domingo, 29 de dezembro de 2013

Bem-vindo a Grandville!


Imaginem um mundo em que a França é a principal potência mundial, depois de ter ganhado as guerras napoleónicas e invadido a Inglaterra, mandando guilhotinar a Família Real Britânica. Nesse mundo, em que Paris é a maior capital do mundo e a Inglaterra está ligada ao continente por uma ponte ferroviária que atravessa o Canal da Mancha, não foi só a História que evoluiu de forma alternativa. Também a relação entre humanos e os animais se alterou, sendo este mundo governado por animais antropomorfizados e os raros humanos, tratados depreciativamente como "doughfaces" (caras de massa) a não terem quaisquer direitos cívicos e estando limitados a simples tarefas mecânicas, sendo apresentados por um dos personagens, como "uma raça sem pelo de chimpanzés que evoluíram na cidade de Angoulême", nome que, como veremos, não surge por acaso, pois Angoulême é a cidade francesa que alberga o maior Festival europeu de BD, e as piscadelas de olho à Banda Desenhada franco-belga são frequentes neste mundo.

Este é também um universo "steampunk", com tecnologia derivada das ilustrações do francês Albert Robida, um contemporâneo de Júlio Verne, que imaginou uma França futurística numa trilogia de livros dedicados ao século XX, escritos entre 1883 e 1890 (Le Vingtième Siècle, La Guerre au Vingtieme Siècle e La Vie Électrique). É neste futuro alternativo, concebido por Bryan Talbot, um autor inglês contemporâneo, como se tivesse sido imaginado por um escritor francês do Século XIX, que encontramos o herói da história, o Detective Inspector Archibald LeBrock, um musculado texugo de grande força física e impressionantes capacidades dedutivas. Lebrock, ajudado pelo inspector Roderick Ratzi vai resolver casos policiais que o obrigam a deslocar-se frequentemente a Grandville (cidade grande, em francês), alcunha pela qual é conhecida a cidade de Paris, que dá nome à série. Mas esta é uma referência com duplo sentido, pois Grandville era também o nome artístico do ilustrador e caricaturista francês Jean Ignace Isidore Gerard, que assinava muitas vezes os seus trabalhos como J. J. Grandville. Falecido em 1847, Grandville foi dos primeiros ilustradores a utilizar animais antropormofizados em obras como Les Metamorphoses du Jour, uma série de litografias editadas entre 1928 e 1929, protagonizadas por figuras humanas na pose e no vestuário, com cabeças dos mais diversos tipos de animais, incluindo insectos e peixes.

Bryan Talbot, o criador de Grandville, nasceu em Inglaterra em 1952, tendo trabalhado nos comics underground britânicos e na revista 2000 AD, para onde desenhou Nemesis, the Warlock e Judge Dredd, antes de seguir o caminho de diversos compatriotas seus, como Alan Moore, Brian Bolland, Neil Gaiman, Dave McKean e Garth Ennis e começar a trabalhar para a DC Comics, sobretudo na linha Vertigo, para onde ilustrou as séries Hellblazer, Fables e o Sandman de Neil Gaiman. Além de muito trabalho como desenhador para a DC, Talbot tem também bastantes trabalhos a solo. Obras mais antigas, onde já encontramos algumas das características que fazem de Grandville uma série única.

É o caso do gosto pela história alternativa e por universos “steampunk”, que estão presentes em The Adventures of Luther Arkwright, um projecto iniciado em 1978, a que voltará com regularidade, posteriormente recolhido em dois grossos volumes, editados nos EUA pela Dark Horse. Outro elemento bem presente nos seus livros e que é fulcral em Grandville, é a homenagem aos grandes nomes da ilustração infantil. The Tale of One Bad Rat, o seu trabalho mais premiado, concilia uma história comovente sobre uma jovem vítima de abusos sexuais na infância, com uma bela homenagem à vida e obra de Beatrix Potter, uma das mais importantes escritoras e ilustradoras infantis britânicas e Alice in Sunderland, parte da ligação de Lewis Carol, o criador de Alice in Wonderland à cidade de Sunderland, para uma alucinante viagem visual pela história da cidade e da literatura e da ilustração, cheia de pormenores deliciosos e com diversos níveis de leitura. Uma obra avassaladora, com um trabalho de pesquisa tão aturado, que lhe valeu um Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Sunderland, em 2009, pelo seu "contributo notável para as Artes como escritor e artista gráfico".

Em Grandville, Talbot vai reunir todas essas influências e muitas outras (para além de Robida e Grandville, Talbot cita explicitamente Conan Doyle, Quentin Tarantino e... Rupert the Bear, mas podia citar também Walt Disney, Enid Blyton, Randolph Caldecott, Kenneth Grahame, entre outros) em movimentadas histórias de ficção policial, num universo de ficção científica "steampunk", que embora em termos de vestuários e decoração lembre a Europa de finais do século XIX e inícios do Século XX, decorre um século depois, 200 anos após as Guerras napoleónicas, que reforçaram a hegemonia mundial da França que as venceu.
Iniciada em 2009, com Grandville, a série dedicada às aventuras do Inspector LeBrock da Scotland Yard está prevista para cinco volumes autónomos, dos quais já saíram três, Grandville, Grandville, Mon Amour e Grandville, Bête Noire, estando o quarto volume, Grandville: Noel anunciado para 2014.

