quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Poderosos Heróis Marvel 11 - Demolidor: Partes de um Todo


E aqui fica o último editorial que escrevi para esta colecção. Uma das minhas histórias favoritas do Demolidor, que tive também o prazer de traduzir. O texto do Público, surge, como habitual nos volumes em que escrevo o editorial, apenas em imagem.

O DEMÓNIO E AS MULHERES


Estamos em 1998. A Marvel, que tinha acabado de declarar falência, decide encomendar à companhia independente Event Comics, de Joe Quesada e Jimmy Palmiotti, a produção das histórias de quatro personagens da Casa das Ideias, cujas revistas tinham sido canceladas, ou estavam em franca decadência: Demolidor, Justiceiro, Pantera Negra e Inumanos. Nascia assim a linha Marvel Knights, que relançou essas e outras personagens, em histórias como princípio, meio e fim, assinadas por autores de prestígio, alguns deles vindos dos comics independentes, ou de outros media, como Kevin Smith, recrutados por Quesada e Palmiottti para insuflar uma nova vida na editora. O sucesso da linha Marvel Knights foi tal que Joe Quesada foi nomeado editor-chefe da Marvel dois anos depois, em 2000 e o título que mais contribuiu para esse rápido sucesso, foi precisamente a série Daredevil.
Não por acaso, foi neste título que os dois editores se envolveram mais directamente, assegurando logo a arte do primeiro arco de histórias desta segunda série do Demolidor, cujos primeiros oito números foram escritos pelo cineasta Kevin Smith, que assim se estreou como argumentista de BD, com a saga Guardian Devil. Depois do sucesso de Guardian Devil, que trouxe a revista do Demolidor de volta à lista dos 10 títulos mais vendidos, onde não estava desde os tempos de Frank Miller, e com Smith de volta aos filmes, era preciso encontrar alguém capaz de o substituir.
Entre os vários autores que Quesada e Palmiotti contactaram inicialmente para trabalhar na linha Marvel Knights, estava David Mack. Nascido em 1972, em Cincinatti, no Ohio, Mack é o autor da série Kabuki, publicada inicialmente pela editora Caliber. Uma série que escreve e desenha, num estilo único, em que a linha se mistura com a pintura e a colagem, ficando bem patente a sua formação como designer, na forma como trata a página como um todo e como o texto e o desenho dialogam e se completam.
Precisamente por estar muito ocupado com a série Kabuki, que nessa altura ia ser relançada na Image, Mack não pôde aceitar o convite de Quesada para assumir um dos títulos à sua escolha da linha Marvel Knights, mas já não foi capaz de recusar um segundo convite, desta vez para ilustrar algumas capas e escrever uma história do Demolidor.
É essa história que poderão ler nas páginas seguintes e que assinala a estreia de Mack na Marvel. Uma estreia que lhe permitiu realizar um sonho de criança, pois o autor descobriu o Demolidor de Frank Miller quando tinha nove anos e foram essas histórias que o levaram a pensar pela primeira vez em contar, também ele, histórias através das imagens. E a influência do trabalho de Miller na escrita de Mack, é algo que o próprio é o primeiro a assumir, dizendo:
“As únicas histórias do Demolidor que li, foram as histórias do Frank Miller. Adorei essas histórias, quando era miúdo. Por isso, quando me convidaram para escrever uma história, para mim foi acima de tudo escrever sobre o personagem que li quando era miúdo. A caracterização psicológica do Rei do Crime que faço em Partes de um Todo é muito baseada no Rei do Crime das histórias de Frank Miller, pois esse é o único Rei do Crime que conheço.”
Mas a verdade é que, Wilson Fisk, o Rei do Crime, de David Mack, que nesta história divide o protagonismo com o Demolidor, é muito mais do que uma simples cópia do vilão que Miller tornou um dos mais importantes do Universo Marvel. É uma personagem de corpo inteiro, cujo passado é explorado pela primeira vez, de uma forma que vai ser replicada na série televisiva do Demolidor que a Marvel produziu para a Netflix. E muitos dos elementos dessa caracterização, Mack foi buscá-los à sua própria infância. Como o autor refere numa entrevista: “trouxe muito das experiências pessoais da minha infância, para escrever a infância do Rei. Muitas das memórias de infância de Fisk são as minhas.
