domingo, 23 de fevereiro de 2014

As Águias de Roma IV



OS LOBOS E A ÁGUIA

Quase em simultâneo com a edição original francesa, a Asa lançou em final de 2013 o quarto livro da série As Águias de Roma, título que assinala a estreia do desenhador suíço Enrico Marini como argumentista. Protagonizada por dois homens, Marcus, filho de um oficial romano e Ermanamer, filho de um príncipe da Germânia, levado para Roma como refém e rebaptizado Caius Julius Arminius, que são criados juntos como irmãos, mas que o destino irá colocar em lados diferentes da barricada, a história de As Águias de Roma tem por base acontecimentos históricos reais das Guerras Germânicas.
Acontecimentos esses, ocorridos no século I e que culminaram com a batalha da floresta de Teutoburgo, no ano 9, em que o exército romano foi massacrado pelas tribos germânicas comandadas por Armínio. Esse combate, em que os lobos germânicos trucidaram a águia romana, obrigou as tropas de Roma a retirar para cá do rio Reno, que se manteve como uma das fronteiras definitivas do Império romano.

Tal como acontece com Murena, de Dufaux e Delaby, outra série tendo como pano de fundo o Império romano, que a Asa também está editar em Portugal, em relação a Lucius Murena, Marini também cria um personagem fictício, como Marcus, colocando-o a interagir com personagens históricos, como Arminius e Varos, de modo a criar uma intriga ancorada nos factos históricos. Mas se compararmos as duas séries, é evidente o maior peso da acção sobre a intriga em As Águias de Roma, consequência lógica de Marini ser, antes de tudo, um desenhador. Ao contrário de Murena, em que o traço rigoroso do malogrado Philippe Delaby, ao serviço de uma rigorosa reconstituição histórica, servia sobretudo para fazer avançar a intriga, Marini opta por desenvolver bastante mais as sangrentas cenas de combate. Cenas complexas e bem coreografadas, desenhadas com grande realismo, mas sem abdicar de uma dimensão espectacular, patente no uso de poucos quadrados por página, a sua maioria num formato panorâmico, que permite enquadramentos mais épicos e cinematográficos.

Também em termos de cor, o trabalho de Marini é notável, com os tons frios e cinzentos das paisagens da Germania e das armaduras dos legionários romanos, a dominarem este álbum, em contraste com as cores mais luminosas dos dois primeiros álbuns, cuja acção decorria sobretudo em Roma. Um dos mais dinâmicos e espectaculares desenhadores realistas europeus, Marini mostra aqui que também é um bom argumentista, criando personagens complexos, por quem o leitor se interessa. Nesse aspecto, a ambiguidade de Arminius, dividido entre a sua amizade por Marcus e a vontade de libertar o seu povo do jugo romano, está bastante bem explorada.
Se Marini não alterar as suas intenções iniciais, a série terminará no próximo volume, com a batalha de Teutoburgo, momento-chave da afirmação de Arminius como líder incontestável do povo germano. E, mesmo sabendo qual das partes saiu vencedora, isso não diminui em nada a minha expectativa em relação ao capítulo final desta excelente série, que afirmou Marini como um autor completo.  
(“As Águias de Roma - Livro IV”, de Marini, Asa, 60 pags, 16,50 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 22/02/2014 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

DC Comics Uncut 25 - Batman: O regresso do Joker




E aqui está finalmente o último post desta secção, desta vez com um texto que não chegou a ser impresso de todo.Na nossa selecção inicial  para a II série dedicada à DC Comics, estavam alguns títulos da Linha New 52 que, depois de aprovados, tiveram posteriormente que ser substituídos, quando alguém da Panini se lembrou que estavam a distribuir as revistas brasileiras com as histórias dos Novos 52 e que assim, acabavam por fazer concorrência a si próprios...
Por isso, a não ser que haja uma terceira série dedicada à DC, com títulos dos Novos 52, esta história vai continuar inédita no português de Portugal. Felizmente, graças a este blog, o mesmo não acontece com o texto que escrevi para este volume.Espero que gostem.

