segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Regresso a Angoulême



Começa na próxima quinta-feira, dia 30 de Janeiro, mais uma edição, a 41ª do Festival Internacional da BD de Angoulême, o maior Festival europeu do género.  Fui a Angoulême pela primeira vez em 1991, já lá vão mais de vinte anos. Desde então tenho ido ao Festival de Angoulême com alguma regularidade, mas curiosamente, a última vez que estive em Angoulême, foi também a única fora do período do Festival. Aconteceu em Dezembro de 2010, por ocasião da exposição que o novo Museu da BD de Angoulême dedicou a José Carlos Fernandes, aquando da edição em França pela Cambourakis dos dois primeiros volumes da Pior Banda do Mundo.
Desde que comecei a dar aulas na ESAP - Guimarães, em 2011, têm-me sido impossível conciliar as aulas com as datas do Festival, até que este ano, consegui alterar o meu horário de maneira a poder finalmente regressar a Angoulême. E vou precisamente com dois meus antigos alunos de Mestrado em Guimarães.
Se o tempo e as redes Wireless ajudarem, conto ir dando aqui conta do que se passar no Festival. Se não, fica prometida uma reportagem para o meu regresso.   

sábado, 25 de janeiro de 2014

Super Pig e a Língua de Shakespeare


Depois de “Roleta Nipónica”, o Super Pig está de regresso com “O Impaciente Inglês”, um ambicioso romance gráfico de 90 páginas, lançado no último Festival da Amadora, que confirma a evolução de Mário Freitas enquanto argumentista e o seu talento para se rodear dos ilustradores certos para cada projecto.
Criado em 2006, o personagem Super Pig tem funcionado como um veículo para as incursões do seu criador (e também editor) enquanto argumentista de BD. Personagem antropomórfico, Super Pig, como o próprio nome indica, é um porco que se movimenta num mundo de humanos, um pouco na linha do “Cerebus” de Dave Sim. À semelhança do próprio Cerebus, que começou como uma paródia de Conan, o Bárbaro, protagonizada por um papa-formigas antropomorfizado, para se transformar em algo bastante mais complexo e interessante, também o Super Pig tem crescido como personagem à medida que o seu criador se tem afirmado como argumentista.
Curiosamente, esse crescimento do Super Pig está ligado ao destaque cada vez maior que o seu pai, o milionário Calouste Pig, vai tendo nas últimas histórias. Algo que é evidente em “Roleta Nipónica”, uma incursão no mangá, em que o sushi se cruza com o leitão da Bairrada, ilustrada com grande eficácia por Osvaldo Medina, em que o principal protagonista é Calouste Pig, e que se acentua neste “O impaciente Inglês”.
Se “Roleta Nipónica” em termos narrativos, consistia num longo flash back protagonizado por Calouste Pig, neste “Impaciente Inglês” a coisa complexifica-se bastante, com diversos saltos temporais, que nos levam das épocas isabelina e vitoriana, até à actualidade, e narrativas paralelas, como as recordações da infância do Super Pig, que correm numa pequena tira no fundo de algumas páginasOutra particularidade desta história é ser parcialmente falada em inglês, com os personagens ingleses a falaram na língua de Shakespeare, sem tradução. E a língua de Shakespeare está presente também em sentido literal, pois o motor da história (o Mcguffin, para citar Hitchcock) é precisamente uma relíquia, a língua do poeta William Shakespeare, cortada depois deste morrer, e que passará pelas mãos de figuras históricas tão ilustres como John Dee, o poeta John Milton, a Raínha Vitória, Oscar Wilde e Wiston Churchil, para acabar na posse de Calouste Pig e, com isso, provocar o início da decadência do Império Britânico.
Os longos diálogos em inglês e a complexidade da intriga e da planificação, são aspectos que exigem um maior investimento do leitor em termos de atenção, mas a verdade é que o resultado final compensa bem o esforço.