O primeiro episódio leva o Inspector Lebrock e o seu adjunto Ratzi a Paris, para investigar o assassinato de um diplomata inglês, Raymond Leigh-Otter e será em Paris, ou Grandville, que vai encontrar o amor com Sarah Blairow, uma dançarina, claramente inspirada na actriz Sarah Bernard, mas a sua felicidade vai durar pouco… A investigação vai fazer com que descubra uma conspiração destinada a reacender a guerra entre a França e a Inglaterra, que tem como ponto de partida um atentado terrorista que destruiu a Torre Robida, num claro paralelo com os atentados de 11 de Setembro que destruíram o World Trade Center E essa não é a única alusão à realidade política contemporânea, pois encontramos um político de extrema-direita, chamado Jean-Marie Lapin (que, naturalmente, é um coelho), claramente inspirado em Jean-Marie Le Pen.

Mas ainda mais frequentes do que as referências à realidade política contemporânea, são as referências à Banda Desenhada franco-belga, presentes em todos os volumes. É o caso de Milou, o cão de Tintin, que assim surge como um viciado em ópio, que no meio dos delírios provocados pela droga, recorda as aventuras que viveu com Tintin. Do Gaston Lagaffe, de Franquin, e do Lucien, de Margerin, que emprestam as feições a dois meliantes que tentam assaltar o inspector Ratzi, em Grandville, Mon Amour, o 2º volume da série. De Angus, o cientista humano, ou “cara de massa”, se preferirem, que é morto no início do 3º volume, Grandville, Bete Noire, e que não é senão o Professor Philip Angus Mortimer, o protagonista das aventuras de Blake e Mortimer, de Edgar P. Jacobs. E encontramos ainda alguns personagens da Disney, como figurantes, seja o Pato Donald numa cela, ou o Professor Pardal a desempenhar um papel semelhante ao do Q. dos filmes de James Bond. Filmes esses que inspiraram obviamente a personagem do Barão Krapaud, um sapo com a pose e os meios do típico vilão dos filmes de James Bond, megalómano e com sonhos de dominação mundial, que aqui surge a acariciar um sapo no colo, em vez do tradicional gato persa branco…

Para além de histórias bem conseguidas e melhor contadas, com um desenho agradável e tremendamente eficaz, que ganhariam com um tratamento de cor não tão ostensivamente digital, é esta catadupa de referências, que desafiam a cultura do leitor e convidam a sucessivas releituras, um pouco na linha do que acontece com a Liga de Cavalheiros Extraordinários de Alan Moore e Kevin O’Neill, que fazem de Grandville uma série única. Uma série que, como já se percebeu, é absolutamente aconselhável aos leitores da Bang!
Texto originalmente publicado no nº 15 da revista Bang! de Novembro de 2013

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Evocando Sergio Toppi


Se o ano de 2012 foi infelizmente fértil no desaparecimento de grandes nomes da Banda Desenhada mundial, como Jean Moebius Giraud, ou Joe Kubert, cujas mortes tiveram grande destaque mediático, já o falecimento do Mestre italiano Sérgio Toppi, em 21 de Agosto, perto de completar 80 anos, passou relativamente despercebido, pelo menos em Portugal.
Uma lacuna que tentaremos corrigir nesta Bang!, evocando aqui a vida e a obra de Sérgio Toppi, virtuoso desenhador italiano, cujo estilo único e arrojada planificação não deixa ninguém indiferente. Nascido em Milão em 1932, Toppi matriculou-se na Faculdade de Medicina em 1952, para rapidamente descobrir que essa não era de todo a sua vocação. Rapidamente abandonou os estudos para se dedicar à ilustração, campo em que se estreia em 1953, realizando uma série de ilustrações históricas para a reedição da L’Enciclopedia dei Ragazzi, promovida pela editora Mondadori. Enquanto realiza trabalhos para publicações como a revista Topolino, em 1957 arranja emprego no Estúdio de Animação Pagot, dirigido pelos irmãos Pagotto, responsáveis pela primeira longa-metragem italiana de animação, o que não o impede de continuar a trabalhar como ilustrador para a imprensa e para a publicidade e de se estrear na Banda Desenhada em 1960, ilustrando uma biografia em BD de Pietro Micca, uma personagem histórica italiana do século XVII, escrita por Milo Milani para o jornal Corriere dei Piccoli.

