domingo, 29 de dezembro de 2013

Bem-vindo a Grandville!


Imaginem um mundo em que a França é a principal potência mundial, depois de ter ganhado as guerras napoleónicas e invadido a Inglaterra, mandando guilhotinar a Família Real Britânica. Nesse mundo, em que Paris é a maior capital do mundo e a Inglaterra está ligada ao continente por uma ponte ferroviária que atravessa o Canal da Mancha, não foi só a História que evoluiu de forma alternativa. Também a relação entre humanos e os animais se alterou, sendo este mundo governado por animais antropomorfizados e os raros humanos, tratados depreciativamente como "doughfaces" (caras de massa) a não terem quaisquer direitos cívicos e estando limitados a simples tarefas mecânicas, sendo apresentados por um dos personagens, como "uma raça sem pelo de chimpanzés que evoluíram na cidade de Angoulême", nome que, como veremos, não surge por acaso, pois Angoulême é a cidade francesa que alberga o maior Festival europeu de BD, e as piscadelas de olho à Banda Desenhada franco-belga são frequentes neste mundo.

Este é também um universo "steampunk", com tecnologia derivada das ilustrações do francês Albert Robida, um contemporâneo de Júlio Verne, que imaginou uma França futurística numa trilogia de livros dedicados ao século XX, escritos entre 1883 e 1890 (Le Vingtième Siècle, La Guerre au Vingtieme Siècle e La Vie Électrique). É neste futuro alternativo, concebido por Bryan Talbot, um autor inglês contemporâneo, como se tivesse sido imaginado por um escritor francês do Século XIX, que encontramos o herói da história, o Detective Inspector Archibald LeBrock, um musculado texugo de grande força física e impressionantes capacidades dedutivas. Lebrock, ajudado pelo inspector Roderick Ratzi vai resolver casos policiais que o obrigam a deslocar-se frequentemente a Grandville (cidade grande, em francês), alcunha pela qual é conhecida a cidade de Paris, que dá nome à série. Mas esta é uma referência com duplo sentido, pois Grandville era também o nome artístico do ilustrador e caricaturista francês Jean Ignace Isidore Gerard, que assinava muitas vezes os seus trabalhos como J. J. Grandville. Falecido em 1847, Grandville foi dos primeiros ilustradores a utilizar animais antropormofizados em obras como Les Metamorphoses du Jour, uma série de litografias editadas entre 1928 e 1929, protagonizadas por figuras humanas na pose e no vestuário, com cabeças dos mais diversos tipos de animais, incluindo insectos e peixes.

Bryan Talbot, o criador de Grandville, nasceu em Inglaterra em 1952, tendo trabalhado nos comics underground britânicos e na revista 2000 AD, para onde desenhou Nemesis, the Warlock e Judge Dredd, antes de seguir o caminho de diversos compatriotas seus, como Alan Moore, Brian Bolland, Neil Gaiman, Dave McKean e Garth Ennis e começar a trabalhar para a DC Comics, sobretudo na linha Vertigo, para onde ilustrou as séries Hellblazer, Fables e o Sandman de Neil Gaiman. Além de muito trabalho como desenhador para a DC, Talbot tem também bastantes trabalhos a solo. Obras mais antigas, onde já encontramos algumas das características que fazem de Grandville uma série única.

É o caso do gosto pela história alternativa e por universos “steampunk”, que estão presentes em The Adventures of Luther Arkwright, um projecto iniciado em 1978, a que voltará com regularidade, posteriormente recolhido em dois grossos volumes, editados nos EUA pela Dark Horse. Outro elemento bem presente nos seus livros e que é fulcral em Grandville, é a homenagem aos grandes nomes da ilustração infantil. The Tale of One Bad Rat, o seu trabalho mais premiado, concilia uma história comovente sobre uma jovem vítima de abusos sexuais na infância, com uma bela homenagem à vida e obra de Beatrix Potter, uma das mais importantes escritoras e ilustradoras infantis britânicas e Alice in Sunderland, parte da ligação de Lewis Carol, o criador de Alice in Wonderland à cidade de Sunderland, para uma alucinante viagem visual pela história da cidade e da literatura e da ilustração, cheia de pormenores deliciosos e com diversos níveis de leitura. Uma obra avassaladora, com um trabalho de pesquisa tão aturado, que lhe valeu um Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Sunderland, em 2009, pelo seu "contributo notável para as Artes como escritor e artista gráfico".