Nesta história complexa e ambiciosa, onde se sente a sombra de Alan Moore, Grant Morrison e Neil Gaiman (John Dee é um dos protagonistas de “1602”), Mário Freitas contou com o talento gráfico de André Pereira, um jovem artista natural da Figueira da Foz, que se sai muito bem desta tarefa complexa, conseguindo algumas páginas espectaculares em termos gráficos e de planificação, embora por vezes sejam visíveis algumas hesitações e imprecisões no traço, que o bem conseguido trabalho de cor de Bernardo Majer, ajuda a disfarçar
Se o crescimento da editora Kingpin, alicerçado em títulos como “A Fórmula da Felicidade”, “Palmas para o Esquilo” e “O Baile” vem confirmar as capacidades de Mário Freitas enquanto editor, este “Impaciente Inglês” vem mostrar também que estamos perante um argumentista a seguir com atenção
(“Super Pig: O Impaciente Inglês”, de Mário M. Freitas, André Pereira e Bernardo Majer, Kingpin Books, 92 pags, 17,99 €)
Versão integral do texto publicado no Diário as Beiras de 25/01/2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

DC Comics Uncut 23 - Contos do Batman


O Batman segundo Tim Sale

Graças a obras tão populares e prestigiadas como The Long Halloween e Dark Victory, Tim Sale é considerado como um dos mais importantes artistas a desenhar o Batman nas últimas duas décadas. Mas a ligação de Sale com o Cavaleiro das Trevas não começou com as sagas em que Sale e Jeph Loeb deram continuidade ao passado de Batman, que Frank Miller e David Mazzucchelli começaram a narrar em Batman: Ano Um. Essa ligação começou bem antes. Começou precisamente nas histórias que vão poder ler neste volume.

Nascido em 1956 em Ithaca, Nova Iorque, Sale passou a infância e a dolescência em Seattle, de onde saiu para frequentar durante dois anos a School of Visual Arts, a célebre escola nova-iorquina criada por Burne Hogarth, onde Will Eisner foi professor,  para além de ter feito um workshop em Banda Desenhada com John Buscema. Mesmo que tenha regressado a Seattle sem ter concluído a sua licenciatura na S.V.A., o contacto com tão bons mestres deixou marcas e não admira que tenha acaba por decidir fazer carreira na Banda Desenhada. Uma carreira que se iniciou em 1983, com a série Mith Adventures da Warp Graphics, mas que só arrancaria dois anos mais tarde ao conhecer o autor Matt Wagner e a editora Diana Schutz na Comic Con de San Diego. Um encontro que lhe valeu o convite para colaborar na série Grendel, de Wagner, como desenhador, e que acabou por levar ao encontro mais importante da sua vida, com o escritor Jeph Loeb, vindo do mundo do cinema, que lhe foi apresentado por Wagner e Schutz.
A série Chalengers of the Unkwon, o primeiro argumento de comics escrito por Loeb em 1991, foi naturalmente ilustrado por Sale e desde então a dupla colaborou em inúmeros projectos, não só para a DC. Foi o caso das mini-séries Homem-Aranha: Azul e Demolidor: Amarelo, publicadas em Portugal pela Devir e da participação de Sale na série televisiva Heroes, de que Loeb foi produtor e argumentista e onde Sale, para além de conselheiro artístico, foi o responsável pelas pinturas de Isaac Mendez, um dos personagens da série, cujos poderes divinatórios se revelavam nos quadros que pintava.
 Mas apesar das memoráveis histórias do Batman em que trabalharam juntos, a estreia de Tim Sale como desenhador do Cavaleiro das Trevas não se faz ao lado de Loeb, mas sim do inglês James Robinson, o criador de Starman, com Lâminas (Blades), uma história em três partes publicada em 1992 nos nºs 32 a 34 da revista Legends of the Dark Knight, coordenada pelo mítico editor Archie Goodwin. Embora fosse a primeira vez que estava a desenhar o Batman, a imagem que abre a história mostra já duas características bem identificadoras do estilo de Sale: um cuidadoso uso das sombras, que cobrem o uniforme do Cavaleiro das Trevas e o rigor e o detalhe no tratamento do cenário, visível nos post-its que cobrem o frigorífico, ou nos retratos de família sobre a mesa da sala, que introduzem o leitor na casa da família cuja vida acaba de ser destruída.
 Com uma planificação dinâmica, que explora bem as possibilidades da dupla página, Sale não hesita perante algumas soluções narrativas mais ousadas, como na cena em que descobrimos a casa do Cavaleiro. Uma dupla página tratada como se fosse um plano-sequência, em que o Cavaleiro se movimenta pela sala como um actor pelo palco e que nos recorda as extraordinárias adaptações que o italiano Gianni De Luca fez das peças de Shakespeare, em que a página e a dupla página funcionavam como um palco por onde deambulavam as personagens.
Para esta aventura do início da carreira do Batman, Robinson vai recuperar o Cavaleiro, um obscuro vilão cuja primeira aparição remonta a 1943, numa história escrita por Don Cameron e desenhada por Bob Kane, o criador de Batman, publicada no nº 81 da revista Detective Comics. Mas apenas o nome e uso de uma espada ligam o Cavaleiro original ao personagem criado por Robinson e Sale. O novo Cavaleiro tem um traje mais próximo do do Zorro do que do fato de mosqueteiro do Cavaleiro original e mesmo o homem por trás da máscara é outro, com Mortimer Drake a dar lugar a Hudson Pyle, um ex-duplo de cinema em busca da fama que, por amor de uma mulher acaba por cair numa vida de crime e entrar em confronto com o Batman. Inspirado pelos heróis interpretados por Errol Flynn nos filmes clássicos de aventuras, como Robin Hood, The Sea Hawk, ou Captain Blood, o Cavaleiro revela-se um personagem extremamente interessante,  e até cativante, que nos remete para uma das inspirações do Batman, o Zorro.
O conto seguinte, Os Marginais (The Misfits) é assinado pelo inglês Alan Grant, um dos principais argumentistas do Judge Dredd, o mais conhecido vigilante da BD inglesa e é a segunda colaboração entre Grant e Sale ambientada no universo do Cavaleiro das Trevas, pois já antes a dupla tinha colaborado em Mad Men Across the Water, uma curiosa história de 1991, protagonizada pelos vilões do Asilo Arkham, em que o Batman prima pela ausência e onde Tim sale apenas assegura o desenho a lápis, ficando a arte-final a cargo de Jimmy Palmiotti. Para esta história, publicada originalmente nos nºs 7 a 9 da revista Shadow of the Bat, Grant vai recuperar vilões clássicos de segunda, ou terceira linha, como o Traça Assassina, O Homem-Gato e o Calendarista e criar um novo vilão, o Audaz, que junta num bando de falhados, chamado apropriadamente os Marginais, que decidem dar o golpe das suas vidas, ao raptar o Presidente da Câmara de Gotham, o Comissário Gordon e… Bruce Wayne.