Um momento importante da sua carreira na BD, foi o encontro com Sergio Bonelli, personagem incontornável da BD italiana, editor de Tex e Dylan Dog, que contratou Toppi em 1974, para este acabar de desenhar um Western que a morte de Rino Albertarelli deixara incompleta. O ano de 1975, também foi importante para Toppi, pois além de ter ganho o Yellow Kid para o melhor desenhador no Festival de Lucca, começou a colaborar com a revista Sgt. Kirk nesse mesmo ano. Seguir-se-ia a participação na mítica coleção Un Uomo, un’Avventura, onde Bonelli conseguiu a proeza de juntar os mais prestigiados nomes dos fumetti italianos, de Hugo Pratt a Milo Manara, passando por Crepax, Buzzelli, Battaglia, e claro, Toppi, que entre 1976 e 1978 ilustrou os volumes, L’Uomo del Nilo, L’Uomo del Messico e L’Uomo del Paludi, o primeiro dos quais chegaria a Portugal através de uma edição brasileira.
E se os interesses de Toppi estavam algo afastados das grandes séries da Bonelli, a sua amizade com o editor fez com que colaborasse ocasionalmente com a editora da Via Buonarrotti, desenhando histórias para a Ken Parker Magazine, para dois números de Nick Rayder, em 1997 e 2001, para o nº 11 da revista Julia, ilustrando uma história de Giancarlo Berardi, que chegou a Portugal, através da edição brasileira da Mythos, que publicou a referida história no nº 11 da revista J. Kendall Aventuras de uma Criminóloga.
Toppi tem também o seu nome ligado a outros dois populares personagens da Bonelli, Martin Mystére, de quem ilustrou uma história de 22 páginas para o Almanaque Martin Mystére nº 16, de 1999, posteriormente adaptada a um CD-Rom, e Dylan Dog, que Toppi retratou na capa do Dylan Dog Color Fest nº 3, de 2009, no que seria a sua última colaboração com a editora Bonelli.

Entre a longa colaboração com Il Giornalino, iniciada em 1976, e diversas participações nas principais revistas italianas, como a Sgt. Kirk, Linus, Alter Alter e Corto Maltese, Toppi constrói o seu estilo próprio, em que a rígida divisão da página em tiras e quadrados, dá lugar a uma planificação mais dinâmica e artística, que considera a página como um todo. O aspecto pétreo do seu desenho, em que as personagens parecem cristalizadas numa natureza ameaçadora, também ela fossilizada, o fantástico que emerge das suas histórias, faz da obra de Toppi, algo único e inesquecível.
Infelizmente, essa obra, tão variada que inclui, além de largas dezenas de histórias curtas, coisas tão inesperadas como uma biografia em BD do Papa João Paulo II, nunca conseguiu cativar devidamente o grande público, talvez pela ausência de um herói icónico que o fidelizasse. A obra de Toppi é constituída maioritariamente por histórias curtas, tendo como único personagem recorrente Il Coleccionista, um peculiar colecionador e aventureiro, misto de dandy e de cowboy, que se estreou em 1982 na revista Orient Express. Um personagem de moral dúbia e passado misterioso, muito longe dos heróis tradicionais com que o leitor facilmente se identifica.

Com o declínio das revistas em Itália, que se acentuou no início do século XXI, Toppi começou a cair no esquecimento no seu país. Algo que não aconteceu em França, graças ao excelente trabalho da editora Mosquito, que a partir de 1997 tem vindo a editar de forma cuidada o seu trabalho (tal como o de outros grandes mestres italianos, como Battaglia e Micchelluzi). Uma parceria feliz, que deu origem a mais de 30 álbuns de BD, entre colectâneas de histórias curtas, até trabalhos feitos directamente para o mercado francês, como a segunda parte de Sharaz’de, ou a quinta aventura do Coleccionador.
Graças às edições da Mosquito, o trabalho de Toppi tem vindo a ser traduzido em diversos países, da Europa, aos Estados Unidos e à China, onde uma exposição das suas obras foi vista por dois milhões de pessoas em apenas cinco dias. Uma merecida consagração que Toppi, já debilitado pelo cancro que haveria de o levar, não pode testemunhar pessoalmente.
Apesar do seu trabalho só agora começar a ser publicado nos EUA, graças à Archaia Press, a sua influência em desenhadores como Walt Simonson, Frank Miller, Bill Sienkiewicz, Ashley Wood, ou Dave McKean (sobretudo numa primeira fase que vai até ao Arkham Asylum) é evidente e assumida pelos próprios, que nunca esconderam a sua admiração pelo trabalho de Toppi.
Walt Simonson, que deu Toppi a descobrir a Frank Miller e Howard Chaykin, quando os três partilhavam um estúdio em Nova Iorque, foi o autor do prefácio à edição americana de Sharaz-De, em que refere que: “as imagens de Toppi são uma mescla evocativa de belos desenhos, texturas, formas, espaço negativo e design. Desenha com uma mistura de contornos, hachuras, manchas de preto cuidadosamente posicionadas e espaços em branco. Ele é um mestre dos espaços em branco. O resultado é um desenho extremamente vivo em cada página, independentemente do assunto”. Já Frank Miller, que dizia que “Toppi faz o impossível parecer fácil”, foi o responsável pela estreia do desenhador italiano no mercado americana, publicando uma ilustração que o Mestre fez de homenagem à série Sin City, no nº 4 da mini-série Sin City: The Big Fat Kill, infelizmente ausente da edição portuguesa da Devir. Mais tarde, será a Marvel a encomendar-lhe as capas da mini-série 1602: The New World, que retoma o conceito, criado por Neil Gaiman, do universo Marvel transposto para o século XVII, ficando-se por aqui a presença do desenhador americano na terra do Tio Sam, até a Archaia começar finalmente a publicar a sua obra em inglês, começando por Sharaz’de, numa bela edição que Toppi já não teve tempo de ver…

