os clássicos, como Alex Raymond, Harold Foster, ou Jijé, e o apresenta aos autores que frequentavam a sua livraria.
Um desses autores era precisamente Jean (Moebius) Giraud. Giraud, que já conhecia o trabalho de Auclair das capas das Editions OPTA, além de o ajudar na sua primeira história, Aprés, publicada na revista Underground Comics, convida-o a mostrar o seu trabalho a Goscinny e a colaborar na revista Pilote. A estreia de Auclair na Pilote dá-se em 1970, com Jason Muller, uma série pós-apocalíptica, que, como veremos, está na génese de Simon Du Fleuve. As duas primeiras histórias de Jason Muller foram escritas por Giraud e por Pierre Christin (o argumentista de Valerian e dos melhores álbuns de Bilal, que aqui assina com o pseudónimo Linus), enquanto Auclair escreveu as duas seguintes, mas a série ficar-se-ia por estas quatro histórias curtas, pois Goscinny rejeitou, sem lhe dar quaisquer justificações, as propostas de argumentos apresentados por Auclair para novas aventuras de Jason Muller.
Mas Auclair não queria deixar morrer o universo de Jason Muller e, dois anos depois, decide propor essas mesmas histórias, ligeiramente reformuladas, a Greg, o argumentista de Comanche, Bernard Prince e Bruno Brasil e editor da revista Tintin. Embora A Saga do Grizzly, a primeira história que publicou no Tintin belga não tenha tido grande sucesso e a colaboração entre Greg e Auclair na história Os Náufragos de Arroyoka, em 1971, não tenha deixado grandes saudades a nenhum dos autores, Greg soube reconhecer o potencial do universo criado por Auclair e, em 1973, abriu-lhe novamente as portas da revista Tintin, onde os leitores viram nascer as Crónicas do Tempo Futuro e o seu protagonista, Simon Du Fleuve.
No seu poema The Hollow Men, T. S. Elliot diz que o mundo vai terminar, não numa explosão, mas num suspiro, e é essa a perspectiva seguida por Auclair na criação do universo pós-apocalíptico onde decorrem as aventuras de Simon Du Fleuve. Aqui não há uma guerra nuclear, sem sequer uma alteração climatérica extrema, como em Le Transperceneige, mas o lento agudizar da crise provocada pela Guerra Fria e pelo choque petrolífero, que leva a um clima de guerra civil generalizado e ao colapso da sociedade de consumo, seguido por uma série de epidemias que reduzem drasticamente a população mundial.
A maioria dos sobreviventes abandona as cidades e regressa aos campos, vivendo em comunidades, trabalhando a terra, ou pastoreando animais. O dinheiro perde o seu significado e dá lugar à troca directa. Os carros, que a falta de gasolina tornou inúteis, dão lugar aos cavalos. Os vestígios da civilização industrial, como as torres de electricidade, as estradas, linhas e estações de comboio, continuam a marcar a paisagem, mas não passam de monumentos grotescos a um mundo que já não existe. A excepção são as cidades-fortaleza, onde se refugiam os Senhores, com os seus exércitos que, esses sim, têm ainda veículos em estado de funcionar e gasolina e para os alimentar, para além de um vasto arsenal que lhes permite atacar as tribos nómadas e transformar os sobreviventes em escravos, que permitem manter a funcionar as fábricas que alimentam esse esforço de guerra.
Nascido numa dessas cidades, Simon é filho de um investigador que inventou uma pistola laser, e que na sequência do assassinato do seu pai, destrói os planos da arma e foge com o único protótipo existente, de modo a impedir que esta tecnologia mortífera caia nas mãos dos senhores das Cidades.