Curiosamente, o Calendarista, que aqui tem um papel relativamente discreto, vai ser um personagem fundamental de The Long Halloween e da sua continuação, Dark Victory mas Loeb e Sale vão dar-lhe uma caracterização muito mais sinistra nessa nova versão. Para além de ser uma história bem contada, Os Marginais tem a particularidade de ser a única história do Batman que Sale desenhou dentro da continuidade regular da série, com Tim Drake, o terceiro Robin, a assumir algum protagonismo.

A terminar temos aMor Cego (Date Knight), uma pequena história protagonizada pelo Batman e pela Mulher-Gato. Publicada originalmente em 2004, no volume da série Solo dedicado a Tim Sale, esta história reúne Sale a Darwyn Cooke, com Cooke, que voltaria a trabalhar com Sale anos depois na revista Superman Confidential, a criar aqui uma intriga tão simples como movimentada e divertida, que faz brilhar a elegância, o dinamismo e o talento narrativo de Tim Sale. Curiosamente, esta história assinala o reencontro dos dois criadores com a Mulher-Gato, pois se Tim Sale já tinha tido oportunidade de desenhar a Mulher-Gato em When in Rome, um spin off de Dark Victory, escrito também por Jeph Loeb, já Darwyn Cooke tinha ilustrado as primeiras histórias do relançamento da revista da Mulher-Gato, feito por Ed Brubaker em 2001, para além de ter escrito e desenhado a novela gráfica Selina’s Big Score, que funcionou como prequela à fase de Ed Brubaker da revista mensal da felina mais sensual do universo DC.
Deixo-vos então com estas três histórias. Três contos do Batman, que traduzem outros tantos encontros entre o Cavaleiro das Trevas e um dos desenhadores que melhor lhe soube dar vida.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A última aventura de Dog Mendonça?