JOGO DE MÁSCARAS

No mais conseguido dos filmes que fez para Hollywood, John Woo, o mestre do cinema de Hong Kong que revolucionou os filmes de gangsters, com obras como The Killer, ou A Better Tomorrow, filma uma intriga em que Nicolas Cage, no papel de um criminoso e John Travolta, como o polícia que o persegue, trocam literalmente de cara, e assumem a vida um do outro, transformando na sua máscara, o rosto do seu inimigo. Esse filme chama-se Face Off e esse título encaixaria como uma luva à história do Batman que vão ler de seguida, pois se no filme de Woo o rosto do rival se transforma na máscara de cada um dos protagonistas, o que permite a Travolta e a Cage jogar com os tiques de representação do parceiro, o Joker aqui vai ainda mais longe e transforma o seu próprio rosto na sua máscara.

Na sequência da reformulação das revistas do universo DC com o lançamento da linha Novos 52, o maior dos vilões desse universo, o Joker, esteve ausente das páginas da principal revista do Batman durante um ano, enquanto Scott Snyder e Greg Capullo enriqueciam a mitologia do Cavaleiro das Trevas, introduzindo a Corte das Corujas, uma sociedade secreta que controlava os destinos de Gotham há mais de uma centena de anos.
Apenas terminada essa saga, o Joker regressou pelas mãos de Snyder e Capullo, numa das mais perturbadoras histórias do Batman de sempre, em que a tensão psicológica e o terror atingem níveis muito elevados. Como o próprio Snyder refere numa entrevista, “o que aconteceu foi que a DC queria afastar o Joker para dar espaço a novos vilões que estavam a ser criados no âmbito da linha Novos 52, e eu disse-lhes que tinha uma ideia para uma história do Joker mais à frente. Tony (S. Daniel, o escritor da revista Detective Comics) tinha-se lembrado de um par de maneiras de fazer o Joker desaparecer por uns tempos. Falámos sobre essas diferentes hipóteses, de que ambos gostávamos e chegámos à conclusão que a história que mais lhe interessava contar, podia encaixar muito, muito bem na minha história”.

E foi assim que, no nº 1 da nova revista Detective Comics, em Novembro de 2011, o Joker se deixa capturar pelo Batman e é levado para o Asilo Arkham, onde convence o Dollmaker a remover-lhe cirurgicamente o rosto. Rosto que é deixado pregado como uma relíquia na parede da sela, enquanto o Joker, tal como uma serpente que deixa para traz a antiga pele, desaparece deixando o que resta da sua face na mão das autoridades. Só no nº 12 da revista Detective Comics, numa história curta de James Tynion IV, um jovem escritor lançado por Snyder no mundo dos comics, ilustrada por Szymon Kudranski, cujo título The Tell Tale Face, remete para The Tell Tale Heart o conto de terror de Edgar Alan Poe, o peso da presença da cara do Joker na esquadra de Gotham é evocado, numa história que prepara o leitor para o eminente regresso do sorridente vilão, cujo rosto descarnado é escondido pelas sombras.
Assim, depois de um ano desaparecido, planeando o seu regresso, o Joker está de volta, para atacar o Batman através daqueles que lhe são queridos, mas primeiro vai recuperar o seu rosto, numa impressionante sequência, em que, jogando com as sombras e sugerindo muito mais do que mostram, Snyder e Capullo criam momentos de puro terror. Momentos que culminam, no final do primeiro capítulo, com a revelação da nova imagem do Joker, em que o rosto que perdeu se transforma na sua máscara, uma máscara presa à carne viva por correias de couro.

Uma imagem fortíssima, que não consegue deixar de evocar um ícone do terror cinematográfico, o personagem Leatherface do filme Texas Chain Saw Massacre, de Tobe Hopper. E se virmos bem, mais do que uma saga de super-heróis, este O regresso do Joker, é uma história de terror psicológico, o que acaba por ser natural, pois tanto Scott Snyder como Greg Capullo têm grandes ligações ao género. Capullo estreou-se na BD ilustrando Gore Shriek, um comic de terror para adultos, enquanto Snyder, ainda antes de se dedicar à BD, se estreou como escritor em 2006 com Voodoo Heart, uma recolha de contos de terror, dois dos quais foram selecionados por Stephen King para a antologia The Best American Short Stories, de 2007. O mesmo Stephen King que vai colaborar com Snyder em American Vampire, a série que este último lançou na Vertigo em 2010 e que o tornou um nome popular e prestigiado junto dos leitores de comics.
Mas, embora crie uma história que acentua o lado negro do Cavaleiro das Trevas, Snyder não esquece o contributo dos autores que o antecederam para a mitologia da personagem e do seu maior inimigo. Assim, se o título original desta saga, Death of the Family, remete para o clássico Death in the Family, de Jim Starlin e Jim Aparo, em que o Joker mata Jason Todd, o segundo Robin, essa não é a única das grandes histórias com o Joker a ser evocada. Ao colocar o Joker a reencenar alguns dos seus crimes mais famosos, Snyder homenageia histórias clássicas, como The Killing Joke, de Alan Moore e Brian Bolland, já publicado na 1ª série dedicada ao Universo DC, The Man who Laughs, de Ed Brubaker e Doug Mahnke e o incontornável Arkham Asylum de Grant Morrison e Dave McKean.

