segunda-feira, 9 de março de 2015

Colecção Novela Gráfica: Duas Entrevistas com Edmond Baudoin, a propósito de A Viagem


No caso deste 3º volume, além do texto para o Público e da entrevista que o acompanha, assinei também o Editorial que abre o livro. Mas, como além deste material ,tinha também uma entrevista com o Baudoin sobre a sua experiência no mercado japonês que permanecia inédita e que cito abundantemente no editorial, optei por apresentar aqui antes essa entrevista de 2000, bem como a mini-entrevista com Baudoin feita por mail este ano, que acompanhou o texto do Público. Caso queiram mesmo ler o texto do Público, também é simples. Basta carregar na imagem, para ampliar a imagem do artigo até um formato legível. Quanto ao Editorial, por uma vez, terão que comprar o livro para o poder ler. Mas comecemos pela entrevista que saiu no Público:



BAUDOIN: “SIGAM OS VOSSOS SONHOS”

Aproveitando a sua estreia em português na próxima semana, com o livro A Viagem, Edmond Baudoin concedeu uma pequena entrevista exclusiva ao Público, centrada no título que chega às bancas na próxima quinta-feira, integrado na colecção Novela Gráfica.


O que é que pensa desta colecção?

Estou muito de feliz por estar incluído nesta colecção, junto com autores tão prestigiados. Gosto muito de Portugal. Já fui convidado por várias vezes para estar presente nos vossos Festivais, mas esta é a primeira vez que um livro meu é traduzido em português. Isso deixa-me muito feliz, pois da próxima vez que vier a Portugal, haverá um livro meu traduzido em português para autografar.

Como é que descreveria A Viagem, para alguém que não conheça o seu trabalho?


Há muito tempo, fiz um livro chamado Le Premier Voyage, que foi editado em França pela Futuropolis, num álbum de 44 páginas. Há uns quinze anos, um editor japonês, Kodansha, convidou-me para fazer um remake desse livro. Foi assim que nasceu A Viagem. Ou seja, é um livro que começou por ser um mangá, tendo sido publicado no Japão antes da França e desenhado no sentido de leitura japonês, que é oposto do ocidental.
É a história de um homem que no mesmo dia, abandona a sua família e o seu emprego, para partir numa viagem sem destino. O editor japonês sentiu uma grande afinidade com esta história, porque, como me contou, no Japão acontece com alguma frequência, por razões que ninguém compreende, que um indivíduo abandone tudo e acabe a viver como um vagabundo, ou como um selvagem, numa das muitas ilhas.
Para mim, esta é uma história um pouco autobiográfica. Aos 30 anos, era contabilista-chefe numa empresa, mas abandonei essa profissão para seguir o meu sonho e viver do desenho. Fui pobre durante muito tempo, mas muito mais feliz. É muito importante seguir os seus sonhos!

Quer deixar alguma mensagem para os seus novos leitores portugueses?

Sim, acabei de o escrever na pergunta anterior. Sigam os vossos sonhos. Mesmo que sejam pobres, terão uma vida muito mais rica… ao mesmo tempo, sinto-me um pouco incomodado ao propor que sejam pobres… Há tanta gente pobre actualmente, que gostaria de ter um emprego, mesmo de ajudante de contabilidade, para poder criar os seus filhos. É sempre difícil seguir os seus sonhos.

ENTREVISTA COM EDMOND BAUDOIN
(realizada em Angoulême no dia 29/1/2000)

Falemos da sua experiência de trabalho para o Japão. Como é que foi contactado?

Um belo dia recebi muito simplesmente um telefonema da editora Kodansha, em que eles me perguntavam se eu estaria interessado em trabalhar para o mercado japonês. Apenas isto. Isso foi alguns meses depois de os Japoneses terem estado no Salão de Angoulême em 1992, ano em que o Japão era o país convidado, a contactar artistas franceses. Quando me contactaram, já tinham contratado Baru e Joliguth e julgo que foi Baru que lhes deu o meu contacto.
De qualquer modo, eles conheciam bem o meu trabalho e tinham ideias concretas em relação àquilo que queriam que eu fizesse.  Pediram-me para fazer um “remake” do álbum Le Voyage, que eu tinha feito para a editora Futuropolis, começando precisamente onde terminava a anterior história. Eles queriam uma continuação dessa história.

Qual foi o seu método de trabalho. Foi viver para o Japão ou continuou a trabalhar em casa, mandando os desenhos para o Japão?  