Lançado durante o último Festival da Amadora, com o mais que previsível sucesso comercial a ser confirmado pela tournée nacional que se seguiu e que passou também pela Livraria Dr. Kartoon, “Requiem”, o 3º volume das aventuras de Dog Mendonça, está desde o final do ano nas livrarias de todo o país, isto se a primeira edição não tiver esgotado entretanto…
Indiscutivelmente a mais popular criação da BD portuguesa das últimas décadas, o carismático detective/lobisomem criado por Filipe Melo, tem desta vez de defrontar um inimigo oriundo do seu passado, ao mesmo tempo que se confronta com um adversário muito mais concreto e difícil de vencer, o sistema fiscal português.Com efeito, embora a temática fantástica seja dominante, o nosso herói não escapa à crise bem real que nos oprime. Muito menos ao longo braço do Ministério das Finanças, vendo a sua mansão confiscada por fuga ao fisco e sendo despejado do seu escritório por não ter pago o IMI…

É pois um Dog Mendonça transformado em sem-abrigo, que vai ter de apelar à caridade do seu amigo Eurico, o Pizza Boy, que vai ter que o alojar a ele e à Pazuul, o que permite uma divertida homenagem ao filme “The Big Lebowsky”, dos irmãos Coen. No que já é uma imagem de marca da série, as piscadelas de olho ao cinema e à Banda Desenhada não se ficam por aí, havendo referências, mais ou menos óbvias, ao “Kill Bill” de Tarantino, ao “Marte Ataca” de Tim Burton (numa sequência em que o Dr. Aranha faz ao Primeiro Ministro, Passos Coelho o mesmo que muitos portugueses lhe gostariam de fazer…) ao filme “Iron Sky” e ao “Sin City” de Frank Miller, embora a sequência inicial do filme dentro do livro, que nos mostra o primeiro encontro de Dog Mendonça com Pazuul, se cole, não ao traço de Frank Miller, mas ao do mestre argentino Domingo “Cacho” Mandrafina, colaborador habitual do saudoso Carlos Trillo. O que tem a sua lógica, tendo em conta que Juan Cavia e Santiago Villa, os responsáveis pela parte gráfica de Dog Mendonça, são argentinos.
Com um tom mais sombrio do que os volumes anteriores, em que são patentes os sinais de um ciclo que se fecha, este “Requiem” concilia essa dimensão mais melancólica, com momentos de humor e cenas de acção espectaculares. Isto para além de continuar a explorar muito bem os cenários de Lisboa e arredores, com o poço iniciático da Quinta da Regaleira, em Sintra, a ver finalmente exploradas todas as suas extraordinárias potencialidades cenográficas.
Em termos gráficos, são cada vez mais evidentes os progressos, tanto no traço de Juan Cavia, como nas cores de Santiago Villa, que assinam algumas páginas verdadeiramente espectaculares, desta vez acompanhada por uma impressão finalmente à altura da altíssima qualidade de produção deste trabalho que, não sendo para mim a melhor história de Dog Mendonça (continuo a preferir os episódios publicados na revista Dark Horse Presents) não deixa de ser uma história muito bem construída e um final perfeitamente adequado para a aventura iniciada no primeiro álbum.

É importante referir ainda a muito bem orquestrada campanha de divulgação, aproveitando o dinheiro angariado numa muito frutuosa campanha de crownd funding, que provou, se dúvidas ainda houvesse, a popularidade do projecto. Uma campanha que incluiu um vídeo de um falso noticiário no You Tube que rapidamente se tornou viral e provocou alguma controvérsia (desajustada) e que ajudou a dar ainda maior visibilidade à mais popular série da BD nacional que, ao que tudo indica, agora chega ao fim.
Embora, como todos sabemos, na BD e do cinema, o regresso dos heróis, mesmo dos que estão mortos, é sempre uma possibilidade em aberto, Filipe Melo e os seus amigos argentinos consideram que a história de Dog Mendonça já está contada. Esperemos que descubram rapidamente outras histórias para contar, com ou sem Dog Mendonça, pois como já tive ocasião de escrever neste mesmo espaço: “pelo entusiasmo contagiante que trouxe a este projecto e por ter provado que é possível fazer BD comercial de qualidade no nosso país, Filipe Melo foi, muito provavelmente, das melhores coisas que aconteceram à BD portuguesa nos últimos anos!”.
(As extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III: Requiem”, de Filipe Melo, Juan Cavia e Santiago Villa,, Tinta da China, 112 pags, 16,90 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 11/01/2014