O que não impede que este Regresso do Joker, pela forma como explora a relação do Batman com os seus amigos e aliados mais próximos e como estes, ao tornarem-se alvos preferenciais do Joker, se revelam a sua maior vulnerabilidade, se aproxime até mais de outro título publicado na 1ª série desta coleção, em que a participação do Batman é bastante limitada. Refiro-me à Crise de Identidade, de Brad Meltzer e Rags Morales, que mostrava que a maior fragilidade dos super-heróis residia na incapacidade de proteger aqueles que amam e lhes são próximos, dos ataques dos seus inimigos. Se o talento de Snyder para escrever histórias do Batman inesquecíveis, já não é surpresa para ninguém desde o magnífico Black Mirror, a escolha de Greg Capullo para ilustrar o Batman na principal revista da linha Novos 52, foi recebida com surpresa, pois o desenhador, cuja carreira está sobretudo associada à sua colaboração com Todd McFarlane na série Spawn, durante perto de vinte anos, estava longe de ser uma escolha óbvia para desenhador do Cavaleiro das Trevas.
Mas a verdade é que Capullo revelou-se um dos melhores desenhadores do Batman deste século, adaptando o seu estilo, bastante mais legível sem a arte-final de McFarlane, às necessidades da personagem e influenciando a própria narração de Snyder. Um escritor que, embora habituado a escrever argumentos extremamente detalhados, em que nada é deixado ao acaso, foi gradualmente dando maior autonomia a Capullo, que nesta história assume a principal responsabilidade pela planificação e colabora também na própria evolução da história.

Como refere Snyder, “no fim de contas, o que Greg (Capullo) traz para a história não é só o que está na página, em termos artísticos. De um ponto de vista visual, ele discute a história comigo e contribui com ideias. Ele é realmente o co-autor, o co-criador das histórias. Quem gosta deste Batman devia agradecer ao Greg Capullo, porque ele é fundamental em fazer do Batman aquilo que é aqui.” O efusivo endosso de Snyder não ficou por aqui: “O Greg é um mestre da expressão. Ele é mesmo, mesmo bom a fazer com que as personagens contem a história através de expressões faciais e gestos, e também é mesmo, mesmo bom tanto em sequências de acção como em cenas estáticas. Com o Greg, em vez de ter personagens a conversar longe do leitor, tento sempre mantê-las próximas, porque sei que ele é óptimo a acrescentar subtilezas às expressões delas”.
Conciliando tradição e modernidade, Scott Snyder e Greg Capullo construíram uma das melhores histórias do Batman da última década, trazendo uma dimensão ainda mais icónica ao mais carismático dos vilões do Universo DC. Uma história única, tão sombria como espectacular, que os leitores portugueses também vão finalmente poder descobrir neste segundo volume da 2ª série da Coleção Heróis DC.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Um punhado de imagens de Angoulême 2014