Em Portugal, onde a influência do seu traço é visível num autor como Pedro Massano, especialmente no álbum Mataram-no Duas Vezes,  as histórias de Toppi chegaram através de revistas como Jacto e o Jornal do Cuto, que publicaram algumas histórias curtas e da Coleção A Descoberta do Mundo, da Larrousse, que a Dom Quixote editou em Portugal e em que o nome de Toppi aparece ao lado de ilustres compatriotas seus, como Buzzelli, Manara, ou Battaglia, e do português Eduardo Teixeira Coelho. A última aparição de Toppi em português, deu-se em 1999, no nº 8 da 2ª série da revista Selecções BD, com a história Algarve 1460, protagonizada pelo Infante Dom Henrique, enquadrada por um belo texto de João P. Boléo, que abordava a relação de Toppi com Portugal, que tinha visitado um ano antes de desenhar essa história. Curiosamente, a mesma revista preparava-se para iniciar a publicação de Sharaz’de, a peculiar adaptação das Mil e Uma Noites, que é um dos melhores trabalhos de Toppi, no preciso momento em que falência da editora Meribérica levou ao seu desaparecimento.
Ficaram a perder os leitores portugueses. Os mesmos leitores que, nestas páginas têm finalmente direito a uma pequena amostra do imenso talento de Sergio Toppi, um desenhador, nas palavras de Dave McKean, “capaz de desenhar qualquer coisa e dar-lhe uma solidez e um sentido de movimento que a tornam ideal para contar histórias no formato da Banda Desenhada”.
Texto originalmente publicado no nº 14 da revista Bang! de Abril de 2013

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

FELIZ NATAL!


Este Natal, escolhi como postal para o tradicional post natalício, esta imagem da mais popular e divertida trilogia da BD portuguesa, As Aventuras de Dog Mendonça, desenhadas por Juan Cavia e Santiago Villa e escritas pelo meu amigo Filipe Melo, de cujo Facebook pirateei esta imagem. Para todos os visitantes deste blog, aqui ficam os meus votos de um Feliz Natal e de um ano de 2014 melhor do que este!

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Poesia Desenhada - Os Labirintos da Água, de Diniz Conefrey


Dez anos depois da publicação de Cochquixtia: O DespertarDiniz Conefrey regressa finalmente às livrarias com Os Labirintos da Água, livro que transpõe para a Banda Desenhada três textos de Herberto Helder. Um dos nossos melhores ilustradores e também um dos raros a reflectir sobre a própria linguagem e os seus autores (vejam-se os textos que publica ocasionalmente no seu blogue Quarto de Jade), Conefrey tem tido visíveis dificuldades em fazer chegar o seu trabalho ao público-leitor, evidente na incapacidade em encontrar editor para os restantes capítulos da ambiciosa trilogia sobre o México pré-colombiano, de que O Despertar, que a Devir publicou em 2003 em Portugal e Espanha, foi o capítulo inicial, e único publicado.
Mas não é a arte pré-colombiana, de que Conefrey é um profundo conhecedor, que marca este regresso em livro, mas as palavras do nosso maior poeta vivo, Herberto Helder, que Diniz Conefrey transforma em imagens, que coloca num diálogo, tão conseguido como surpreendente, com o texto que as inspirou.
Em rigor, Os Labirintos da água, que o autor lança agora no seu próprio selo, depois da anunciada edição pela Assírio & Alvim não se ter concretizado, não é um livro novo, mas uma nova versão, revista, aumentada, com uma qualidade de impressão muito superior e um formato mais adequado, de Arquipélagos, livro publicado pela Editora Íman em 2001, que recolhia as adaptações à BD de dois textos de Helder: Aquele que dá a vida e Uma ilha em sketches. A estes dois textos, junta-se agora A máquina de emaranhar paisagens, uma terceira adaptação que, embora prevista desde o início, não estava ainda concluída quando António Cabrita, da Íman, decidiu avançar com a publicação do álbum.
Conforme Conefrey refere numa entrevista: “a ideia geral de Arquipélagos assenta em três ilhas do universo do poeta. Se Aquele que dá a vida é (…) uma narrativa de personagem, com uma acção central, diálogos e desenvolvimento temporal que no conjunto da adaptação não é literal; já em Uma ilha em sketches, o texto aparece completamente traduzido em imagens sequenciadas, vivendo sobretudo de um silêncio latente, quase palpável… Mas esses são dois textos em forma de prosa poética e pareceu-me imprescindível que este projecto contivesse também uma adaptação exclusivamente poética. A máquina de emaranhar paisagens predispunha-se inteiramente a isso.”

Ou seja, a três textos com características diferentes, responde Conefrey com abordagens diferentes. Em Aquele que dá a vida, Conefrey demonstra todo o seu domínio narrativo, numa adaptação clássica, mas muito bem-feita que, conservando o essencial do texto de Helder, o articula de forma perfeita com as suas imagens, de uma beleza telúrica, em que a criação de texturas aumenta a capacidade expressiva dos lápis de cera e do pastel, numa tradução perfeita da rudeza das gentes que protagonizam esta história violenta. Em Uma ilha em Sketches, numa opção arriscada, que se revela compensadora, Conefrey vai mais longe, abdicando mesmo das palavras de Herberto Helder, que surgem apenas antes da história, em texto corrido e que, na edição da Íman, estavam completamente ausentes.