Em Grandville, Talbot vai reunir todas essas influências e muitas outras (para além de Robida e Grandville, Talbot cita explicitamente Conan Doyle, Quentin Tarantino e... Rupert the Bear, mas podia citar também Walt Disney, Enid Blyton, Randolph Caldecott, Kenneth Grahame, entre outros) em movimentadas histórias de ficção policial, num universo de ficção científica "steampunk", que embora em termos de vestuários e decoração lembre a Europa de finais do século XIX e inícios do Século XX, decorre um século depois, 200 anos após as Guerras napoleónicas, que reforçaram a hegemonia mundial da França que as venceu.
Iniciada em 2009, com Grandville, a série dedicada às aventuras do Inspector LeBrock da Scotland Yard está prevista para cinco volumes autónomos, dos quais já saíram três, Grandville, Grandville, Mon Amour e Grandville, Bête Noire, estando o quarto volume, Grandville: Noel anunciado para 2014.

O primeiro episódio leva o Inspector Lebrock e o seu adjunto Ratzi a Paris, para investigar o assassinato de um diplomata inglês, Raymond Leigh-Otter e será em Paris, ou Grandville, que vai encontrar o amor com Sarah Blairow, uma dançarina, claramente inspirada na actriz Sarah Bernard, mas a sua felicidade vai durar pouco… A investigação vai fazer com que descubra uma conspiração destinada a reacender a guerra entre a França e a Inglaterra, que tem como ponto de partida um atentado terrorista que destruiu a Torre Robida, num claro paralelo com os atentados de 11 de Setembro que destruíram o World Trade Center E essa não é a única alusão à realidade política contemporânea, pois encontramos um político de extrema-direita, chamado Jean-Marie Lapin (que, naturalmente, é um coelho), claramente inspirado em Jean-Marie Le Pen.

Mas ainda mais frequentes do que as referências à realidade política contemporânea, são as referências à Banda Desenhada franco-belga, presentes em todos os volumes. É o caso de Milou, o cão de Tintin, que assim surge como um viciado em ópio, que no meio dos delírios provocados pela droga, recorda as aventuras que viveu com Tintin. Do Gaston Lagaffe, de Franquin, e do Lucien, de Margerin, que emprestam as feições a dois meliantes que tentam assaltar o inspector Ratzi, em Grandville, Mon Amour, o 2º volume da série. De Angus, o cientista humano, ou “cara de massa”, se preferirem, que é morto no início do 3º volume, Grandville, Bete Noire, e que não é senão o Professor Philip Angus Mortimer, o protagonista das aventuras de Blake e Mortimer, de Edgar P. Jacobs. E encontramos ainda alguns personagens da Disney, como figurantes, seja o Pato Donald numa cela, ou o Professor Pardal a desempenhar um papel semelhante ao do Q. dos filmes de James Bond. Filmes esses que inspiraram obviamente a personagem do Barão Krapaud, um sapo com a pose e os meios do típico vilão dos filmes de James Bond, megalómano e com sonhos de dominação mundial, que aqui surge a acariciar um sapo no colo, em vez do tradicional gato persa branco…

Para além de histórias bem conseguidas e melhor contadas, com um desenho agradável e tremendamente eficaz, que ganhariam com um tratamento de cor não tão ostensivamente digital, é esta catadupa de referências, que desafiam a cultura do leitor e convidam a sucessivas releituras, um pouco na linha do que acontece com a Liga de Cavalheiros Extraordinários de Alan Moore e Kevin O’Neill, que fazem de Grandville uma série única. Uma série que, como já se percebeu, é absolutamente aconselhável aos leitores da Bang!
Texto originalmente publicado no nº 15 da revista Bang! de Novembro de 2013

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