sexta-feira, 27 de setembro de 2013

DC Comics UNCUT 12: Arqueiro Verde: Os Caçadores


Ao contrário do que sucedeu com outros textos, desta vez a DC não me pediu que cortasse nada, mas sim que acrescentasse um parágrafo, sobre a presença do Arqueiro Verde nos New 52. Essa ausência de referência não resultou de nenhum esquecimento meu, mas sim de ter lido os primeiros números da nova revista do Arqueiro Verde e tê-la achado fraquíssima... Mas, já que tinha que escrever sobre esta fase mais recente, decidi fazer uma segunda tentativa. E ainda bem que o fiz, pois os números mais recentes, assinados por Jeff lemire e Andrea Sorentino, que assumiram a série a partir do nº 17, são excelentes e altamente recomendáveis! Espero falar deles aqui, quando sair o primeiro trade, mas até lá, deixo-os com a minha introdução para o volume dedicado ao Arqueiro Verde de Mike Grell.

UM CAÇADOR NA SELVA DE BETÃO

Tendo aparecido pela primeira vez em Novembro de 1941, no nº 37 da revista More Fun Comics, numa história escrita por Mort Weisinger e George Papp, o Arqueiro Verde surgiu inicialmente como uma espécie de cruzamento entre o Batman e Robin Hood, um justiceiro mascarado equipado com um arco e com uma série de flechas cheias de gadgets. E se muitos desses gadgets poderiam perfeitamente estar no cinto de utilidades do Cavaleiro das Trevas, em vez de na ponta de uma flecha, as semelhanças entre os dois heróis da DC não se ficam por aqui, pois Oliver Queen, tal como Bruce Wayne, também era milionário, combatia o crime sob uma identidade secreta, possuía um Carro-Flecha e um Avião-Flecha e tinha um jovem ajudante, Speedy, que tal como Robin, estava ali para facilitar a empatia dos pequenos leitores, que facilmente se imaginavam na pele do jovem “sidekick”, combatendo o crime ao lado do herói.

Talvez devido ao seu carácter derivativo, o Arqueiro Verde nunca se conseguiu afirmar o suficiente para ter direito à sua própria revista, mesmo quando foi desenhado por Jack Kirby, limitando a sua presença a histórias curtas e às participações na Liga da Justiça. Mesmo a etapa gloriosa de Denny O’Neil e Neal Adams, em que o arqueiro esmeralda dividiu o protagonismo com o Lanterna Verde, na revista deste último, em histórias incontornáveis que tivemos o privilégio de descobrir nesta colecção, durou pouco mais de um ano e não teve continuidade imediata.
Mas entre os muitos leitores ávidos do período incontornável de Adams e O’Neil, estava um jovem oficial da aviação deslocado em Saigão, no Sudoeste Asiático, chamado Mike Grell, que descobriu a série graças a um amigo recém-chegado da América. O próprio Grell descreve assim esse momento de verdadeira epifania: “fiquei perplexo porque, quando deixei de ler comics, como muitos adolescentes fazem quando começam a ficar mais interessados nas raparigas, o Batman ainda tinha um peito que parecia um bloco de madeira e o queixo quadrado. Fiquei chocado ao ver como os comics tinham evoluído, amadurecido! Os assuntos eram reais e o desenho era muito mais ilustrativo. Decidi logo ali que aquele era o tipo de histórias em que queria trabalhar.”
Nascido em 1947 no Wisconsin, Mike Grell estreou-se na Banda Desenhada em 1972, como assistente de Dale Messick, em Brenda Starr, uma tira diária publicada nos jornais, mas logo no ano seguinte mudou-se para Nova Iorque e começou a trabalhar para a DC, editora que publicou o seu primeiro grande sucesso, a série Warlord, que Grell escreveu e desenhou durante mais de 6 anos. Mas estava escrito que o seu nome iria ficar ligado à série que lhe deu vontade de se dedicar aos comics e, quando em 1976, Denny O’Neil decide regressar às aventuras conjuntas do Arqueiro Verde e Lanterna Verde, nas páginas da nova revista Green Lantern, Grell foi o desenhador escolhido, iniciando assim uma ligação com o arqueiro esmeralda, que ainda hoje se mantém.
Talvez pela abordagem mais convencional e mais próxima das histórias de super-heróis tradicionais, o regresso de O’Neil ao universo dos cruzados esmeralda, não teve grande impacto e a nova revista dura pouco tempo, tal como o sonho de Mike Grell desenhar o seu herói favorito. Só mais de dez anos depois, em 1987, no rescaldo do sucesso do Dark Knight Returns, de Frank Miller, que introduziu no mercado as mini-séries em “prestige format” (edições com lombada e bem impressas num papel de qualidade e gramagem muito superiores ao dos comics tradicionais) é que Mike Grell tem a possibilidade de voltar a desenhar o Arqueiro Verde, desta vez com total liberdade para poder reinventar a personagem.
O mérito tem que ser repartido com o editor Mike Gold, que depois de perguntar a Grell se este tinha algum projecto para uma minissérie de luxo, lhe sugeriu pegar no Arqueiro Verde, transformando-o num caçador urbano. Nas palavras do próprio Mike Grell: “O Mike (Gold) lançou-me esta ideia: “pensa nisto, o Arqueiro Verde como um caçador urbano”. Percebi logo. Era mesmo isso! Era isso que eu queria fazer. Reinventar a personagem. Pegar no Ollie e levá-lo numa direcção completamente diferente. Livrei-me das setas especiais, mudei-lhe o uniforme, dei-lhe um capuz… 30 anos depois, ele continua a usar o capuz…”
Nascia assim a mini-série Os Caçadores, em que Oliver Queen troca a cidade de Star City que apenas existe no universo DC, pela bem real e chuvosa Seattle, cujo clima justifica o uso do capuz que, embora motivado por aspectos práticos, dá ao herói um ar misterioso e sombrio. E essa mudança de cenário, dita também uma mudança no tom da história, marcada pelo realismo, que atinge também a forma como os efeitos da violência são mostrados. Em vez de setas especiais, o Arqueiro Verde agora utiliza vulgares setas com ponta de metal, que furam a carne e matam. O lado super-heróico desapareceu, com o Lanterna Verde a brilhar pela ausência, tal como os habituais super-vilões e mesmo Dinah Lance, a Canário Negro, não usa o seu famoso grito sub-sónico, apresentando-se também ela sem superpoderes.