Conforme prometido, aqui vai a reportagem possível da edição 41 do Festival Internacional de BD de Angoulême, a mais importante iniciativa europeia do género, que este ano premiou Bill Waterson, o genial criador de Calvin e Hobbes, com o Grande Prémio do Festival, vencendo assim uma corrida a três com Alan Moore e Katshuiro Otomo.
Independentemente da justiça desta distinção para um autor com uma obra relativamente curta (as tiras de Calvin duraram apenas 10 anos, entre 1985 e 1995), mas de qualidade indiscutível, a verdade é que a atribuição do Grande Prémio de Angoulême esteve envolta em polémica, face à alteração do método de eleição, com a decisão final a caber já não aos anteriores vencedores do Grande Prémio, mas a uma vocação global feita pela Internet, onde puderam votar todos os profissionais de BD de qualquer nacionalidade, desde que tivessem trabalhos publicados em França. Além disso, tendo em conta o carácter reservado de Waterson, que não aparece em público desde que a série terminou e muito raramente dá entrevistas, é pouco provável que o vejamos no próximo Festival. Esperemos ao menos que faça a ilustração para o cartaz e empreste originais para a exposição que lhe será dedicada…
Um problema que não pôs este ano, pois Willem, para além de ter feito o (pouco inspirado) cartaz, esteve presente no Festival e teve direito a uma exposição no Hôtel Saint Simon que cobria os seus mais de 50 anos de actividade como ilustrador e cartoonista na imprensa francesa.
Falando das exposições, o melhor do programa oficial estava no Vaisseau Moebius, o edifício em vidro que antigamente albergava o Museu da BD e o CNBDI, que, no ano em que se comemoravam os 100 anos da 1ª Guerra Mundial, acolheu as exposições de Jacques Tardi e Gus Bofa, dois autores separados por décadas, mas que retrataram os horrores da guerra com a mesma eficácia.
 Uma das grandes referências de Tardi, Bofa viveu a Iª Guerra por dentro, tendo perdido uma perna em combate e os seus cartoons retratam a violência da guerra com um humor muito negro e um traço tão simples como eficaz. Se a bela exposição dedicada a Bofa não tinha muita gente e podia ser vista tranquilamente, já a exposição dedicada a Tardi tinha uma fila quilométrica, que saia do edifício e serpenteava pelo pátio do Vaiseau Moebius até chegar ao passeio, o que me impediu de a visitar.
No espaço Franquin, cujos auditórios acolheram os encontros com os autores, como um animado encontro com Hermann e Boucq, a que pude assistir, estavam outras duas exposições. Uma mostra de grande público dedicada aos 50 anos da Mafalda, de Quino, que seria interessante trazer a Portugal e Du Transperceneige à Snowpiercer, exposição que aproveitando o sucesso do filme do coreano Bong Joon-Ho, recupera a BD de Lob, Rochette e Legrand, que lhe deu origem, juntando as pranchas originais de Rochette para a BD, com as ilustrações que fez para o excelente filme do realizador coreano, que pude ver numa sessão especial que contou com a presença do argumentista Legrand e da viúva de Jacques Lob. Não sei se o filme estreará em Portugal, nem se passará a versão integral, ou a versão americana, censurada pelos irmãos Weisteen em mais de 20 minutos, mas se tiverem a oportunidade, não deixem de o ver.
Espalhadas pela cidade, havia uma série de exposições dedicadas às séries infantis “Les Légendaires” e “Ernest e Rebecca”, aos 80 anos do Journal de Mickey, à obra de Etienne Davodeau, à Sharaz-De de Sergio Toppi, já para não falar nas inevitáveis exposições e feiras do livro de BD cristã, presentes nas principais igrejas na cidade.
 Embora praticamente ausente da divulgação oficial, face ao conflito que opõe as direcções do Festival e da Cité Internationale de la bande dessinée et de l’image, responsável pela gestão do novo Museu da Banda Desenhada, situado no cais do rio Charente, a melhor exposição deste Festival, sobre o sonho na BD, estava precisamente no Museu da Banda Desenhada. Acompanhada por um excelente catálogo, coordenado por Thierry Groensteen, a exposição Nocturnes estava ao nível das melhores exposições que já vi em Angoulême, contando com uma cenografia muito bem conseguida, que valorizava a acertada selecção de originais, que ia de Schuiten a Winsor McCay, passando por David B., Frank Pé e Marc-Antoine Mathieu, entre muitos outros. Ainda no Museu, estava também uma mostra bem mais sóbria dedicada ao livro HP de Guido Buzzelli, em que a qualidade dos originais dispensava qualquer cenografia mais elaborada.

Mas a verdade é que a maioria dos visitantes do Festival, não terá visto qualquer exposição, pois passaram os dias enfiados nas gigantescas tendas, nas intermináveis filas, à espera de conseguir um autógrafo desenhado dos seus autores favoritos. Eu tratei dessa parte logo na quinta-feira, em que havia muito menos gente e consegui um desenho a aguarela de Lele Vianello, antigo assistente de Hugo Pratt, no álbum Nuits Venetiennes, acabado de lançar pela Mosquito, que continua com um trabalho notável na divulgação dos mestres da BD italiana.
Não tenho números, mas pela maneira como já era difícil furar pelo meio da multidão que enchia as ruas da cidade na tarde de sexta-feira, ou pela imensa fila para a exposição de Tardi, na tarde de sábado, pareceu-me evidente que esta edição do Festival terá batido novos recordes de assistência, até porque as condições meteorológicas também ajudaram.
Quanto a presenças portuguesas, embora não faltassem visitantes nacionais, o destaque vai naturalmente para Paulo Monteiro, que esteve a dar autógrafos no stand da editora Six Pieds Sous Terre, que editou o livro do autor português em França, com excelente acolhimento da crítica.

