terça-feira, 15 de outubro de 2013

DC Comics UNCUT 14: Crise de Identidade (Parte 2)


Crise de identidade, identidades em crise

Não é fácil encontrar uma história de super-heróis mais controversa do que Crise da Identidade, ou uma história que tenha polarizado de tal modo os fãs. Não só pelo facto de nela morrerem heróis, mas pela representação crua de acontecimentos e crimes chocantes e violentos. Na história da continuidade do Universo DC esta saga é sem dúvida um momento único e marcante.

Ao longo das duas últimas décadas, as histórias dos comics de super-heróis têm oscilado entre dois pólos opostos. Crise de Identidade inscreve-se claramente na corrente "revisionista", que pretende questionar muitos dos pressupostos das histórias de super-heróis, fazendo o contraste entre os super-poderes típicos das personagens deste género e o mundo real. Por outro lado, existe uma corrente que reagiu contra o revisionismo, e que quer devolver à história de super-heróis à sua posição clássica de história positiva, mais ligada ao entretenimento puro, e a que podemos chamar de "reconstrucionista", na feliz expressão do argumentista Kurt Busiek. Revisionismo e reconstrucionismo não são obviamente categorias absolutas, são maneiras de escrever as histórias de super-heróis que sempre existiram e que são de algum modo relativas a cada época. Podemos dizer, por exemplo, que as aventuras do Lanterna Verde e do Arqueiro Verde do periodo de Denny O'Neill e Neal Adams, algumas das quais já tivemos ocasião de ler nesta colecção, com todas as suas preocupações sociais, também eram revisionistas. Mas o revisionismo que nos interessa aqui é mais negro e questiona mais profundamente os comics de super-heróis.

Esse revisionismo surgiu na década de 80 em obras incontornáveis como Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, ou O Regresso do Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller. Apresentavam-nos histórias em que as questões ligadas à existência dos super-heróis eram levadas às suas últimas consequências, e em que a interacção entre eles e um mundo mais ou menos real era mostrada de uma maneira mais realista. Infelizmente, muitos leitores apenas retiveram desta vaga inicial de histórias o lado violento e mais negro, e toda uma geração posterior de autores viria a desenvolver comics em que a único sinónimo que parecia existir para "realismo" era "violência", quer ela servisse ou não os propósitos do argumento.

Essa violência que foi a marca de algumas das obras mais importantes da época, surgiu naturalmente como reacção a alguns dos clichés do género, em que raramente eram mostradas as consequências últimas dos confrontos entre os heróis e vilões, por exemplo, e em que quase nunca eram pensados os "efeitos secundários" destes confrontos sobre o mundo que os rodeava. Mas o "revisionismo" não tinha como regra principal a violência, ela era apenas uma das questões que eram postas. Outras questões tinham a ver com outros clichés dos comics de super-heróis, como a existência de um status quo quase eterno nos universos ficcionais, em que cada mega-saga, cada invasão extra-terrestre ou conspiração global, cada conflito de proporções cataclísmicas, pura e simplesmente não afectava em nada o ambiente à volta dos heróis, ou o facto de os heróis raramente se envolverem em questões políticas ou sociais de modo relevante.

Esta nova vaga de realismo nos comics de super-heróis levou a uma série de histórias mais negras e violentas, e a reacção não tardou. Em poucos anos, autores como Kurt Busiek, com Marvels ou Astro City (que criou com Alex Ross e com Brent Anderson, respectivamente) por exemplo, voltaram a um tipo de histórias mais clássico e em que o lado mais negro da fase anterior dava lugar a histórias mais positivas. Talvez o momento definitivo da inversão das tendências tenha sido a estreia de Grant Morrison à frente da Liga da Justiça, em que ele conscientemente tentou incutir aos membros da Liga um lado mais mítico e mais representativo das qualidades positivas da humanidade. Nas melhores histórias desta fase reconstrucionista, as lições da era anterior não foram esquecidas, e os argumentos tiveram em conta a interacção com o mundo real de modo mais coerente. Ao longo dos dez anos seguintes foram surgindo sínteses excepcionais das duas correntes, em universos ficcionais de super-heróis em que a violência era posta ao serviço de histórias com um desenvolvimento inteligente e que não fugiam das questões sociais ou políticas que rapidamente se tornam subjacentes aos conflitos super-heróicos. The Authority, sobretudo na fase de Mark Millar e Frank Quitely, mas também na fase inicial, de Warren Ellis e Bryan Hitch, ou Planetary, do mesmo Ellis (com arte de John Cassaday), são alguns dos melhores exemplos disso.