Apenas estive no Japão 15 dias como turista, a convite da editora Kodansha que me tratou principescamente. O trabalho foi todo feito em minha casa, em Nice. Eu desenhava as pranchas da direita para a esquerda, tal como iriam sair na edição japonesa, mandando o texto em folhas separadas e desenhava já as páginas no formato em que iriam ser publicadas na revista Morning, de modo a facilitar-lhes o trabalho. Para a edição francesa da Association foi necessário reverter a ordem dos filmes, juntar as legendas e retrabalhar as imagens, para as adequar ao sentido de leitura ocidental.

Qual era o feed back da Editora japonesa ao seu trabalho? Eles contactavam-no directamente, ou havia alguém que fazia a ligação entre os autores e a editora?

Eu começava por fazer uma sinopse rápida de cada episódio, uma espécie de story board feito de forma simples e rápida (normalmente demorava 2 dias a desenhar as 30 páginas da sinopse) e mandava esses esboços, acompanhados pelo texto a Takako Nasegawa, a representante da editora Kodansha em Paris, que fazia a tradução e mandava  tudo para o Japão. Depois o editor japonês dizia o que é que achava, indicando as correcções a fazer, no caso de as haver. Com base nessas sugestões, sempre muito ajustadas, eu desenhava a versão final. As sugestões eram feitas pelo editor que estava encarregue de trabalhar comigo e que apenas tinha mais 2 desenhadores a seu cargo. Era alguém extremamente profissional, que conhecia perfeitamente a minha obra, tendo lido tudo aquilo que eu fiz! E as suas observações eram sempre extremamente pertinentes  e tinham a ver com aspectos que pudessem dificultar a apreensão pelo público japonês do meu trabalho.
Para dar um exemplo: eu costumo fazer como José Muñoz, quando desenho uma figura de cabelos negros sobre um fundo negro, não me preocupo em distinguir os cabelos do fundo. No Japão isso é impossível. É preciso traçar uma linha branca que delimite bem os contornos da figura. Outro exemplo, os balões com as falas das personagens devem estar a meia altura do rosto das figuras, de modo a que o leitor japonês perceba quem é que está a falar. Do mesmo modo, enquanto que na BD europeia é perfeitamente possível ter um quadrado com duas pessoas à conversa, em que uma fala, a outra responde e a primeira fala outra vez, no Japão isso é impossível. A 3ª fala teria que vir no quadrado seguinte. O que explica que a história necessite de muito  mais páginas para se desenvolver.
Nas minhas histórias, muitas vezes há quadrados em que a imagem diz uma determinada coisa, o texto diz outra e há ainda um bocado de texto em voz off, que simboliza o narrador da história. Isto é, três diferentes níveis de leitura na mesma imagem. No Japão isso é impossível, tal como não é aconselhável utilizar balões de pensamento, ou aqueles pequenos textos a dizer “entretanto”, “enquanto isso”, ou “no dia seguinte”. Em contrapartida, temos um espaço muito maior para desenvolver o jogo corporal das personagens. E, mais do que pelos diálogos, a caracterização das personagens faz-se através desse jogo corporal, dos olhares, dos sorrisos. É uma forma mais visual de contar uma história, mas tão ou mais eficaz do que a nossa!

Foi fácil passar do ritmo de trabalho habitual dos desenhadores europeus para um tipo de produção muito mais exigente como é a japonesa?

Para mim isso nunca foi grande problema, pois sou muito rápido a desenhar. Apenas não queria que o trabalho para o Japão me ocupasse o tempo todo, impedindo-me de fazer outras coisas de características mais pessoais. Por isso, disse-lhes que apenas poderia desenhar 30 páginas por mês e eles não levantaram qualquer problema.

Mas trinta páginas por mês, equivale a uma página por dia, o que é muito, sobretudo se tivermos em conta que a maioria dos autores franceses demora perto de um ano a desenhar um álbum de 48 páginas…