domingo, 12 de janeiro de 2014

DC Comics Uncut 22 - Super-Homem: Herança Vermelha


HOMEM DE AÇO, CORTINA DE FERRO

Há ideias assim. Tão geniais na sua simplicidade, que nos interrogamos como é que ninguém se lembrou disso antes. A história que vão poder ler neste livro, tem um ponto de partida desses: o que aconteceria se a nave que permitiu ao pequeno Kal El escapar à destruição do planeta Krypton, ao chegar à Terra, tivesse aterrado no meio das estepes ucranianas, em vez de numa planície do Kansas?
É partindo dessa premissa, tão simples como cheia de possibilidades, de um Super-Homem educado segundo a doutrina comunista, que em vez de lutar pela verdade, justiça e pelo modo de vida americano, trava "uma batalha sem fim por Stalin, pelo socialismo e pela expansão internacional do Pacto de Varsóvia", que o argumentista Mark Millar criou Herança Vermelha. Publicada originalmente em 2003 como uma míni-série em três partes,  integrada na linha Elseworlds, Herança Vermelha analisa as implicações geoestratégicas de um acontecimento como esse, no equilíbrio entre as duas superpotências.

Exactamente por ser óbvio que alguém com os poderes do Super-Homem seria capaz de pôr termo a uma guerra em poucos minutos, que, ao contrário do que acontece por exemplo com o Capitão América, a participação do Homem de Aço na Segunda Guerra Mundial se limitou à frente interna, com excepção de algumas capas, bastante mais patrióticas do que o conteúdo das respectivas revistas, e de  uma curiosa história de duas páginas publicada em 1940 na revista Look, chamada precisamente How Superman Would Win the War,  em que o Homem de Aço rapta Hitler e Stalin e leva-os para a Suíça para serem julgados pelo Tribunal da Sociedade das Nações.
Apesar de, naturalmente, não se integrar na continuidade da série, o impacto desta história chegou até à Alemanha nazi, onde motivou um artigo no Das Schwarze Korps, o jornal das SS., em que o Super-Homem é acusado de "ignorar as leis da física" e de corromper a mente das crianças americanas, e os seus autores, um dos quais, apresentado como sendo "um indivíduo intelectualmente e fisicamente circuncisado" de roubarem a ideia do Super-Homem aos ideais da raça superior ariana...
Durante a Guerra Fria, o Super-Homem, na Banda Desenhada manteve-se relativamente afastado das disputas ideológicas entre os Estados Unidos e a União Soviética, o que não foi tão evidente em outros média, como a televisão. Foi precisamente na televisão, na célebre série televisiva protagonizada por George Reeves, onde nasceu o famoso slogan que o apresenta como um lutador pela "verdade, justiça e pelo modo de vida americano". Um aspecto que é tratado de forma paródica no incontornável The Dark Knight Returns, de Frank Miller, em que o Homem de Aço surge retratado como um homem de mão da administração Reagan, ajudando o exército americano a combater as tropas do Pacto de Varsóvia.
É precisamente essa ameaça pendente de uma guerra nuclear, que ainda estava na ordem do dia durante a década de 80, que está presente em The Dark Knight Returns, e que encontramos também no Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, em que a existência de um indivíduo com superpoderes como o Dr. Manhattan, vem alterar decisivamente o equilíbrio de poder entre as duas superpotências a favor dos Estados Unidos. Mas, apesar dos pontos de contacto com Watchmen e The Dark Knight Returns, o primeiro ponto de partida para Herança Vermelha foi outro. Conforme refere o próprio Millar: “Red Son é baseado numa ideia que me surgiu quando li o Superman # 300, aos seis anos. Era uma história imaginária em que a nave do Super-Homem aterrava numa terra de ninguém entre os Estados Unidos e a União Soviética e ambas as potências tentavam reclamar a criança. Como uma criança nascida na sombra da Guerra Fria, a ideia do que poderia ter acontecido se os Soviéticos tivessem ficado com a criança pareceu-me fascinante."

É pois numa realidade histórica alternativa à que os leitores conhecem, o que, tal como vimos no volume Batman: Outros Mundos, publicado na primeira série desta colecção, é um dos elementos que distingue a linha Elseworlds, que a intriga imaginada por Mark Millar tem lugar. Uma realidade alternativa, com uma evolução histórica diferente, uma ucronia, género cultivado pela ficção científica desde os anos 50, em obras como The Man in  the High Castle, de Philip K. Dick,  em que não ocorre a desintegração do Bloco Soviético, nem a queda do Muro de Berlim e em que é Nixon, não Kennedy, que é assassinado em Dallas, em 1963, com Kennedy, que se divorcia de Jackie e casa como Marilyn Monroe,  a continuar como Presidente.
E se a existência de alguém com os poderes do Super-Homem vem naturalmente desequilibrar o balanço de forças a favor da Potência que ele defende, também é natural que o próprio Super-Homem acabe naturalmente por assumir o poder, sucedendo a Stalin como Senhor Supremo da Rússia, transformando-se num ditador, que embora benevolente e bem intencionado, não deixa de ser um ditador. No fundo, embora não vá tão longe como Alan Moore em Miracleman, Millar também conclui que, se o poder corrompe, nem mesmo o Super-Homem está imune a essa corrupção.