Violenta história de vingança, com raízes na Segunda Guerra Mundial, Os Caçadores mistura traficantes de droga, yakuza e agentes dos serviços secretos, numa intriga muito bem urdida por Mike Grell, que na personagem da misteriosa Shado cria um adversário à altura do Arqueiro Verde. Uma japonesa treinada pela yakuza para vingar a morte da sua família, Shado cria uma relação ambígua, de antagonismo, mas marcada pelo respeito mútuo, com o Arqueiro Verde, de quem surge como uma espécie de reflexo distorcido. Também em termos visuais, Os Caçadores foi uma série inovadora, pois aproveitando muito bem as possibilidades que o tipo de papel de luxo permite, Grell opta por um registo gráfico pouco tradicional, em que o desenho clássico a tinta-da-china, alterna com imagens coloridas directamente do desenho a lápis por Julia Laquement, em composições dinâmicas que muitas vezes utilizam a totalidade da página e da dupla página.  
O sucesso da mini-série foi tal, que motivou o lançamento de uma série mensal dedicada ao Arqueiro Verde, marcada pela mesma abordagem realista, mais próxima do policial negro, do que das histórias de super-heróis, que Mike Grell escreveu, e por vezes também desenhou, durante 80 números, entre 1988 e 1998.
Depois de Mike Grell, a vida do Arqueiro Verde conheceu muitas mudanças. O herói foi pai, morreu, foi ressuscitado por Kevin Smith, arranjou uma outra jovem parceira, infectada com o vírus do H.I.V…. e esteve presente desde o ínicio no relançamento no universo DC iniciado com New 52, não só com uma revista própria, mas igualmente como membro principal da Justice League of America. Depois de passar por diferentes equipas criativas, o Arqueiro Verde em versão Novos 52 caiu nas mãos de Jeff Lemire e Andrea Sorentino, dupla que devolveu o sucesso crítico e de público à personagem. E conforme o próprio Lemire refere nas entrevistas, a principal referência para a sua interpretação do Arqueiro Verde foi a  fase escrita por Mike Grell. Fase a que Lemire foi buscar a arqueira Shado, adaptando-a à realidade do universo DC Novos 52.
E o Arqueiro Verde não se ficou só pela Banda desenhada, chegando  também à televisão, como personagem secundário das últimas temporadas de Smallville, antes de ter a sua própria série, Arrow, cuja primeira temporada terminou recentemente nos E.U.A. Com um tom sombrio, muito marcado pelo Batman de Christopher Nolan, mas sobretudo pelo Arqueiro Verde de Mike Grell, a série televisiva que está a ter grande sucesso de audiência, já deu origem a uma revista em formato digital, de que Grell é o autor das capas e um dos principais desenhadores. E em alguns episódios da série, que conta com dois nomes importantes dos comics, como Geoff Johns e Marc Guggenheim, como produtores, é referido um “Juiz Grell”, numa homenagem tão singela como merecida, à importância de Mike Grell na história do arqueiro esmeralda. Uma história de que Os Caçadores é um marco fundamental.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