Aquilo que podia parecer um sacrilégio (prescindir do texto do poeta) revela-se uma decisão acertada pois, mercê de um notável trabalho de cor, onde as influências de Mattotti se juntam a outras oriundas da pintura, como Van Gogh, Conefrey obtêm essa “ordenação abstracta das cores – violentas, delicadas – no cheiro estreme da maresia e da areia que já aquece”, de que fala Herberto.
Por último em “A máquina de emaranhar paisagens” a abordagem é muito mais livre, respondendo à própria estrutura do texto, e o(s) registo(s) gráfico(s) muito mais abstracto(s), misturando as mais diversas técnicas, da fotografia à colagem, passando pela aguarela e pelos lápis de cor, num caos organizado em que consegue, tal como tinha feito Alberto Breccia nas adaptações que fez dos contos de H. P. Lovecraft, “traduzir o intraduzível e representar o irrepresentável”.
Um dos livros do ano e, claramente, o mais belo livro do ano, Os Labirintos da Água mostra que Conefrey consegue ser simultaneamente fiel ao texto que adapta, sem abdicar da sua personalidade artística. O resultado é algo que, mais que Banda Desenhada é sobretudo “poesia desenhada”.                
(“Os Labirintos da Água”, de Diniz Conefrey, Quarto de Jade, 108 pags, 18 €) 
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 21/12/2013

sábado, 21 de dezembro de 2013

DC Comics Uncut 21 - Universo DC: Justiça 1


Nesta segunda série, lançada com o jornal Sol, por uma questão de tempo e porque ainda não tive acesso às imagens dos primeiros volumes, optei por publicar aqui apenas os editoriais que eu escrevi, começando precisamente por este Justiça, que assinala o regresso de Alex Ross em português.

Justiça para Todos

Há artistas cujo grafismo único não se limita a contar visualmente uma história. Ilustradores cujas imagens influenciam a maneira como a própria história é contada. Criadores com um universo visual facilmente reconhecível e que influencia a própria evolução das narrativas que são chamados a ilustrar.
Jack Kirby, com o dinamismo e a visceralidade do seu traço era um desses artistas. Tal como o era Moebius, com a sua capacidade imbatível de criar imagens que continham em si universos inteiros. Mas, se quisermos avançar no tempo e juntar um autor contemporâneo a esses nomes míticos de artistas já desaparecidos, o nome do ilustrador americano Alex Ross revela-se incontornável.

Com um estilo que o crítico Brian Mullen definiu como “tão realista, que podíamos jurar que as personagens estiveram a posar para ele”, Alex Ross nasceu em Portland, no Oregon, em 1970, tendo-se licenciado na American Academy of Art, de Chicago. A sua formação académica, é um dos segredos para o seu estilo gráfico, pois Ross mistura influências vindas dos comics, como George Pérez, Bernie Wrightson, ou Jack Kirby, com a de ilustradores como Norman Rockwell e J. C. Leyendecker, e pintores como Salvador Dali, criando imagens espectaculares, que aliam o dinamismo dos comics com a gravitas da pintura clássica. Excelente pintor e retratista, Ross é senhor de um estilo hiperrealista que lembra bastante as ilustrações de Norman Rockwell, embora com um toque épico normalmente ausente do trabalho do célebre ilustrador do “american way of life” e que se adequa perfeitamente às histórias de super-heróis, cujos personagens são por definição “larger than life”.
Essa dimensão simultaneamente realista e épica, ajudaram a transformar Alex Ross, num dos mais populares artistas americanos da actualidade, cuja fama extravasou largamente o mundo dos Comics. Vejam-se as ilustrações que fez para filmes como Spiderman 2, de Sam Raimi, ou Unbreakable, de M. Night Shyamalan, ou as capas para revistas como a Time e a TV Guide e até para o cartaz da Entrega dos Óscares de Hollywood, já para não falar na sua participação activa na campanha presidencial de 2008, com duas ilustrações que fizeram história, em que Obama é apresentado numa pose próxima do Super-Homem, abrindo a camisa para deixar ver o uniforme por baixo, enquanto a George W. Bush cabe o papel de vilão, aparecendo como um vampiro que morde o pescoço da estátua da Liberdade

Mas bem antes do grande público descobrir o seu trabalho, Alex Ross já tinha saltado para a fama, junto dos fãs de super-heróis, com Marvels, uma mini-série escrita por Kurt Busiek em 1994. Um escritor com quem voltará trabalhar na série Astro City, em que Ross se encarrega das capas e da concepção gráfica dos inúmeros Super-heróis que enxameiam a cidade criada por Busiek.
Embora a sua estreia como ilustrador de personagens da DC tenha acontecido logo em 1993, quando pintou a capa do romance Superman: Doomsday & Beyond, o seu primeiro grande projecto para a editora de Batman e Super-Homem, foi a série Kingdom Come em que colabora com o escritor Mark Waid na criação de um futuro distópico e sombrio para o Universo DC. Seguiram-se uma série de projectos com Paul Dini, um dos argumentistas da premiada série televisiva Batman Adventures, cujo grande formato permitia explorar melhor a dimensão épica da arte de Ross. Assim, entre 1998 e 2003, nasceram seis livros dedicados aos principais heróis do Universo DC, Batman, Super-Homem, Mulher Maravilha, Shazam e a Liga da Justiça, grupo que protagonizou os volumes Secret Origin e Liberty and Justice.
  Justiça, a história cuja primeira parte vão poder ler nas páginas seguintes, é o corolário lógico da ligação de Alex Ross aos heróis da DC. Uma história épica que reúne heróis e vilões numa guerra sem quartel. Como refere o próprio Ross “estava a terminar o livro da Liga da Justiça quando comecei a falar com Dan Didio sobre a ideia de uma revista da Liga da Justiça que pudesse ser uma série. Algo com a Liga da Justiça clássica, de modo a satisfazer a vontade dos fãs em rever esses heróis. Desde o início que a história se iria chamar Justiça. Pareceu-me uma sequência lógica do anterior Liberdade e Justiça.”