E se o Super-Homem está do lado daqueles a que os leitores americanos se habituaram a identificar como os maus, o “modo de vida americano” é defendido por Lex Luthor, que mesmo nesta realidade alternativa, continua dominado pelo seu ego incomensurável e por uma total falta de escrúpulos e desprezo pela vida humana. Além do eterno confronto Super-Homem/Lex Luthor, para os fãs de Super-Homem, há ainda a curiosidade de ver como Millar consegue integrar de forma harmoniosa na narrativa, alguns elementos característicos da mitologia do Homem de Aço, da Fortaleza da Solidão, à cidade engarrafada de Kandor, passando por Bizarro.
Mas o Super-Homem e o seu maior inimigo, não são as únicas personagens do universo DC que os leitores reconhecerão, apesar de ligeiramente transformadas. Tanto Lois Lane como Perry White e Jimmy Olsen existem neste universo, mas o facto de não conviverem de perto com o Super-Homem, não permite que este molde as suas vidas. Já o Batman, cuja origem é semelhante à que conhecemos, com a diferença de os pais não terem sido mortos por um simples ladrão, mas por agentes da NKVD (a polícia política, percursora da bastante mais conhecida KGB), estabelece com o Super-Homem, não uma relação de cumplicidade, mas de confronto, o que, mais uma vez nos remete para o Dark Knight Returns, de Frank Miller. 

Apesar da forma brilhante como Millar soube desenvolver uma ideia tão simples como genial, o sucesso de Herança Vermelha, passa e muito, pela arte de Dave Johnson. Conhecido e premiado ilustrador, responsável pelas capas de séries como 100 Bullets, que lhe valeram mais do que um Prémio Eisner, o “Reverendo” Dave Johnson (além da sua actividade artística, Johnson desenvolve uma actividade religiosa como Pastor da Igreja Metodista) assina aqui um dos raros trabalhos como desenhador sequencial, em que mistura imagens imediatamente reconhecíveis de histórias clássicas do Super-Homem, com a iconografia dos cartazes de propaganda soviética, com excelente resultados.
De Kick Ass a Superior, passando pela Guerra Civil, que os leitores portugueses puderam ler numa anterior coleção, Mark Millar sempre especulou sobre as consequências da existência de super-heróis no mundo real. Mas foi nesta história, passada num mundo alternativo, em que a História seguiu um percurso divergente, que tudo começou. E não podia ter começado de melhor maneira.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Septimus regressa no novo Blake & Mortimer



Mantendo a tradição, o final do ano viu chegar às livrarias mais um álbum, o 22º, da série “Blake e Mortimer”, que a Asa editou em Portugal quase em simultâneo com a edição no mercado francófono. Primeiro álbum assinado pelo argumentista Jean Dufaux, A Onda Septimus arrisca numa continuação para a mais mítica das aventuras de Blake & Mortimer, A Marca Amarela. Um desafio muito arriscado, de dar continuação a uma história perfeita (e perfeitamente fechada) mas do qual Dufaux se sai bastante bem.
Antes de avançarmos, fica um conselho aos leitores. Antes de lerem A Onda Septimus, releiam A Marca Amarela, pois este novo álbum não fará grande sentido para quem não conhecer o álbum que homenageia. E se todos os álbuns pós-Jacobs são marcados pela fidelidade ao modelo clássico do criador da série, de que A Marca Amarela é um dos mais conseguidos exemplos, Dufaux assume abertamente a homenagem, criando uma história plena de citações ao universo de  Edgar P. Jacobs e à ficção científica dos anos 50.