DC Comics UNCUT 11: Flash: Renascer


UM HERÓI PARA TODAS AS CRISES

Ele pode não fazer parte da Trindade dos heróis da DC (Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha) e é frequentemente relegado para segundo plano, quando comparado aos seus mais ilustres companheiros da Liga da Justiça, por exemplo. Mas o Flash é uma das mais importantes figuras da história dos comics de super-heróis, que devem a sua continuada existência em grande parte a esta personagem e ao seu legado único.

Criado em 1940 por Gardner Fox e Harry Lampert, o primeiro Flash foi Jay Garrick, um estudante universitário que, ao inalar vapores de água dura, ganhou o poder de super-velocidade. Alcunhado de «Corredor Carmim», este Flash foi uma personagem popular na década de 40, com direito a dois títulos (Flash Comics e All-Flash Quarterly) e ao estatuto de membro fundador da Sociedade da Justiça da América, o primeiro grupo de super-heróis da história. Vivia-se então o auge da chamada Idade do Ouro dos comics, quando estes se afirmaram como uma forma de arte e a sua publicação se tornou numa indústria lucrativa. Este estado de graça duraria até ao final da 2ª Guerra Mundial, à qual se seguiu um declínio acentuado da popularidade dos super-heróis, que viram o seu mercado ser tomado de assalto por histórias de horror, crime, romance e westerns. Inúmeros títulos, incluindo os do Flash, foram cancelados nos últimos anos da década de 40, à medida que os EUA entravam num período de introspecção pós-guerra, no qual foi deixando de haver lugar para heróis patrióticos, que se viram substituídos por anti-heróis e figuras niilistas à medida que uma nação sentia a iminência da Guerra Fria. Houve sobreviventes, mas mesmo um portento como o Super-Homem — cujo Action Comics #1 dera início à própria Idade do Ouro — apenas se conseguiu destacar durante a primeira metade da década de 50 graças à publicação Superman's Pal Jimmy Olsen, uma série de grande e duradouro sucesso, na qual o Homem de Aço servia praticamente como ajudante do seu jovem amigo em histórias de interesse humano. O mundo dos super-heróis estava em crise, portanto.

O primeiro sinal de mudança deu-se em 1954, quando, após uma série de controvérsias derivadas da alegada correlação entre a delinquência juvenil e o conteúdo dos comics (sobretudo os populares títulos de crime e horror), várias editoras decidiram implementar o Comics Code Authority. Uma vez regulado o conteúdo das suas publicações, as editoras começaram timidamente a optar novamente pelas apostas sadias e seguras do passado: os super-heróis. Havia no entanto que modernizar o material antigo, e a primeira dessas experiências foi, precisamente, o Flash, que surgiu «reembalado» com uma nova identidade, origem e uniforme em Showcase #4 (1956) pela mão de Robert Kanigher e Carmine Infantino. Este novo Flash era Barry Allen, um cientista forense cujo laboratório foi atingido por um relâmpago durante uma tempestade, banhando-o com uma solução de produtos químicos sobrecarregados que alterou a sua estrutura molecular permanentemente e fez do incauto cientista o novo Corredor Carmim. Após ler um velho comic do «velho» Flash dos anos 40(!), Barry Allen decide assumir a identidade desse herói e criar um uniforme para usar os seus poderes ao serviço da humanidade. A estreia deste novo Flash não criou grandes ondas, mas justificou uma segunda aventura em Showcase #8 no ano seguinte, no qual se registou um aumento nas vendas. Aberto este precedente, e embora o que mais vendia continuasse a ser humor, romance e western, o Flash abriu as portas para as estreias de mais heróis e nesse mesmo ano teve direito a duas outras aventuras nos #13-14 de Showcase. O crescente sucesso levou a DC Comics a devolver o Flash ao seu título epónimo, que continuou com a antiga numeração e recomeçou no número #105 (1959). Seguiram-se os regressos de Aquaman, Lanterna Verde e Arqueiro Verde, todos com novas origens e conceitos renovados, bem como uma modernização da Mulher-Maravilha e a criação da primeira super-heroína em dez anos: a Supermoça. Esta torrente de renovação criativa culminou em 1960 com a formação da sucessora da Sociedade da Justiça da América: a Liga da Justiça da América, que foi o título de maior sucesso da DC em 1961 e se tornou no ponto de referência para todo e qualquer grupo de super-heróis. A Idade da Prata dos comics começara, os super-heróis enquanto conceito estavam vivos e de boa saúde, outras editoras seguiram os passos da DC e o Flash resolvera a primeira de quatro crises.