Para mim não era nada de puxado… Eu era perfeitamente capaz de fazer 5 a 6 páginas por dia, sem sequer acelerar muito! Assim, a encomenda de 30 páginas por mês era perfeita, pois eu normalmente desenhava essas 30 páginas em 10 ou 15 dias, e ficava com o resto do mês livre para outros projectos.
Ofereceram-me 1.000 francos por página (cerca de 153 €) o que eu aceitei logo, até porque com uma encomenda de 30 páginas por mês eram mais de 4.500 € mensais garantidos, o que era bem mais do que aquilo que eu estava habituado a ganhar! Como tinha muitas dívidas acumuladas e precisava bastante de dinheiro, no primeiro mês fiz 60 páginas em vez das 30 combinadas. 60 páginas que desenhei em 15 dias, num traço bastante rápido e livre, que tinha medo que não agradasse ao editor japonês.
Pouco depois recebi um telefonema da representante da editora a dizer-me que tinham gostado muito do meu trabalho! Algo que nenhum editor francês tinha tido alguma vez a gentileza de me dizer… Ainda por cima eles acharam que eu estava a ser muito mal pago e que o meu trabalho valia mais, tendo decidido aumentar o meu pagamento para 1.500 francos por página (228,60 €). Eu estava verdadeiramente nas nuvens! Ainda por cima, eles achavam que, por uma questão de honestidade, esse aumento devia ser retroactivo e as 60 páginas que eu já tinha enviado iriam também ser pagas a 1.500 francos cada!  E isto apenas pelos direitos de publicação na revista Morning, pois quando Le Voyage foi editado em álbum no Japão, recebi também os respectivos direitos de autor! Podia verdadeiramente ter enriquecido a trabalhar para o Japão.
A verdade é que se isso não aconteceu, foi por culpa minha! Por exemplo, o contrato para a história Le Voyage falava em 200 páginas e eu ao fim de 200 páginas lá acabei a história. Pouco depois recebo um fax da editora a perguntar porque é que eu tinha acabado com a história. Afinal, as 200 páginas referidas no contrato eram o mínimo! Eu podia perfeitamente continuar com a história e fazer 2.000 páginas que eles ficavam todos contentes! Eu tinha lido mal o contrato que vinha em inglês… Se calhar, se tenho continuado com Le Voyage ainda hoje estava a trabalhar para a Kodansha.

Durante quanto tempo é que trabalhou para a editora Kodansha ?

Durante cerca de 4 anos. Mas acabei por não desenhar uma grande quantidade de páginas, sobretudo quando comparado com aquilo que podia ter feito. Le Voyage tem 220  páginas, Salade Nicoise tem 360 páginas… embora nem todas as histórias tenham sido incluídas na edição francesa, pois retirei 2 episódios que considero mais fracos. Ao  todo fiz cerca de 600 páginas em 4 anos, de 1993, 94 a 1998, mas podia ter feito bem mais! De qualquer modo, foi uma óptima experiência que me permitiu ser rico durante 4 anos e fazer coisas à borla para outras editoras como L’Association, sempre que me pediam.
Mas, para além da parte económica foi uma bela experiência. Uma experiência muito agradável que me permitiu aprender muita coisa e evoluir dentro do meu próprio trabalho. Mas foi suficiente para mim. Não me importo que tenha acabado, até porque, por mim, dificilmente teria coragem de tomar a iniciativa de virar as costas a um trabalho tão bem pago. Daí que não tenha ficado triste quando a editora Kodansha decidiu parar.

Eles terminaram os contratos com todos os autores franceses? Na sua opinião, o que é se passou que os levou a tomar essa decisão.

Praticamente todos…Acho que Alex Varene ainda continua a trabalhar para eles. Mas actualmente deve ser o único. Pode ter a ver com uma mudança editorial, mas essa mudança editorial traduz já um questionamento sobre o sucesso da política de contratar autores europeus. Mas a principal razão deve ter tido a ver com a crise económica japonesa, que é real. E nestes casos, os editores japoneses reagem da mesma maneira que os editores franceses, belgas, espanhóis, ou americanos. Quando as coisas correm mal, continua-se apenas com as séries de sucesso garantido, o que não era o caso dos autores europeus, que nunca foram grandes sucessos de vendas. A nossa contratação foi uma experiência para tentar perceber como funcionava a BD europeia e aprender com ela, em que a parte comercial nunca foi importante. Por isso, quando as vendas das revistas começaram a baixar, não puderam continuar com a experiência.

A minha ideia, partilhada por autores como François Schuiten e Miguelanxo Prado, é que os Japoneses contrataram os autores europeus mais para funcionarem como professores dos desenhadores japoneses, do que por razões comerciais. Era uma forma de renovar a linguagem da BD japonesa, muito marcada pelo trabalho de Osamu Tezuka e pela forma reverencial e perfeitamente assumida como os novos autores copiam o trabalho dos Mestres.