No seu melhor, qualquer história de qualquer género pode servir a causa do entretenimento, e ao mesmo tempo fazer-nos reflectir sobre o mundo que nos rodeia, a condição humana, fazendo ecoar no seu enredo ideias relevantes para o leitor. Isso é verdade para o romance policial, para a fantasia ou o romance histórico, ou mesmo cor-de-rosa. E não é diferente para as histórias de super-heróis, que pode ser, por exemplo, um dos melhores géneros para explorar as questões sobre o poder e o relacionamento de heróis e pessoas normais com ele. Mas para que isso possa funcionar, é preciso também que a "distância" entre o mundo real a que o leitor pertence, e o mundo ficcional em que a história se passa, seja gerida de modo a não quebrar a plausibilidade. Isso pode ser feito apelando ao mito e arquétípo, por exemplo, quando os mundos são muito diferentes, mas nem todas as histórias podem ser mitos. Nos comics de super-heróis isso também pode ser feito confrontando coerentemente as personagens super-poderosas com os problemas do mundo real. Crise da Identidade, inscrevendo-se na corrente revisionista, e tendo sem dúvida um lado muito negro e trágico, consegue fazê-lo de modo notável.

Como vimos em Laços de Família, a introdução ao anterior volume desta colecção que apresenta a primeira parte de Crise de Identidade, Brad Meltzer, o argumentista da saga, é um conhecido autor de romances policiais. Muitas das características que fizeram de Crise um livro tão controverso são totalmente normais, diríamos mesmo banais, num romance policial. A violência, por vezes descrita ao pormenor, é comum e costuma até ser o ponto de partida da história. As consequências dessa violência sobre as personagens são frequentemente exploradas. De certa maneira, para um autor como Meltzer é mais fácil pensar a inserção destes factos normais e trágicos da vida real no universo dos super-heróis do que para a maioria dos argumentistas de comics. Como ele próprio diz, "há um custo de se pôr um a capa de super-herói, e acho que ao longo dos anos o temos ignorado, e muito". E a reacção dos fãs à mais terrível cena do livro - a violação de Sue Dibny pelo Dr. Luz - é a prova de que a tensão entre revisionismo e reconstrucionismo continua bem viva hoje em dia. Como se os super-heróis e as suas famílias, caso existissem, pudessem escapar à violência que existe na sociedade à sua volta.

Os heróis são assim colocados frente a um dilema tremendo, e a Liga dilacerada a partir do interior. Meltzer consegue mostrar um conflito em que parece por uma vez não existir um Bem ou um Mal claros. Mas quando vemos que a resposta da Liga à violação de Sue Dibny é a violação do Dr. Luz, sentimos também o peso terrível das decisões de cada um dos super-heróis, na cena maravilhosa da votação, que é fechada pelo voto decisivo de Barry Allen, o Flash anterior ao actual, e que para muitos é ainda hoje considerado uma das personagens que encarna melhor a ética dos super-heróis da Silver Age. Mas para os heróis, e para os leitores, a violação de Sue Dibny é a prova de que no universo dos super-heróis, tal como no nosso, existem outras ameaças à família dos heróis do que simplesmente o rapto ou a morte, que poderíamos considerar como ameaças mais convencionais. E tal como no nosso universo, as respostas a essa ameaça não são facilmente descritas em termos de Bem e de Mal.

Julian Darius, um dos mais perspicazes críticos e analistas dos comics de super-heróis, afirma que "Se queremos respeitar os comics, não os devemos respeitar porque são cool, ou porque achamos que dois nerds a discutir se o Hulk consegue vencer o Super-Homem merecem respeito ou são notícia. Mas deveríamos respeitá-los como forma de arte literária capaz de contar histórias novas e que nos tocam de maneiras que outros meios não conseguem fazer (...) e por serem livros que podemos arrumar ao lado da Guerra e Paz na prateleira. Infelizmente, achamos frequentemente que são um meio estranho mas giro de contar histórias e de gerar ideias para blockbusters com montes de explosões". Mas com histórias como Crise de Identidade, com a sua sofisticação e com a excepcional caracterização das suas personagens, que à sua maneira, no seu universo super-heróico, nos parecem tão reais, o respeito que os comics de super-heróis merecem parece estar mais que garantido

José Hartvig de Freitas

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