Barry Allen viveu incontáveis aventuras, frequentemente acompanhado pelo jovem companheiro Kid Flash, e conseguiu basear mais de vinte anos de histórias à volta do aparentemente simplista conceito da velocidade que caracterizava o estilo de arte distinto usado por Carmine Infantino, cuja abordagem artística dava a impressão de movimento ao Flash nos quadradinhos. Mas não só: o Flash tem também aquela que é possivelmente a mais imaginativa galeria de vilões de qualquer herói da DC, com algozes como o Flautista, o Meteoromante, o Mestre dos Espelhos, o Gorila Grodd, o Flash Reverso e, certa vez, a própria Morte. Este nível de ameaças e o alto conceito científico do teor das suas aventuras — que frequentemente acarretavam viagens no tempo e o quebrar das barreiras que separam dimensões paralelas — obrigavam Barry Allen a ser criativo com os seus poderes de velocista, e alguns números do Flash eram autênticas lições de física (com precisão científica variável, bem entendido). Foram esses os poderes que salvaram o Universo DC nas crises subsequentes, a começar pela Crise nas Terras Infinitas, que deixou uma marca indelével no mundo dos comics. O papel do Corredor Carmim nesse épico foi fundamental, quando ultrapassou os limites da velocidade e sacrificou a própria vida para destruir o engenho apocalíptico que se preparava para obliterar o que restava de um já devassado multiverso. Tão depressa correu, que voltou atrás no tempo e se tornou no próprio relâmpago que lhe daria os seus poderes, numa recriação do símbolo de Ouroboros, a representação da eternidade da serpente que morde a própria cauda. Este fim ambíguo serviria de pretexto para o ocasional vislumbre de Barry Allen em futuras aventuras, mas após o fim desta segunda crise, o manto do Flash seria definitivamente assumido pelo seu parceiro Wally West, que até então fora o Kid Flash, e que continuou o legado do Corredor Carmim durante mais de vinte anos.

Muito aconteceu a Wally West durante esse período: duvidou durante anos estar à altura do seu mentor, mas finalmente fez por merecer o título de Flash; conheceu Bart Allen, o neto de Barry Allen, que veio do futuro e se tornou no jovem herói Impulso; casou e formou família; e descobriu a Força Aceleratriz, um conceito que viria a mudar para sempre a mitologia do Homem Mais Rápido do Mundo. Tratava-se de uma fonte de energia extra-dimensional, à qual os velocistas do Universo DC podiam aceder, cada um à sua maneira (tal como evidenciado pelos acidentes e experiências diferentes que deram a cada um dos Flashes os seus poderes) e uma espécie de vida após a morte para eles. Este último aspecto viria mais tarde a revelar-se essencial, pois a alma de Barry Allen fora parar precisamente à Força Aceleratriz, da qual emergiu num momento crucial durante a Crise Infinita (2006) para ajudar o seu antigo parceiro e o seu neto (que por essa altura já assumira a identidade de Kid Flash, em sinal de respeito para com o legado da sua família). Wally West desapareceu durante algum tempo após esse confronto, e o manto do Flash passou então temporariamente para Bart Allen, que se tornou no quarto Corredor Carmim. A terceira Crise fora solucionada...
...mas ainda faltava a Crise Final (2009), em que o derradeiro Mal regressava ao Universo DC e no qual, uma vez mais, Barry Allen viria a ser chamado a agir para evitar o fim da própria Criação. Misteriosamente trazido de volta ao mundo dos vivos em forma corpórea, a sua intervenção é novamente providencial na derrota do Mal, ao correr através do espaço e do tempo com a Morte a morder-lhe os calcanhares. Após uma ausência de duas décadas, Barry Allen regressava assim definitivamente ao mundo dos vivos, e as forças que o trouxeram de volta são explanadas neste Flash: Renascer, no qual o herói retornado questiona e tenta encontrar o seu lugar num mundo que muito lhe deve, mas que parece ter seguido em frente sem ele. Não só isso, pois a Força Aceleratriz parece ainda guardar alguns segredos surpreendentes, e o regresso de Barry Allen pode bem vir a significar um perigo mortal para todos os velocistas...