Depois de quatro anos de ausência, soube-me muito bem regressar ao Festival de Angoulême, mesmo com a frustração de não ter conseguido trazer tudo o queria, especialmente a belíssima edição especial da homenagem de Frank Pé ao Little Nemo, de Winsor McKay, de que pude admirar alguns fabulosos originais na exposição Nocturnes.
Para quem gosta de Banda Desenhada, esta é uma viagem que se deve fazer pelo menos uma vez e que, se for planeada com tempo, não fica tão cara quanto parece.. Eu cá, se puder, lá estarei para o ano, pronto para admirar os originais de Bill Waterson.

Lele Vianello a dar autógrafos no Stand da Editora Mosquito

Originais de Jean-Marc Rochette para Le Transperceneige
A fila para a exposição de Tardi no Vaiseau Moebius
Pormenor da exposição de Davodeau, na Maison du Peuple et de la Paix
Exposição de Sergio Toppi no Conseil General de la Charente
Pormenor da exposição Nocturnes, no Museu da BD
Outro pormenor da mesma exposição

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Dc Comics Uncut 24 - Super-Homem e Batman: Poder Absoluto


Embora este seja o último volume da 2ª colecção que a Levoir dedicou à Dc, não é o último texto desta rubrica, como poderão ver proximamente. No caso deste texto, o mais curioso é que a tentativa de cortes partiu, não da DC, mas de quem reviu o texto, o Filipe Faria, que decidiu fazer alguns cortes, que eu não aceitei, e acrescentou uma frase sobre a história que conclui este volume. 