O primeiro ciclo da série, que compreende seis álbuns (La Balade de Cheveu Rouge, O Clã dos Centauros, Os Escravos, Maílis, Os Peregrinos e Cidade N.W, nº 3) relata a fuga de Simon e o seu regresso à cidade onde nasceu, para fazer justiça, contando com a ajuda de Jason Muller, personagem que reaparece na obra de Auclair, mas envelhecido, deformado e enlouquecido por uma vida de combates. Esses álbuns traçam um percurso movimentado e violento, em que Simon é obrigado a lutar pelos seus ideais e encontra o amor por duas vezes, sempre com resultados trágicos, até descobrir finalmente a sua companheira para a vida em Emeline.
As aventuras de Simon Du Fleuve são histórias duras e violentas, marcadas por um profundo sentido de justiça e de humanidade, reflexões em tom ecológico, sobre as consequências do progresso descontrolado, servidas por um traço realista de grande dinamismo, que rapidamente conquistou os leitores. Mas, como sempre aconteceu com Auclair, esse sucesso não foi conquistado com facilidade. O autor teve que enfrentar obstáculos complicados, logo no primeiro álbum da série, assumidamente inspirado no livro Le Chant du Monde, de Jean Giono, que devido à pressão da Gallimard, a editora de Giono, que viu aqui um caso de plágio, apenas saiu na revista Tintin, sendo interdita a sua publicação em álbum.
Mas a partir daí, primeiro no Tintin belga e depois em álbum, a série começa a conquistar o público, a crítica e até os autores de BD franceses. O ponto de viragem é o álbum Maílis. Como refere Auclair: “Em Paris, os profissionais de Banda Desenhada só me começaram a falar de Simon, a partir de Maílis, quando já não era possível ignorar o sucesso conseguido pela série. Antes disso, sentia que toda a gente fazia de conta que eu não existia. Fui reconhecido bastante mais cedo na Bélgica, onde me atribuíram vários prémios. Os países nórdicos e Portugal também reagiram com muita força à série.”
Em Portugal, esse sucesso foi evidente com a publicação, a partir de 1975, primeiro na revista Tintin e depois em álbum, do primeiro ciclo de Simon Du Fleuve, pela Bertrand. O clima cultural e ideológico que se vivia em Portugal a seguir ao 25 de Abril, ajudou a esse sucesso, mas a qualidade do trabalho de Auclair foi decisiva.
Ainda assim, Simon Du Fleuve não é uma série perfeita, com o tom panfletário e o carácter demasiado expositivo de algumas das histórias, a fazerem-se notar. O momento em que a série mais se aproxima da perfeição, é precisamente o álbum Maílis, em que Simon entra na vida de duas mulheres que vivem desterradas numa cabana à beira de um pântano. Um pântano que, revela Auclair é muito inspirado no pântano bretão, onde o autor passou a infância com a avó. Como refere: “ a cabana que lhes desenhei, é parecida com a casa onde vivia a minha avó”.
Para além do triângulo amoroso que se vai formar com a chegada de Simon e que terá consequências trágicas para todos, há um elemento fantástico que marca a história. Uma antiga central nuclear, habitada por mutantes criados pela radiação, que repetem, como num cerimonial religioso, a rotina de funcionamento de uma central nuclear.
Depois de Cidade N-W Nº 3, que encerra o primeiro ciclo das aventuras de Simon Du Fleuve, Auclair troca o espartilho dos álbuns com heróis e as histórias de 48 páginas, pela liberdade total da revista (A Suivre), onde está presente desde o primeiro número, trabalhando, sempre em colaboração com argumentistas, em sagas a preto e branco, de mais de cem páginas, como Bran Ruz, ou Le Sang du Flamboyant.
È através da revista (A Suivre) que Auclair vai conhecer Alain Riondet, um argumentista e ilustrador, com quem vai ressuscitar Simon Du Fleuve, num segundo ciclo de quatro álbuns e publicar uma novela gráfica a preto e branco, Celui-Lá. Constituído pelos álbuns L’Eveilleur, Les Chemins de L’Ogam e pelos dois volumes de Naufrage, este segundo ciclo, em que Simon Du Fleuve está menos presente e reduzido a um papel mais passivo, fica marcado por um ambiente mais místico e por um simbolismo muito pouco subtil, que fazem com que estes álbuns tenham envelhecido bem pior do que os primeiros.