Mas, se os heróis (e os vilões) são os clássicos, mesmo que a sua actuação não o seja, menos clássica é a aproximação de Ross à arte deste projecto, em que em vez de assegurar sozinho o desenho a lápis, a passagem a tinta e a aplicação da cor, como aconteceu nos restantes trabalhos que ilustrou para a DC, trabalha em equipa com o desenhador Doug Braithwaite, que assegura a planificação e o desenho a lápis, cabendo a Alex Ross a arte-final. Esta colaboração com Braithwaite, iniciada em Earth X, uma história também escrita por Jim Krueger, que é igualmente o argumentista de Justiça, permite a Ross participar num projecto com uma periodicidade regular bimensal, algo inédito num criador que, pela complexidade (e morosidade) do seu estilo estava naturalmente mais vocacionado para mini-séries como Marvels e Kingdom Come. Ainda mais do que em Earth X, a colaboração entre os dois artistas revela-se tão harmoniosa que os leitores menos atentos nem se aperceberão que a história não é apenas desenhada por Alex Ross, que não tem quaisquer dúvidas em realçar o trabalho de Braithwaite. Nas palavras de Ross: “sou um enorme fã de Doug e um grande seguidor dos artistas contemporâneos que têm um traço forte e realista. Tenho uma relação de quatro anos com ele e a maior confiança na sua capacidade e na capacidade de colaborarmos os dois, de modo a criarmos um produto final que seja melhor do que a mera soma dos nossos talentos.”
Também em termos de história, o respeito pela dimensão clássica dos heróis e vilões presentes (os maiores do Universo DC) não impede uma visão adulta desses personagens. Mais do que actualizá-los para o século XXI, Ross e Krueger pretendem reflectir sobre o que os mantém tão carismáticos durante tantos anos. Ou, como refere Ross: “como é que posso recuar às raízes do que faz com que um personagem como Brainiac pareça aterrador desde a sua primeira aparição? Como é que posso olhar para esses personagens sem decidir que necessitam de uma armadura nova para terem estilo? Daí ter decidido antes recriar para os leitores actuais, a sensação de como estes vilões pareciam assustadores das primeiras vezes que apareceram.”

Gerindo de forma harmoniosa o difícil equilíbrio entre tradição e modernidade, Ross, Krueger e Braithwaite conseguem criar uma história intemporal com este Justiça. Uma história em que o cineasta e argumentista Jim Krueger cria uma inédita união dos vilões, em torno do plano perfeito para desacreditar a Liga da Justiça e que passa por provar a vacuidade da sua actuação, que se limita a resolver situações pontuais, em vez de usar os imensos poderes dos seus membros, para melhorar realmente o mundo. Assim, são os vilões como Lex Luthor, Brainiac e o Joker quem, numa extraordinária campanha de relações públicas, vão pôr as suas capacidades ao serviço da humanidade. Uma humanidade que cedo descobrirá que, tal como um leopardo nunca perde as pintas, também os principais vilões do universo DC, não conseguem (nem querem) contrariar a sua natureza.  


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O Azul é uma Cor Cinematográfica



Para o ciclo de Cinema e Banda Desenhada, organizado pelo Cineclube de Tomar, e que ontem terminou, preparei este texto que funcionou com folha de sala da segunda parte do ciclo. O meu agradecimento à organização do Cineclube pelo convite e aos corajosos espectadores que enfrentaram o frio glacial do Cinema Paraíso, onde decorreu o ciclo, para assistir aos filmes que seleccionamos para eles.

Depois de uma primeira parte que começou com a recuperação de um clássico da ficção científica, que foi a primeira superprodução internacional baseada numa BD (Barbarella), prosseguiu com a estreia de Marjane Satrapi na direcção de actores (entre os quais a portuguesa Maria de Medeiros), numa história que mergulha nas memórias familiares da autora de Persépolis (Galinha com Ameixas) e que terminou com adaptação de uma das menos conhecidas, mas nem por isso menos interessante, criação de René Goscinny (O Menino Nicolau) o ciclo de Banda Desenhada e cinema organizado pelo Cineclube de Tomar, chega ao fim em tons de azul.

Com efeito, é azul a cor dos cabelos das personagens principais dos dois filmes que passarão nas sessões nocturnas de quinta e sexta-feira: Jill Bioskop, a "mulher armadilha" de Imortal de Enki Bilal, e Emma, a rapariga que vai levar Adele a descobrir a sua verdadeira sexualidade em A Vida de Adele, de Abdellatif Kechiche. Daí que se possa dizer com propriedade que, nesta segunda parte do ciclo, o azul é uma cor cinematográfica.

