quarta-feira, 4 de março de 2015

Novela Gráfica: quando a Arte Sequencial se transforma em Literatura Desenhada

NOVELA GRÁFICA: QUANDO A ARTE SEQUENCIAL 
SE TRANSFORMA EM LITERATURA DESENHADA

A principal especificidade da linguagem da Banda Desenhada, reside na forma como o texto e a imagem se articulam, para formar algo que é mais do que a mera soma das partes. Algo único e inovador. E a consciência do carácter inovador dessa linguagem, está presente desde os primeiros tempos da história da BD.
O desenhador suiço Topffer, um pioneiro da BD e uma das primeiras pessoas a reflectir criticamente sobre a especificidade da sua linguagem, escreveu logo em 1833, na introdução a L’Histoire de Mr. Jabot, considerado como o primeiro álbum da história da Banda Desenhada, aquela que, na opinião do crítico e argumentista francês Benoit Peeters, é a melhor definição de BD. Sobre L’Histoire de Mr. Jabot, Topffer escreve que “este pequeno livro é de uma natureza mista. É composto por uma série de desenhos autografados a traço. Cada um desses desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos, sem o texto, teriam um significado obscuro; o texto, sem os desenhos, não significaria nada. O conjunto dos dois forma uma espécie de romance, tanto mais original porque não se assemelha mais a um romance do que a qualquer outra coisa”.

Foi precisamente jogando com as quase ilimitadas possibilidades de articulação desses dois elementos, que a linguagem da Banda Desenhada se foi desenvolvendo, mas condicionada por modelos de publicação rígidos. Formatados durante décadas em modelos clássicos, como as tiras diárias, ou as pranchas semanais nos jornais, as revistas de 22 páginas, e os álbuns clássicos franco-belgas, de 44 páginas em capa dura, faltava aos autores de Banda Desenhada espaço para ensaiar outros voos. Voos que a necessidade de ter como protagonista um herói, que já existia antes da história começar e que vai continuar a existir no fim de cada história, também limitavam drasticamente.
Apesar disso, os formatos clássicos não impediram a criação de obras-primas. Um bom exemplo é Will Eisner, com a série The Spirit. Autor que muito naturalmente abriu esta colecção, Eisner sempre assumiu a sua admiração por escritores como Ambrose Bierce, Tcheckov, O. Henry e Maupassant. The Spirit mais do que uma serie policial, era o meio ideal, devido à liberdade e autonomia de que dispunha, para o seu autor concretizar um dos seus principais objectivos, que era o de fazer short stories na grande tradição clássica. Para isso escolheu a linguagem da BD (ou arte sequencial, como preferia chamar-lhe), cujos códigos aju¬dou a formar e na qual sintetizou elementos de outros meios, que se revelavam adequados ao seu objectivo primordial de contar histórias, de forma fluida e atraente.
Mas, quando, depois de décadas dedicadas ao ensino e à ilustração publicitária, Eisner decide voltar à BD em finais da década de 70, vai necessitar de um formato que lhe permitisse contar já não short stories, mas verdadeiros romances em imagens, com outro fôlego e maior ambição. Esse formato era a Novela Gráfica. Mesmo que o termo Graphic Novel começasse já a ser conhecido, a verdade é que o caracter inovador da obra de Eisner provocou problemas aos livreiros, que não sabiam em que secção arrumar Um Contrato com Deus, se junto da BD, se nas prateleiras da literatura, chegando o livro a aparecer na secção de assuntos religiosos…
Situação semelhante viveu Art Spiegelman com o seu Maus, outro título incontornável do cânone da Novela Gráfica, que muitos livreiros e o próprio júri do Prémio Pulitzer tiveram dificuldades em encaixar numa secção, ou categoria existente, o que no caso de Spiegelman até se revelou uma vantagem, pois como o próprio refere em entrevistas, muitos livreiros que não sabiam onde arrumar Maus, acabaram por o deixar durante anos na mesa das novidades, contribuindo assim para o seu sucesso.
Actualmente, este problema já não se põe, as principais livrarias americanas têm uma secção específica dedicada às graphic novels e, mesmo em Portugal, o termo Novela Gráfica já entrou na linguagem corrente e é rapidamente associado a uma Banda Desenhada de qualidade, que aproveita o facto de não estar limitada a um número de páginas fixo, para contar histórias revelantes, com grande qualidade estética e literária, que exploram de diferentes maneiras a articulação entre o texto e o desenho.
Nesta colecção, que, ao longo dos doze volumes que a compõem, procura dar uma ideia global da variedade de temas e de abordagens que o género permite, temos os mais variados tipos de articulação entre texto e imagem, com alguns autores a apoiarem-se mais no texto para contar a história, enquanto outros consideram que uma imagem vale mais do que mil palavras.
Vimos já, em Um Contrato com Deus, como Eisner mistura texto e imagem, com o texto a fundir-se literalmente com o desenho em algumas páginas. Já Baudoin, em A Viagem, apoia-se muito mais na imagem para contar uma história, criada originalmente para o público japonês, habituado a um tipo de narrativa eminentemente visual, enquanto Tardi, em Foi Assim a Guerra das Trincheiras recorre abundantemente à narração em off e aos cartuchos de texto, que estão praticamente ausentes em A Viagem. Em A Louca do Sacré-Coeur, cabe a Moebius pegar no texto em bruto de Jodorowsky e transformá-lo numa história em BD, com o talento que se lhe reconhece, um pouco como acontece com Kim em relação a António Altarriba em A Arte de Voar, embora aqui o menor impacto visual do traço de Kim seja compensado pela força da narrativa de Altarriba.
Mas não apenas o texto e o desenho servem para contar uma história. Em Beterraba, Miguel Rocha mostra que a própria cor pode ser um importante elemento narrativo, em páginas de cores belíssimas que capturam no papel toda a luz e a cor do Alentejo, tal como o preto e branco rasgado (literalmente) a navalha de Alberto Breccia em Mort Cinder, traduz as trevas bem reais que rodeavam os autores numa Argentina dominada pelos mesmos militares que iriam assassinar Oesterheld anos depois.
Robert Crumb, por exemplo, experimenta as mais variadas combinações nas histórias curtas de Mr. Natural. Desde histórias em que as palavras são praticamente desnecessárias, até As Origens de Mr. Natural em que o texto enche completamente as páginas. Com uma composição de página bastante dinâmica, Cosey gere bem os momentos de silêncio, especialmente nas cenas em que uma natureza imponente impõe a sua presença.
E se a composição de página de Cosey é dinâmica, que dizer do trabalho de Toppi em Sharaz-De, com fantásticas composições a substituírem a tradicional divisão em tiras e quadrados, resultando em páginas absolutamente deslumbrantes? Por ultimo, temos o trabalho de Taniguchi e de Danilo Beyruth, dois autores que se apoiam mais na imagem do que no texto, mas que em termos narrativos, vão beber muito ao cinema, com Taniguchi a afirmar-se como um discípulo de Ozu e Beyruth a utilizar os enquadramentos largos para a paisagem e os planos muito apertados para os rostos, na melhor tradição de Sergio Leone.
Tal como na música, um número limitado de notas, permite criar obras-primas completamente diferentes e únicas, também os autores presentes nesta colecção única, que assinala de forma perfeita os 25 anos do jornal Público, combinam os diferentes elementos da gramática da BD para criar verdadeiras sinfonias gráficas inimitáveis.
Texto publicado no Jornal Público de 04/03/2015

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