Imaginem a história de Romeu e Julieta, mas com os dois amantes de Verona a trocarem uma morte romântica por uma vida em conjunto, com a filha que nasceu deste amor proibido. Em seguida troquem a Verona do século XVI pelo espaço sideral, juntem uma pitada de humor à história e dêem à Julieta uma personalidade forte e o resultado é a série
Saga, um dos maiores sucessos dos Comics americanos dos últimos anos que, por uma vez, também está disponível em Portugal, numa bela edição em capa dura da
G Floy.
Criada pelo Argumentista
Brian K. Vaughan e pela Ilustradora
Fiona Staples,
Saga é um dos melhores exemplos dos novos caminhos que a Editora Image tem percorrido e que fazem dela a mais interessante editora de Comics do mercado americano actual e uma das de maior sucesso.
Embora a série tenha começado a ser publicada nos EUA em Março de 2012, a verdade é que o conceito inicial é muito anterior, remontando à infância de Vaughan que refere "foi um universo ficcional que criei quando estava aborrecido nas aulas de matemática e que, a partir daí foi crescendo". Mas o click definitivo só aconteceria quando o escritor foi pai de uma menina. Nas palavras de Vaughan, "queria escrever sobre a experiência de ser pai, mas queria arranjar uma espécie de Cavalo de Tróia que me permitisse encaixar esse tema numa história interessante que desse para explorar os pontos de contacto entre a criação artística e a responsabilidade de criar um filho. "
E o escritor concretiza: "apercebi-me que fazer Comics e fazer filhos são coisas muito parecidas e que podia combinar as duas coisas numa mesma história e essa história seria muito menos chata se a ambientasse num universo alucinado que misturasse ficção científica e fantasia, em vez de me limitar a contar anedotas sobre mudar fraldas.(...) Não queria contar uma aventura tipo
Star Wars, com todos esses nobres heróis a combater um Império. Interessava-me mais contar a história das personagens secundárias, que só querem escapar a uma guerra sem fim".
Quando o projecto foi divulgado pela primeira vez na San Diego Comic Con de 2011, o departamento de comunicação da Image apresentou Saga como "
Star Wars encontra
Game of Thrones", uma descrição apelativa, mas que não faz inteira justiça ao conceito por trás da série de Brian K. Vaughan e Fiona Staples, pois se Saga se aproxima da saga épica de
George R. R. Martin na presença da magia e no acompanhar de diferentes personagens que procuram sobreviver num mundo em guerra, essa guerra não é o centro da história. No centro da história estão as pessoas. Ou, para usar uma comparação feliz de Vaughn: “sempre achei que a guerra era tão importante para a nossa história, como era para a do filme
Casablanca. Ou seja, era muito importante, mas não tão importante como as vidas das pessoas cuja história o filme conta”.
Por isso, o tom da BD de Vaughan e Staples acaba por estar mais próximo de comédias românticas como
Modern Family, o que só demonstra a capacidade do autor de chegar a diferentes públicos, algo que esteve sempre presente na obra de Brian K. Vaughan. Por isso, para além da aventura, da magia, dos combates, temos um jovem casal com um filho recém-nascido, que tem de aprender a viver com essa nova realidade e que, num cenário fantástico e delirante, se debate com problemas iguais aos de qualquer jovem casal, desde a chegada dos sogros, que fecha o primeiro volume, ao reaparecimento de uma antiga namorada de Marko. Mas a pressão da vida familiar não afecta apenas os heróis da história, pois também o seu principal adversário, o Príncipe Robot IV, preferia estar em casa a acompanhar a gravidez da sua mulher e o nascimento do seu primeiro filho, em vez de ter que percorrer o cosmos em perseguição dos amantes fugitivos.