É precisamente a uma das mais populares personagens de culto da ficção científica inglesa, como grandes semelhanças com o próprio Mortimer, o Professor Bernard Quatermass, nascido numa série televisiva da BBC, que Dufaux vai buscar a solução que lhe permite fazer regressar o Professor Septimus ao universo da série, sem ter que o ressuscitar. Uma solução que é simultaneamente engenhosa e coerente com o universo de Jacobs, a que Dufaux acrescenta referências externas como a obra de Magritte, o grande pintor surrealista belga, cujo quadro “Golconda”, a multidão de Septimus de guarda-chuva e chapéu de coco cita abertamente.
Curiosamente, todos esses elementos estão presentes também  em Golconda, um episódio de Dylan Dog, escrito por Tiziano Sclavi e ilustrado por Luigi Picatto, publicado originalmente em Itália em 1990, no nº 40 da revista Dylan Dog, onde para além das magrittianas figuras de guarda-chuva e chapéu de coco, aparece o próprio Philip Mortimer, numa sequência de quatro páginas, em que se deixa conquistar por um grupo de fadas... Não sabemos se Dufaux conhece, ou não, este episódio de Dylan Dog, mas a coincidência não deixa de ser curiosa.
Outra referência óbvia, é a homenagem à trilogia inglesa de Floc’h e Rivière, iniciada com o álbum Encontro em Sevenoaks, evidente no momento em que Septimus descobre o livro A Marca Amarela na montra de uma Livraria, quando Francis Albany, o protagonista da trilogia inglesa, vai a passar na rua, com um livro da sua amiga Olivia Sturgess debaixo do braço.

Uma cena que funciona como espelho da sequência inicial de Encontro em Sevenoaks, em que George Croft descobre um livro que escreveu, assinado por outro autor, numa prateleira de um alfarrabista, ao lado de A Onda Mega, o romance que Septimus escreveu com o pseudónimo J. Wade, a explicar o processo de funcionamento da Onda Mega. A mesma Onda Mega que desempenha um papel importante na intriga de “A Marca Amarela” e ainda mais crucial nesta continuação. Para aumentar ainda mais o carácter metaficcional desta história, também o nome de Jacobs aparece na história, como autor do romance A Marca Amarela e da peça de teatro que a adapta.

Nesta aventura de Blake e Mortimer, é o vilão Olrik quem mais brilha, ficando os dois heróis limitados a um papel mais secundário, o que é sintomático do fascínio de Jean Dufaux por um dos mais carismáticos vilões da BD franco-belga, cuja origem, envolta em mistério, Dufaux gostaria de contar um dia. Mas não é só a origem de Olrik que Dufaux pretende contar. Como o final em aberto deixa perceber, A Onda Septimus é apenas o primeiro capítulo de uma trilogia que Dufaux tem planeado para a série, seguindo, nas suas próprias palavras, o exemplo de Cristhoper Nolan com a trilogia do Cavaleiro das Trevas, com o argumentista a confessar numa entrevista à revista Casemate que: “quero escavar o meu nicho no universo de Jacobs, como Christopher Nolan fez com o Batman”.  
Falta naturalmente falar da parte gráfica, assegurada com grande rigor por Antoine Aubin e Étienne Schréder, dupla que volta a colaborar depois dos bons resultados da segunda parte da Maldição dos Trinta Denários. O desenho a lápis de Aubin, passado a tinta por Schréder, mimetiza na perfeição o traço de Jacobs nos anos 50, com os artistas a revelarem um natural maior à-vontade na colagem ao estilo do mestre.

E, finalmente, foi feita justiça a Schréder, o nosso conhecido autor do Segredo de Coimbra, que depois de ter contribuído de forma decisiva para que os dois álbuns de A Maldição dos Trinta Denários vissem a luz do dia, tem finalmente o reconhecimento que merece, com o seu nome a surgir pela primeira vez na capa do livro em plano de igualdade com o de Antoine Aubin.
Não sendo claramente um álbum fácil, que necessita de ser lido mais do que uma vez, A Onda Septimus é, para mim, o mais interessante dos álbuns de Blake & Mortimer produzidos depois da morte do seu criador. Esperemos que o previsível sucesso comercial deste álbum permita a Jean Dufaux concluir a trilogia prevista e “escavar o seu nicho” no universo de Jacobs.
 (“Blake & Mortimer: A Onda Septimus”, de Jean Dufaux, Antoine Aubin e Etienne Schréder, Edições Asa, 64 pags, 15,90 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 04/01/2014

domingo, 5 de janeiro de 2014

Eusébio da Silva Ferreira - 1942 - 2014



Descansa em paz, King! As tuas melhores jogadas não serão esquecidas.