Seja como for, uma coisa é certa: Salvar o dia cabe frequentemente a heróis como o Super-Homem. Mas é ao Flash que o Universo DC deve o facto de ter sequer havido um dia para salvar ao longo de tantas crises, reais e fictícias. E esse é um legado que não pode ser ignorado.

FILIPE FARIA

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O Sangue e as Cinzas


Um dos períodos mais fascinantes da História da Humanidade, o Império Romano tem sido fonte de inspiração constante para os autores franco-belgas de BD. Basta pensar em séries como “Alix”, ou até mesmo “Astérix”, cuja acção se situa durante o governo de Júlio César. Mas, com a excepção desses clássicos, nas últimas décadas a Roma imperial deixou gradualmente de ser cenário habitual de aventuras, tanto na BD como no cinema. Se no cinema, o sucesso de um filme como “O Gladiador”, de Ridley Scott parece ter ressuscitado o “Peplum”, já na BD esse regresso dá-se mais cedo, em 1998, com “Murena”, a série de Dufaux e Delaby, que a Asa continua a editar no mercado nacional, tendo conseguido “apanhar” a edição francesa, com a publicação quase simultânea neste Verão dos tomos 8 e 9.
Argumentista de séries como “Rapaces” e “Jessica Blandy”, Dufaux já tinha tentado uma incursão pela BD histórica com a série “Giacomo C.”, passada na Veneza do século XIX, mas este “Murena” é claramente a sua aproximação mais feliz ao género e um dos seus trabalhos mais consistentes. Embora aqui, para além do talento narrativo de Dufaux, cuja eficácia é inquestionável, há também que contar com a grande riqueza do material que lhe serve de inspiração, pois a história do Império Romano, com todo um cortejo de sexo, violência, intrigas palacianas e corrupção, tem todos os ingredientes para prender o leitor, mais facilmente até do que uma história de ficção.

E “Murena”, aproveita muito bem o pano histórico em que se desenrola a acção, introduzindo personagens ficcionais num contexto histórico real, que acaba por ser o mais interessante da narrativa inventada por Dufaux, em que a lenda se apoia na História. Nesse aspecto, o jovem Murena, filho de Lola Paulina, a amante do Imperador Cláudio, que dá nome ao livro, revela-se um personagem muito menos interessante do que a personagem real de Agripina, a mãe de Nero, que tudo fez para colocar o seu filho no trono de Roma, ou do que o próprio Nero, em grande destaque nos mais recentes volumes da série.
E os dois últimos volumes centram-se precisamente no grande incêndio que quase destruiu Roma e que a lenda (e o romance “Quo Vadis” e o filme que o adapta) atribuiu a Nero, mas que nesta história resulta de um acto acidental de Lucius Murena.
Mas se a autoria do incêndio de Roma nunca foi provada, sendo um acidente a hipótese mais provável, a verdade é que o incêndio criou o pretexto ideal para uma perseguição aos cristãos, que o Imperador Nero não soube, não quis, ou não pode evitar. Por isso, mais do que Murena, é São Pedro que assume o protagonismo neste nono volume, que culmina com o seu martírio.

A eficácia do argumento de Dufaux tem correspondência, em termos gráficos, no traço clássico e pormenorizado de Philippe Delaby, um desenhador belga, com grande traquejo em termos de BD histórica (logo em 1994 ganhou o Prémio Clio atribuído pelo Salon Historique de Paris, com o álbum “Richard Coeur de Lion”, escrito pelo veterano Yves Duval) cujas páginas revelam um sólido trabalho de documentação e um apurado sentido narrativo. E, para quem acompanha a série deste o início, é evidente o modo como o traço de Delaby foi ganhando leveza, personalidade, e um espectacular sentido de composição, que brilha a grande altura no volume oito, dedicado ao incêndio de Roma. Não restam grandes dúvidas que Delaby é um dos grandes desenhadores realistas da actualidade, e o seu trabalho em “Murena”, onde é muito bem secundado pelo excelente trabalho de cores de Sebastien Girard, é a prova disso mesmo.
Agora que a edição portuguesa está finalmente a par com a original francesa, seria bom que a Asa reeditasse os volumes 1 e 2 da série, há muito esgotados, para que mais leitores possam descobrir uma das grandes séries franco-belgas das últimas décadas.
(“Murena 8: A Vingança das Cinzas”, de Dufaux e Delaby, Edições Asa, 56 pags, 16,50 €
“Murena 9: Espinhos”, de Dufaux e Delaby, Edições Asa, 48 pags, 16,50 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 14/09/2013