Também partilho dessa ideia! Mas, para ser ainda mais claro, os japoneses que trabalham com as imagens, não apenas os desenhadores, pensam que a América descobriu o Graal com as sit-coms e o cinema de Hollywood. E sabem que não podem bater a América nesse campo, mas estão em condições de lhe ganhar no desenho animado. O objectivo é ser o primeiro do mundo a nível dos desenhos animados, pois amanhã, aquele que tiver a força da imagem a nível mundial, terá a força económica. Isto foi-me dito por um japonês e é verdade!
Claro que os computadores e outras coisas são importantes, mas a potência da imagem é fundamental, é algo que vende. Eles querem ganhar essa batalha, mas têm consciência de que, para ganhar, é preciso ultrapassar aquilo que fazem actualmente. É preciso ler, devorar, compreender as outras formas de imagem para poder ir mais longe, sempre mais longe. Uma sociedade que avança sempre na horizontal acaba por se afundar, é preciso subir continuamente para ganhar. E para os japoneses a vitória é o único objectivo. Daí fazer trabalhar os autores europeus para que os desenhadores japoneses vejam aquilo que os europeus fazem e possam aprender e evoluir com eles. Mas o objectivo final não é a BD, os manga, mas sim a animação, algo que no Japão está intimamente ligado, pois a maioria das séries de manga de sucesso dá inevitavelmente origem a desenhos animados e a jogos de computador.  
  É preciso que o desenho animado japonês conquiste o mundo, e para atingirem esse objectivo, os japoneses estão abertos ao exterior e dispostos a aprender com os outros. Já os americanos pensam que podem ganhar sozinhos, enquanto que os japoneses estão dispostos a ver o que os outros fazem, para aproveitarem o que lhes parece o melhor dos outros. É muito simples. No fundo, estamos perante uma guerra mundial. Uma guerra cultural e económica, mas ainda assim uma guerra mundial!

Teve reacções dos autores japoneses ao seu trabalho?

Agora nem tanto. Mas, quando estava a trabalhar para o Japão era muito frequente receber cartas e livros de desenhadores japoneses que se gabavam de copiar o meu trabalho. Mas eu olhava para o trabalho deles e não conseguia perceber onde me tinham copiado. Para mim, pareciam-me mangas iguais aos outros.  É curioso, porque é um tipo de mentalidade exactamente oposta à maioria dos autores franceses, que quando questionados, negam as suas influências, mesmo quando são perfeitamente óbvias. Chegam a afirmar que não conhecem um determinado autor quando é mais do que evidente que são influenciados por ele!
No Japão é completamente diferente. O indivíduo não existe, o que conta é o colectivo! O objectivo é ganhar em em conjunto, os japoneses não têm uma visão individualista do mundo. E é estranho, pois foram chamar para trabalhar com eles os artistas de estilo mais pessoal e individualizado, tal como acontece com o cinema. Eles adoram o cinema europeu, cineastas como Godard e Almodovar, artistas com obras extremamente pessoais que só falam deles próprios nos seus filmes. Da sua vida, dos seus problemas com a imagem, com as mulheres… E os japoneses adoram isso, apesar  de ser o tipo de preocupações que não lhes devia interessar. O japonês nunca fala da sua mulher, ou dos seus problemas pessoais, é sempre o colectivo que está em jogo. No entanto, eles adoram cineastas como Pedro Almodovar… É algo complicado, que não é fácil de explicar, até porque autores como Taniguchi e grandes cineastas como Kurosawa ou Kitano, têm um tipo de reflexões que estão muito próximas do pensamento europeu. É um problema muito complexo… E quando eles se viram para a nossa cultura, não é apenas para copiar. Eles gostam verdadeiramente, fundamentalmente e com honestidade, da nossa maneira de pensar.
Quando eu estive no Japão apercebi-me um pouco dessa realidade e vi que não se podia reduzir tudo a uma mera questão comercial e de poder. Mesmo as editoras japonesas são estruturas imensas, autênticos hangares, mas que conservam um lado artesanal, apesar de estarmos no país  dos computadores. Há muita coisa que é feita à mão, em folhas de papel, mais até do que na BD europeia e americana, em que o computador é cada vez mais utilizado. É algo estranho mas agradável, com uma estrutura muito organizada, mas em que existe uma grande camaradagem, como se se tratasse de um grande grupo de amigos. Há uma estranha mistura de uma estrutura asfixiante e inumana mas em que há lugar para uma imensa humanidade. Por exemplo, nos enormes escritórios da editora Kodansha vê-se imensa gente a trabalhar, mas o patrão não tem um escritório maior do que os empregados. Se há um funcionário ou outro, que por ter trabalhado demasiado, adormeceu sobre a secretária, ninguém o incomoda e os colegas deixam-no dormir as horas que ele quiser. Algo que para nós é incrível, pois na Europa, numa situação semelhante o patrão vinha logo ter com o funcionário repreendê-lo. No Japão não, deixam-no dormir sossegado, o que para nós é estranho… E o editor, que está no escritório a fazer o seu trabalho, pode passar dias em casa do desenhador, ajudando-o, dando-lhe apoio a todos os níveis, desde ir às compras até cozinhar para eles.  

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