domingo, 12 de janeiro de 2014

DC Comics Uncut 22 - Super-Homem: Herança Vermelha


HOMEM DE AÇO, CORTINA DE FERRO

Há ideias assim. Tão geniais na sua simplicidade, que nos interrogamos como é que ninguém se lembrou disso antes. A história que vão poder ler neste livro, tem um ponto de partida desses: o que aconteceria se a nave que permitiu ao pequeno Kal El escapar à destruição do planeta Krypton, ao chegar à Terra, tivesse aterrado no meio das estepes ucranianas, em vez de numa planície do Kansas?
É partindo dessa premissa, tão simples como cheia de possibilidades, de um Super-Homem educado segundo a doutrina comunista, que em vez de lutar pela verdade, justiça e pelo modo de vida americano, trava "uma batalha sem fim por Stalin, pelo socialismo e pela expansão internacional do Pacto de Varsóvia", que o argumentista Mark Millar criou Herança Vermelha. Publicada originalmente em 2003 como uma míni-série em três partes,  integrada na linha Elseworlds, Herança Vermelha analisa as implicações geoestratégicas de um acontecimento como esse, no equilíbrio entre as duas superpotências.

Exactamente por ser óbvio que alguém com os poderes do Super-Homem seria capaz de pôr termo a uma guerra em poucos minutos, que, ao contrário do que acontece por exemplo com o Capitão América, a participação do Homem de Aço na Segunda Guerra Mundial se limitou à frente interna, com excepção de algumas capas, bastante mais patrióticas do que o conteúdo das respectivas revistas, e de  uma curiosa história de duas páginas publicada em 1940 na revista Look, chamada precisamente How Superman Would Win the War,  em que o Homem de Aço rapta Hitler e Stalin e leva-os para a Suíça para serem julgados pelo Tribunal da Sociedade das Nações.
Apesar de, naturalmente, não se integrar na continuidade da série, o impacto desta história chegou até à Alemanha nazi, onde motivou um artigo no Das Schwarze Korps, o jornal das SS., em que o Super-Homem é acusado de "ignorar as leis da física" e de corromper a mente das crianças americanas, e os seus autores, um dos quais, apresentado como sendo "um indivíduo intelectualmente e fisicamente circuncisado" de roubarem a ideia do Super-Homem aos ideais da raça superior ariana...
Durante a Guerra Fria, o Super-Homem, na Banda Desenhada manteve-se relativamente afastado das disputas ideológicas entre os Estados Unidos e a União Soviética, o que não foi tão evidente em outros média, como a televisão. Foi precisamente na televisão, na célebre série televisiva protagonizada por George Reeves, onde nasceu o famoso slogan que o apresenta como um lutador pela "verdade, justiça e pelo modo de vida americano". Um aspecto que é tratado de forma paródica no incontornável The Dark Knight Returns, de Frank Miller, em que o Homem de Aço surge retratado como um homem de mão da administração Reagan, ajudando o exército americano a combater as tropas do Pacto de Varsóvia.
É precisamente essa ameaça pendente de uma guerra nuclear, que ainda estava na ordem do dia durante a década de 80, que está presente em The Dark Knight Returns, e que encontramos também no Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, em que a existência de um indivíduo com superpoderes como o Dr. Manhattan, vem alterar decisivamente o equilíbrio de poder entre as duas superpotências a favor dos Estados Unidos. Mas, apesar dos pontos de contacto com Watchmen e The Dark Knight Returns, o primeiro ponto de partida para Herança Vermelha foi outro. Conforme refere o próprio Millar: “Red Son é baseado numa ideia que me surgiu quando li o Superman # 300, aos seis anos. Era uma história imaginária em que a nave do Super-Homem aterrava numa terra de ninguém entre os Estados Unidos e a União Soviética e ambas as potências tentavam reclamar a criança. Como uma criança nascida na sombra da Guerra Fria, a ideia do que poderia ter acontecido se os Soviéticos tivessem ficado com a criança pareceu-me fascinante."

É pois numa realidade histórica alternativa à que os leitores conhecem, o que, tal como vimos no volume Batman: Outros Mundos, publicado na primeira série desta colecção, é um dos elementos que distingue a linha Elseworlds, que a intriga imaginada por Mark Millar tem lugar. Uma realidade alternativa, com uma evolução histórica diferente, uma ucronia, género cultivado pela ficção científica desde os anos 50, em obras como The Man in  the High Castle, de Philip K. Dick,  em que não ocorre a desintegração do Bloco Soviético, nem a queda do Muro de Berlim e em que é Nixon, não Kennedy, que é assassinado em Dallas, em 1963, com Kennedy, que se divorcia de Jackie e casa como Marilyn Monroe,  a continuar como Presidente.
E se a existência de alguém com os poderes do Super-Homem vem naturalmente desequilibrar o balanço de forças a favor da Potência que ele defende, também é natural que o próprio Super-Homem acabe naturalmente por assumir o poder, sucedendo a Stalin como Senhor Supremo da Rússia, transformando-se num ditador, que embora benevolente e bem intencionado, não deixa de ser um ditador. No fundo, embora não vá tão longe como Alan Moore em Miracleman, Millar também conclui que, se o poder corrompe, nem mesmo o Super-Homem está imune a essa corrupção.

E se o Super-Homem está do lado daqueles a que os leitores americanos se habituaram a identificar como os maus, o “modo de vida americano” é defendido por Lex Luthor, que mesmo nesta realidade alternativa, continua dominado pelo seu ego incomensurável e por uma total falta de escrúpulos e desprezo pela vida humana. Além do eterno confronto Super-Homem/Lex Luthor, para os fãs de Super-Homem, há ainda a curiosidade de ver como Millar consegue integrar de forma harmoniosa na narrativa, alguns elementos característicos da mitologia do Homem de Aço, da Fortaleza da Solidão, à cidade engarrafada de Kandor, passando por Bizarro.
Mas o Super-Homem e o seu maior inimigo, não são as únicas personagens do universo DC que os leitores reconhecerão, apesar de ligeiramente transformadas. Tanto Lois Lane como Perry White e Jimmy Olsen existem neste universo, mas o facto de não conviverem de perto com o Super-Homem, não permite que este molde as suas vidas. Já o Batman, cuja origem é semelhante à que conhecemos, com a diferença de os pais não terem sido mortos por um simples ladrão, mas por agentes da NKVD (a polícia política, percursora da bastante mais conhecida KGB), estabelece com o Super-Homem, não uma relação de cumplicidade, mas de confronto, o que, mais uma vez nos remete para o Dark Knight Returns, de Frank Miller. 

Apesar da forma brilhante como Millar soube desenvolver uma ideia tão simples como genial, o sucesso de Herança Vermelha, passa e muito, pela arte de Dave Johnson. Conhecido e premiado ilustrador, responsável pelas capas de séries como 100 Bullets, que lhe valeram mais do que um Prémio Eisner, o “Reverendo” Dave Johnson (além da sua actividade artística, Johnson desenvolve uma actividade religiosa como Pastor da Igreja Metodista) assina aqui um dos raros trabalhos como desenhador sequencial, em que mistura imagens imediatamente reconhecíveis de histórias clássicas do Super-Homem, com a iconografia dos cartazes de propaganda soviética, com excelente resultados.
De Kick Ass a Superior, passando pela Guerra Civil, que os leitores portugueses puderam ler numa anterior coleção, Mark Millar sempre especulou sobre as consequências da existência de super-heróis no mundo real. Mas foi nesta história, passada num mundo alternativo, em que a História seguiu um percurso divergente, que tudo começou. E não podia ter começado de melhor maneira.

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