O hamster e a roda que rodava toda a noite; as discussões entre os pais; o ter de rapar a cabeça devido a uma infestação de piolhos; os passos pesados do pai na escada quando regressava do trabalho, tarde na noite; os desenhos com os retratos de família no frigorífico; o calçar os sapatos do pai, enquanto ele dormia no sofá; aprender os nomes dos presidentes nas notas de dólares (…) a ambição de fazer as coisas acontecer. Todos esses detalhes da psicologia do jovem Wilson Fisk nascem da minha experiência directa, de coisas que vivi em primeira mão.”
Mas, para além de desenvolver a infância de Fisk, o contributo de David Mack para a mitologia do Demolidor passa também pela criação de Maya “Cavalo Louco” Lopez. A mulher por quem Matt Murdock se apaixona e que, enquanto Eco, vai tentar matar o Demolidor.
Face à morte de Karen Page na história anterior, havia necessidade de criar um novo interesse amoroso para Matt Murdock. Com Maya, Mack criou uma amante que é simultaneamente um inimigo, algo que não é propriamente uma novidade para o Homem sem Medo, um herói conhecido pela sua relação complicada com as mulheres, como o atestam as suas ligações tumultuosas com Elektra e até com Typhoid Mary.
Esse é um aspecto da personalidade de Murdock, que foi criado sem mãe, que Mack tem bem presente e que aborda na sua história. Como refere: “A sua mãe esteve ausente da sua vida. Por isso, ele passa a sua vida adulta saltando de mulher para mulher, tentando encontrar a pessoa que o compreende e que o complete. Cada uma dessas mulheres preenche uma lacuna da sua vida. Elektra representa a sua juventude, a Viúva Negra é a sua companheira no combate ao crime, e por aí em diante. Mas nenhuma consegue identificar-se com ele a todos os níveis. Nenhuma consegue compreender completamente o natural dificuldade em abarcar o mundo na sua totalidade, causada pela sua cegueira.”
Sendo surda, Maya, tem também necessariamente uma perspectiva limitada da realidade total e o facto de ter visto o seu pai morrer de um modo violento, faz dela uma alma gémea de Matt e, graças às maquinações de Fisk, a única pessoa capaz de o derrotar.
Em termos gráficos, Quesada e Palmiotti asseguram a arte da história, como já tinha acontecido no arco de Kevin Smith, mas o seu desenho altera-se, adaptando-se como uma luva à forma específica de narrar e planificar de Mack, que está na origem do sucesso da série Kabuki. Por exemplo, a forma como Maya vê o mundo, como a morte do seu pai a marcou, é transmitida através de desenhos de criança, que dialogam na página com o realismo barroco habitual ao traço de Quesada, do mesmo modo que a página se fragmenta, com a divisão tradicional em tiras e quadrados, a darem lugar a uma concepção mais orgânica da página, em que o próprio texto se torna um elemento importante do desenho.
O resultado é visualmente deslumbrante e muito inovador, aproveitando o melhor de ilustradores como Dave McKean, ou Bill Sienkiewicz, e abrindo caminho às experiências posteriores de J. H. Williams III, entre outros. O próprio David Mack é o primeiro a não poupar nos elogios a Quesada, dizendo: “Joe pegou no melhor da minha planificação e do meu estilo narrativo e misturou-o com a sua própria sensibilidade artística, dando origem a uma espécie de novo estilo artístico híbrido. Adorei o resultado! Continua a ser, para mim, o melhor trabalho que Joe Quesada alguma vez fez”
Face ao muito trabalho que tinham como editores, tanto Quesada, como Palmiotti, acabaram por ceder o lugar respectivamente, a David Ross e a Mark Morales, no desenho. Mas essa mudança, que passou praticamente despercebida aos leitores menos atentos, acabou por não afectar o equilíbrio estético do livro, que conserva uma apreciável homogeneidade, face ao rigoroso trabalho de planificação de Mack e ao excelente trabalho de Richard Isanove na cor.
O resultado final é uma das melhores histórias do Demolidor. Uma história que dá a descobrir aos leitores portugueses, o génio de David Mack.

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