O JARDIM DOS CAMINHOS QUE BIFURCAM

Num dos mais inspirados contos do livro Ficções, de 1941, o escritor argentino Jorge Luís Borges antecipa em 16 anos as teorias do físico Hugh Everett, que revolucionaram a física quântica, defendendo que em cada instante que uma escolha é feita, seja pelo acaso, seja por opção humana, o universo divide-se em dois: um para cada escolha possível.
O paradoxo que Everett procurou provar através das fórmulas matemáticas, já tinha intuído Borges no conto O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam. O jardim em causa não é um espaço físico, mas um conto escrito por Ts'ui Pen, um antepassado do espião alemão que protagoniza a história. Um conto que tenta representar através de um labirinto, o universo e todas as suas infinitas possibilidades. Ou, citando Borges, através de uma das personagens: "comparei centenas de manuscritos, corrigi os erros que a negligência dos copistas introduziu, conjecturei o plano desse caos, julguei estabelecer a ordem primordial, traduzi a obra inteira: resulta-me que não emprega uma única vez a palavra tempo. A explicação é óbvia: O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts'ui Pen. Ao contrário de Newton e de Schopenhauer, o seu antepassado não acreditava num tempo uniforme e absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Esta trama de tempos que se aproximam, se bifurcam e se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Nós não existimos na maior parte desses tempos; nalguns deles existe você e eu não; noutros eu, e não você; noutros ainda existimos os dois. Neste, que um favorável acaso me proporciona, você chegou a minha casa; noutro, você, ao atravessar o jardim, deu comigo morto; e noutro, eu digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma."
Essas infinitas possibilidades abertas por diferentes escolhas, estão também na base da história que vão ler a seguir, escrita por Jeph Loeb para os desenhos dos espanhóis Carlos Pacheco e Jesus Merino e publicada originalmente nos nºs 14 a18 da revista Superman/Batman, de que já pudemos ler no último volume da série 1 desta colecção o arco de histórias anterior, ilustrado por Michael Turner.
 Neste terceiro arco da revista que voltou a juntar os dois maiores heróis do Universo DC, Loeb explora as ilimitadas potencialidades narrativas que a existência de universos paralelos permitia e que, com a reformulação do Universo DC provocada pela Crise nas Terras Infinitas, ficou praticamente limitada às histórias da linha Elseworlds, de que tivemos um exemplo, tanto na primeira como na segunda série, com Batman: Outros Mundos e Super-Homem: Herança Vermelha. Neste caso, Loeb recorreu às viagens no tempo para explorar a forma como uma alteração crucial no início das suas vidas - com os dois heróis a serem educados por três membros da Legião dos Super-Vilões - pode modificar completamente a vida do Homem de Aço e do Cavaleiro das Trevas e, por inerência, o universo em que eles se inserem.
 No fundo, Loeb pega na premissa utilizada por Mark Millar em Herança Vermelha e leva-a mais longe, para além de lhe introduzir diversas variantes. Variante que se traduzem em futuros alternativos, causados por alterações no passado, que permitem recuperar uma série de personagens que a Crise nas Terras Infinitas tinha afastado da continuidade regular, mas que são parte incontornável da história da DC. Desde os heróis do Oeste, de que Jonah Hex é o mais carismático exemplo, até ao símbolo maior da América, a representação do espírito americano, o Tio Sam, cuja imagem foi fixada por James Montgomery Flagg, em 1917, nos cartazes de propaganda e que Will Eisner trouxe para a Banda Desenhada em 1940, e que mais uma vez surge como símbolo do combate pela liberdade e contra a opressão. Uma opressão neste caso representada pelo Batman e pelo Super-Homem. Mas, mais dos que os heróis, a que mestres como Will Eisner e Joe Kubert (não falta aqui o Sargento Rock), emprestaram o seu talento, Loeb vai buscar para esta história épica, muitas das personagens que passaram pelas histórias do mais épico dos criadores. O grande Jack Kirby, aqui representado pelos personagens do Quarto Mundo, como Darseid e Metron e por Kamandi, o último rapaz da Terra, nascido numa série inesquecível em que o King levou mais longe o futuro distópico que o filme Planeta dos Macacos tinha aflorado. Para articular esta multitude de referências diversas de uma forma graficamente coerente, Loeb necessitava de um desenhador tão versátil como virtuoso do seu lado. Encontrou-o em Carlos Pacheco.
Um dos mais importantes e populares autores latinos a trabalhar nos comics de super-heróis, o espanhol, natural de Cádis, soube rapidamente construir uma carreira ímpar, em que deu o seu cunho pessoal aos principais heróis da Marvel e da DC, para além de abrir o caminho para a invasão do mercado americano de super-heróis por uma série de desenhadores de origem espanhola, como Salvador Larroca, Rafa Fonteriz, Guillem March, Javier Pulido, Oscar Jimenez e Jesus Merino, seu colaborador habitual, que aqui assina a arte.final. Profundamente influenciado pelos comics de super-heróis, Pacheco iniciou-se na BD em Espanha através dos concursos de descobertas de novos talentos promovidos pelo editor Josep Toutain, mas começou a dar nas vistas entre 1978 e 1982 como ilustrador das capas da Colecção “Clássicos Marvel”, da editorial Forúm, onde teve a possibilidade de desenhar pela primeira vez muitos dos heróis com que viria a trabalhar anos mais tarde, como desenhador regular. Leitor ávido e profundo conhecedor das histórias de super-heróis, a ponto de ter criado, com Rafael Marin e Rafa Fonteriz, a série Iberia Inc., protagonizada por um grupo de super-heróis espanhóis, a entrada de Carlos Pacheco no mundo dos comics de super-heróis era uma questão de tempo.

Essa entrada vai ter lugar em Dezembro de 1992, pela porta dos fundos, através da Marvel UK, ao fim de 10 anos a mandar submissões às grandes editoras americanas. O seu trabalho como desenhador na série Dark Guard desperta a atenção dos editores e, quase em simultâneo, Pacheco recebe convites para trabalhar para as duas grandes editoras americanas. Para a DC, para além do seu trabalho no encontro entre a Liga da Justiça e a Sociedade da Justiça, que já puderam apreciar nesta colecção, destaca-se a sua etapa como desenhador do Super-Homem e a sua colaboração com Kurt Busiek em Arrowsmith, série que transpunha a dura realidade da I Guerra Mundial para um universo de fantasia, que a Devir publicou em Portugal.
 Pela forma como consegue reunir numa história coerente, tantos heróis e vilões, evocadores de diferentes períodos da riquíssima história do Universo DC, Poder Absoluto é a história ideal para concluir esta emocionante viagem de 30 semanas pelos meandros do Universo DC, que a Levoir proporcionou aos leitores portugueses. Uma viagem inesquecível, feita de histórias épicas, protagonizadas por grandes heróis e vilões à altura.