A abrir está segunda semana do ciclo temos Imortal, de 2004, a terceira longa metragem de Enki Bilal, nome maior da Banda Desenhada europeia. Nascido em Belgrado em 1951, filho de uma mãe checa e de um pai Bósnio, Bilal mudou-se com a sua família para Paris em 1961, onde descobriu a BD e o cinema, as duas formas artísticas a que dedicaria a sua vida. Tendo iniciado a sua carreira na BD na revista “Pilote” em 1972, é nas páginas dessa mesma revista que inicia a sua colaboração com o escritor Pierre Christin, de que sairiam trabalhos como As Falanges da Ordem Negra e, sobretudo, A Caçada, obras marcadas por uma forte componente política, a que o traço barroco de Bilal dava uma dimensão mais inquietante e surreal.
              Iniciada em 1980, com A Feira dos Imortais, numa fase em que a colaboração com Christin ainda estava bem activa e prestes a dar os seus melhores frutos (o notável A Caçada) a Trilogia Nikopol veio provar que Enki Bilal também era capaz de criar as suas próprias histórias, escolhendo como cenário um futuro próximo, tão sombrio como as cores que o seu autor utiliza habitualmente. E, se os treze anos que separam a realização dos três álbuns permitem verificar a evolução do traço de Bilal e a forma brilhante como passa do sistema de trabalho clássico para uma fabulosa cor directa, também é interessante verificar como o autor se vai afastando da narrativa tradicional da BD, através da introdução de elementos como recortes de jornais (no caso de Mulher Armadilha, o segundo álbum, é mesmo um suplemento do jornal Liberation, datado de 1993, mas com textos de 2025), que fornecem informação complementar sobre  o futuro distópico imaginado por Bilal.
              Centrada em três personagens, o deus Egípcio renegado Horus,  a jornalista Jill Bioskop, a mulher armadilha de cabelo azul e pele branca, e o astronauta Alcides Nikopol, cujo corpo vai servir de abrigo a Horus, a Trilogia Nikopol é o trabalho mais conceituado do seu autor, tendo o último volume, Frio Equador sido considerado pela revista “Lire” como o melhor livro do ano em 1993, em todas as categorias literárias, não apenas na área da BD. Mas o reconhecimento dos seus pares e da crítica literária francesa não foi suficiente para Bilal, que se tornou também realizador de cinema. A paixão de Bilal pelo cinema esteve sempre presente  na sua obra (não por acaso, o apelido da Mulher Armadilha, Bioskop, significa cinema em russo e o personagem Nikopol tem as feições do actor Bruno Ganz) e, depois de ter trabalhado com Alan Resnais, primeiro ilustrando o cartaz de Mon Oncle d'Amerique e depois pintando os cenários de La Vie est un Roman, Bilal estreou-se na realização em 1989, com Bunker Palace Hotel, um filme escrito por Christin que transpõe  para o grande ecrã com fidelidade o universo de papel de Bilal.
              Seguiu-se Thyko Moon, em 1997, filme que passou completamente despercebido e foi um fracasso comercial, o que não diminuiu a vontade de Bilal de fazer cinema. Uma vontade satisfeita finalmente em 2004, com a estreia de "imortal", uma revisitação, mais do que uma adaptação da Trilogia Nikopol, centrada na sua personagem mais emblemática, Jill Bioskop, a "mulher armadilha". Para além da mudança da acção de Paris para Nova Iorque, há várias diferenças naturais em relação às BDs originais o que não impede que o todo seja facilmente reconhecível - apesar de alguns feitos digitais menos conseguidos, que faz com que falte a algumas imagens a patine oxidada tão característica do desenhador - como sendo inequivocamente de Bilal. Como o próprio autor refere "os meus filmes parecem-se com as minhas BDs e vice-versa. E nem uns nem outros são tradicionais. Daí que os puristas de qualquer uma das linguagens tenham dificuldade em se reconhecer neles."

Seguem-se nas sessões de sexta, dirigidas ao público infantil, dois filmes de animação em que os próprios autores adaptam para o cinema as suas mais famosas criações. É o caso de Zep, com o seu Titeuf, que depois de uma série de animação que já passou na televisão portuguesa, protagoniza agora uma longa metragem, e de Joann Sfar, que depois da inspirada biografia do cantor Serge Gainsbourg (Gainsbourg, Vie Heroique) adapta ao cinema a sua série mais popular,Le Chat du Rabin, num filme de animação tradicional, que consegue preservar todo o humor e poesia da BD original.