Já em termos gráficos, estamos perante o melhor de Auclair. O desenhador, sabendo-se doente, com um cancro do estômago que o haveria de matar em 20 de Janeiro de 1990, com medo de não ter tempo de desenhar todas as histórias que tinha em mãos, trabalha a um ritmo alucinante para os padrões da BD franco-belga. Em apenas dois anos, publica os quatro volumes do segundo ciclo de Simon Du Fleuve e o primeiro volume, de quase cem páginas de Celui Lá. Só não tem tempo de terminar de desenhar o segundo volume de Celui Lá, que será terminado por Jean-Claude Mézieres e Jacques Tardi, que desenham as pranchas finais, de modo a que o livro possa ser lançado no Festival de Angoulême de 1991, numa última homenagem a Auclair, desaparecido exactamente um ano antes.
Auclair era um apaixonado pelo mar e pretendia passar algum tempo a navegar, tendo mesmo mandado construir um veleiro para isso, mas a doença que o levou, não lhe deu tempo de se fazer ao mar. Fê-lo Simon por ele, pois para além do mar estar muito mais presente no segundo ciclo, a última imagem do herói que o leitor vê, é precisamente Simon e Eveline a afastarem-se de barco, em direcção a outras aventuras. Aventuras que Auclair já não teve tempo de contar.
Publicado originalmente no nº 19 da revista Bang!, de Outubro de 2015

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

BILLIE HOLIDAY - A vida da Diva do Jazz numa Novela gráfica de Muñoz e Sampayo


Grande fã de Muñoz e Sampayo, foi com prazer que soube que a Levoir ia editar em Portugal a biografia de Bille Holliday que eles fizeram. Para além de traduzir o livro e fazer as biografias dos autores, tive também oportunidade de escrever este texto para o Público, que aqui apresento na sua versão integral. As citações de José Muñoz foram extraídas de uma entrevista que lhe fiz em 2001 e que foi publicada anos depois na revista Quadrado

VIDA DE BILLIE HOLIDAY EVOCADA 
EM NOVELA GRÁFICA DE MUÑOZ E SAMPAYO

No ano em que se comemora o centenário do seu nascimento, o Público e a Levoir homenageiam Billie Holiday, a mítica diva do jazz, publicando pela primeira vez em Portugal a novela gráfica que Muñoz e Sampayo lhe dedicaram.
Vencedor do Grande Prémio de Angoulême em 2007, José Muñoz nasceu em 1942, em Buenos Aires e estudou na Escola Pan-Americana de Artes, onde foi aluno de Alberto Breccia e conheceu Hugo Pratt, os autores que mais influenciaram o seu estilo. Aos 18 anos, começou a trabalhar como assistente de Solano Lopez, em El Eternauta (a obra-prima da BD argentina, escrita por Oesterheld) e pouco depois substituiu Hugo Pratt como desenhador de outra série mítica criada por Oesterheld, Ernie Pike. Carlos Sampayo nasceu em 1943, também em Buenos Aires. Definindo-se como “um boxeur amador até um dia em que ficou K.O. por se ter distraído a olhar para um cartaz publicitário”, Sampayo trabalhou inicialmente em publicidade, até se dedicar a tempo inteiro à BD.
Nomes maiores da BD argentina, os dois autores construíram a sua carreira conjunta na Europa, onde se exilaram em inícios da década de 70, para fugir à ditadura militar argentina, e onde ainda residem.
Curiosamente, essa colaboração nasceu num aeroporto e amadureceu noutro. Tudo começou em 1974, no aeroporto de Londres, quando Oscar Zarate (desenhador argentino que trabalhou com Alan Moore) aconselhou Muñoz, de partida para Espanha, a contactar com Sampayo, um escritor argentino então a viver perto de Barcelona, que Muñoz tinha conhecido três anos antes, curiosamente noutro aeroporto, aquando da partida de Zarate para Inglaterra.