Com uma carreira dividida entre a Banda Desenhada e a televisão (foi um dos argumentista de
Lost e é produtor de
Under the Dome, a série televisiva baseada no romance de
Stephen King com o mesmo nome) Vaughan foi responsável por duas das mais interessantes séries de comics deste século, que partem de cenários típicos de ficção científica, para uma reflexão sobre o mundo em que vivemos. Foi o caso de
Ex-Machina, série publicada pela
Wild Storm, sobre um antigo super-herói que se torna Presidente da Câmara de Nova Iorque e que acaba por perceber que a política implica concessões e escolhas morais pouco consentâneas com os ideais defendidos por um super-herói.
Mas o seu trabalho mais conhecido, é
Y, the Last Man, série da
Vertigo, ilustrada por
Pia Guera, que explora a vida de um homem num mundo em que toda a população masculina foi dizimada por um vírus e apenas as mulheres sobreviveram. Uma premissa típica de um episódio da série televisiva
Twilight Zone, mas que Vaughn desenvolve de forma bastante interessante e inesperada.
Em Portugal, até à publicação de
Saga pela
G Floy, apenas tinham sido editados
O Juramento, uma aventura do Dr. Strange, ilustrada pelo espanhol
Marcos Martin, publicada na primeira colecção que a
Levoir e o jornal
Público dedicaram à Marvel e o excelente
Fábula de Bagdad, baseado na história verídica de um bando de leões que escapou do zoo de Bagdad durante a Guerra do Golfo, magnificamente ilustrada pelo canadiano
Niko Henrichon, que a BD Mania editou em Portugal na década de 2000.
Mas voltemos a
Saga, para vermos mais em pormenor os principais protagonistas desta aventura cósmica, sobre as dificuldades de se criar uma filha, ainda para mais quando se pertence a espécies diferentes, que se guerreiam até à morte e se está no centro de uma guerra espacial.
Para além de Marko e Alana, o casal multirracial cuja história de amor está no centro da intriga, temos também Hazel, a filha do casal, a cujo nascimento assistimos nas primeiras páginas do livro e que narra a história. Um dispositivo narrativo, a “voz of”, que Vaughn utiliza aqui pela primeira vez numa BD, com excelentes resultados.
Mas como na maioria das boas histórias, os personagens secundários são também importantes e carismáticos. Veja-se o mercenário
A Vontade, uma mistura de
Han Solo e
Boba Fett, para voltarmos à comparação entre
Saga e
Star Wars, que tem uma grande vantagem sobre Han Solo, ao contar com um companheiro muito mais carismático do que o peludo
Chewbaca, que é a fabulosa
Gata Mentirosa. Um animal que entra de caras para a lista dos mais inesquecíveis animais da história da Banda Desenhada, muito por força do excelente trabalho gráfico de Fiona Staples, que lhe dá uma extraordinária expressividade.
Com um estilo que está longe de ser imediatamente consensual, o que faz com que o famoso slogan de Fernando Pessoas para a Coca-Cola, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, assente com uma luva ao seu grafismo singular. Senhora de um traço estilizado, tão simples como elegante, a que a cor digital dá profundidade, Staples foi escolhida por Vaughan, seguindo uma sugestão do escritor
Steve Niles, que tinha trabalhado com a ilustradora canadiana na série
Mystery Society. E Vaughan não podia nos elogios à sua companheira nesta aventura, afirmando: “a arte dela é incrível. Não se parece com nada. É completamente única”.
Conquistando seis prémios
Eisner e seis Prémios
Harveys, os principais galardões da indústria dos comics e um
Hugo, prémio máximo da ficção científica, em apenas dois canos, Saga tem aliado o reconhecimento crítico ao sucesso comercial. Um sucesso que se está a concretizar também em Portugal, em que o segundo volume de
Saga já deverá já estar nas livrarias nacionais quando este número da revista Bang! chegar à FNAC.
ACTUALIZAÇÃO - O 2º volume da série
Saga vai ser distribuído na 2ª quinzena deste mês de Abril, juntamente com o 2º volume da série
Fatale, de
Ed Brubaker e
Sean Phillips, que a
G Floy também está a publicar em Portugal.
Texto originalmente publicado no nº 17 da revista Bang!, em Março de 2015.