O mais aguardado filme deste ciclo, recém-galardoado com a Palma de Ouro no último Festival de Cannes, chega na sexta-feira à noite. A Vida de  Adele. Capítulos 1e 2, de Abdellatif Kechiche, que adapta livremente a novela gráfica Le Bleu est une Couleur Chaude de Julie Maroh. Obra de estreia da autora, premiada com o Prémio do Público no Festival de Angouléme de 2001, "Le Bleu..." é uma história trágica de amor, marcada pela homossexualidade, com contornos autobiográficos e que serviu de ponto de partida ao filme de Kechiche, mas não de ponto de chegada. A mudança é evidente, até no nome das personagens, com a Clementine da BD, a dar lugar a Adele que, não por acaso, é o nome da extraordinária actriz que Kechiche filma de forma vampírica. Essa alteração, introduzida no decorrer das filmagens, é sintomática da relação que o realizador estabeleceu com a sua actriz e que faz com que o filme se afaste da BD que lhe serviu de base. Esqueçamos as acusações das actrizes e da equipa de produção em relação ao carácter tirânico de Kechiche, ou as queixas de Marohe de que o realizador a ignorou completamente, antes e depois do filme estrear. O que interessa é o resultado. Um filme extraordinário que, como sabiamente conclui Julie Marohe "é uma outra versão/ visão/ realidade de uma mesma história". Uma história que nasceu nas páginas de uma Banda Desenhada.

Para encerrar o ciclo temos, no sábado, Astérix: Missão Cleópatra, a mais inspirada das adaptações ao cinema das aventuras do popular gaulês criado por Goscinny e Uderzo. Dirigido por Alain Chabat, este é o filme que melhor soube captar o humor intemporal de Goscinny, feito de trocadilhos deliciosos e de anacronismos que permitem fazer um paralelo com a realidade actual. Chabat, que anos mais tarde levou também ao cinema outro célebre personagem da BD franco-belga, o Marsupilami, criado por Franquin para as aventuras de Spirou, tem experiência como argumentista de Banda Desenhada, tendo escrito o argumento do terceiro álbum de Ranxerox, a série de culto criada por Tamburini e Liberatore. O mesmo Liberatore que trabalhou como conselheiro visual neste filme, tendo desenhado, entre outras coisas, os vestidos que fazem de Mónica Belucci um Cleópatra ainda mais inesquecível. Curiosamente, este é o filme de Astérix de que  o Uderzo menos gosta. Tendo em conta a qualidade média dos argumentos que Uderzo escreveu para a série, até nem admira...

domingo, 1 de dezembro de 2013

O "Texone perdido" de Nizzi e Seijas chega a Portugal


Já está nas bancas portuguesas “As Hienas de Lamont”, o Tex Gigante nº 26,  ilustrado pelo argentino Ernesto Garcia Seijas. Depois de Carlos Goméz, no (magnífico) volume anterior, este é o 2º Tex Gigante (ou Texone, como lhe chamam os italianos) seguido, a contar com ilustrações de um mestre argentino que os leitores italianos conhecem das revistas da Eura Editoriale, a grande rival da Bonelli nos quiosques de Itália.
Mas isso é apenas uma mera coincidência, pois este livro, em que o desenhador começou a trabalhar em 2000, estava na gaveta do editor há quase uma década, havendo até quem duvidasse que alguma vez viesse a sair… Ao que parece, o motivo seria a quantidade (e a sensualidade) das mulheres que Seijas desenhou nesta aventura de Tex. A prova-lo está o facto de Garcia Seijas ter tido que redesenhar 11 páginas, mas mesmo com estas alterações, o livro, que chegou a estar anunciado para 2003, ficou guardado numa gaveta desde 2005 e só acabaria por ver a luz do dia em Novembro de 2011, já após a morte de Bonelli, falecido em Setembro desse ano.
Agora que o livro está ai, fica a dúvida quando à decisão de Bonelli. Sendo claramente uma história atípica em relação ao habitual na série, seja pelo facto de não acontecer grande coisa ao longo das quase duzentas páginas, seja pela sensualidade das figuras femininas de Seijas, seja ainda pelo facto de a maioria da história se passar num ambiente urbano, não me parece que “As Hienas de Lamont” seja um mau livro do Tex. É apenas um livro do Tex diferente, o que poderá ser encarado como negativo pelos fãs mais puristas, mas que, para mim, que continuo a seguir a série pela qualidade dos desenhadores, este “Texone” não desilude.
O mérito é todo de Seijas, um veterano da BD argentina, que já trabalhou com os maiores argumentistas do seu país, de Oesterheld a Trillo, passando por Robin Wood, e que aqui demonstra toda a elegância e sensualidade do seu traço, marcado pela clareza e legibilidade, na linha de outros mestres argentinos, como Horacio Altuna.
Se o argumento de Nizzi, um dos últimos que assinou para a editora Bonelli, mostra um escritor longe do seu melhor nível, numa história em que a presença dos companheiros de Tex não é devidamente aproveitada, a história tem o mérito de fazer brilhar os pontos fortes da arte de Seijas, um desenhador de grande elegância e com grande capacidade no tratamento fisionómico das personagens, evidente tanto nas personagens secundárias, como nas duas belas protagonistas femininas.
Embora longe do nível do volume anterior, este “Texone” é ainda assim bastante recomendável, sobretudo para quem quiser descobrir a belíssima arte de Ernesto Garcia Seijas, mais um mestre argentino que chega a Portugal graças à série Tex Gigante.
(“Tex Gigante nº 26: As Hienas de Lamont”, de Cláudio Nizzi e Ernesto Garcia Seijas, Mythos Editora, 242 pags, 10,00 €)
Versão integral do texto que devia ter sido publicado no Diário As Beiras de 30/10/2013