Da parceria entre esses dois argentinos exilados, nasceu em 1975 um herói, Alack Sinner, o detective americano que valeria aos seus criadores dois Prémios de Angoulême, em 1978 e 1983. Como refere Muñoz: "A nossa formação cultural, feita na Argentina, durante os anos 50 e 60, foi extremamente rica e variada, pois tínhamos acesso à maioria do material europeu e norte-americano... Tivemos assim a sorte de poder apreciar o que de bom vinha dos Estados Unidos. E uma dessas coisas boas era o policial "negro" americano, até porque a situação política na Argentina tinha infelizmente tudo a ver com a realidade do policial negro, era mesmo uma autêntica novela de terror!
Foi desse caldo de cultivo que nasceu Alack  Sinner, cujo nome significa “ai de mim, pecador”. A reflexão destas nossas confusões internas, o desejo desesperado de manter uma vida digna, fora do nosso país, um país que matava os nossos irmãos, tudo isso foi transformado e sublimado em Alack Sinner.
Uma série que é composta de ciclos distintos. Numa primeira fase, seguimos as regras do policial negro de forma rigorosa, mas à medida que o trabalho nos educou e fomos crescendo como autores, Alack Sinner tornou-se a síntese principal da nossa dupla criativa. Dia após dia. “
Para além das histórias de Alack Sinner, personagem que atravessa a obra da dupla, estando presente também em Billie Holiday, a música é um elemento fundamental na obra de Muñoz e Sampayo que, além desta biografia de Billie Holiday, dedicaram mais recentemente um livro à vida de Carlos Gardel, nome maior do tango.
A importância da música na obra da dupla é algo perfeitamente assumido, como se percebe pelas palavras de Muñoz: “Alack Sinner é uma metáfora musical do tango e do jazz. Fizemos também uma história sobre Charlie Mingus, um músico que eu conhecia mal, pois fiquei-me mais pelo jazz até aos anos 50, mas que Carlos, que é o grande especialista de jazz, adorava. Até nesse aspecto, em termos musicais, nos completamos... Quanto a Billie Holliday, o caso foi diferente. Ambos temos um profundo amor e admiração pelo trabalho desta mulher, e quanto Lucas Taletti, um italiano que vive em Paris e era nosso agente na altura, nos propôs fazermos uma BD sobre Billie, entrámos quase em órbita!
Mas Billie Holliday também é uma emanação de Alack Sinner. Tudo isto são como emanações, mas que não são apenas bairros periféricos de Alack Sinner, mas uma consequência da seriedade tragicómica da nossa aposta de fazer algo sério através de uma linguagem, a BD, que nem sempre tem sido usada com esse objectivo.”
Prova que a arte não conhece fronteiras, este trabalho de dois argentinos, sobre uma cantora negra americana, publicado originalmente em Itália, em 1990, na revista Corto Maltese e em livro em França, chega finalmente a Portugal, na versão especial comemorativa do centenário do nascimento da cantora.
Que melhor testemunho poderia haver da dimensão global de uma obra, em que Nova Iorque é uma Buenos Aires traduzida e Billie Holiday e Carlos Gardel ganham vida no desenho a preto e branco de Muñoz? Mais uma vez, Muñoz tem a resposta: “neste mundo a meio caminho entre o sonho e a vigília que são os nossos trabalhos, tudo se harmoniza. A música de Billie Holliday podia perfeitamente pertencer a um ambiente de tango. Entre as grandes cantoras de tango e as cantoras de jazz, como Billie Holliday há uma familiaridade. A mesma profundidade de um coração desgarrado, mas vivo, que canta.”
Versão integral do texto publicado no jornal Público de 30/10/2015