sábado, 14 de setembro de 2013

DC Comics UNCUT 10 - Lanterna Verde e Arqueiro Verde: Inocência Perdida


De todos os volumes desta colecção, este é o meu favorito! Também por isso, para além da selecção das histórias e do editorial, fiz questão de traduzi-lo. O editorial não sofreu qualquer alteração por parte da DC, pelo que a maior limitação foi mesmo o espaço disponível, que não me permitiu falar deste punhado de histórias incontornáveis, com o desenvolvimento que justificam. Espero vir a fazê-lo brevemente.

OS TEMPOS ESTÃO A MUDAR

The Times They Are a-Changin', cantava Bob Dylan em 1964 no tema título do seu terceiro álbum. E nos anos seguintes, um pouco por todo o lado, esses sinais de mudança tornavam-se cade vez mais evidentes. Os EUA estavam envolvidos na Guerra do Vietnam, de onde só sairiam, derrotados, em 1973. O reverendo Martin Luther King Jr., opositor declarado à guerra no Vietnam, que em 1964 tinha ganhado o Prémio Nobel da Paz, pelo seu combate não violento contra a discriminação racial, é assassinado em Memphis, no Tennessee, em Abril de 1968. Precisamente um mês antes de estalar em Paris uma revolta estudantil que pretendia levar “a imaginação ao poder”. Um mês depois, a 5 de Junho, em Los Angeles, o Senador Robert Kennedy, que seguindo as pisadas do irmão, se tinha candidatado à presidência dos E.U.A., tem o mesmo destino de John F. Kennedy, sendo assassinado a tiro, abrindo o caminho para a vitória de Richard Nixon nas Presidenciais, em Novembro desse ano.

Apenas os super-heróis não se apercebiam dos problemas de um mundo em convulsão, continuando a combater as mesmas ameaças galácticas, derrotando pela enésima vez os mesmos vilões fantasiados, não se dando conta que o mundo à sua volta estava a mudar. Até que em 1970, o lendário editor Julius Schwartz, um judeu de Nova Iorque apaixonado pela ficção científica e pela fantasia, tendo sido agente de escritores como Ray Bradbury e Robert Bloch, se lembrou de entregar o destino da revista Green Lantern, título então à beira do cancelamento devido às fracas vendas, nas mãos do argumentista Denny O’Neil.
O’Neil, que além de escritor tinha trabalhado como jornalista, procurou trazer para a Banda Desenhada uma mistura de ficção e jornalismo, na linha dos escritores que admirava, os “novos jornalistas” como Norman Mailer, Truman Capote e Hunter S. Thompson e a série Green Lantern podia ser o terreno ideal para essa experiência, de trazer temas do quotidiano socialmente relevantes para um universo dominado pela fantasia.
Como o próprio refere, na introdução a uma reedição da série, em 2004: “O que aconteceria se puséssemos um super-herói num cenário real, tendo que lidar com problemas da vida real? Comecemos pela personagem. O Lanterna Verde era, para todos os efeitos, um polícia. Um polícia incorruptível, obviamente, com intenções nobres, mas um polícia, um cripto-fascista: cumpria ordens, exercia a violência de acordo com as instruções dos seus superiores, cuja autoridade nunca questionava. Se assistia a alguma infração à lei, o seu instinto dizia-lhe para atacar quem não cumpriu a lei, sem se interrogar quanto aos seus motivos. Não foi essa mentalidade que mandou as tropas americanas para a Coreia e o Vietnam? (…) Não é que o Lanterna Verde fosse mau (…) ele apenas nunca teve nenhum motivo para duvidar das suas motivações. Aqui estava um bom ponto de partida. Ia dar-lhe dúvidas.

Enquanto magicava em possíveis histórias, apercebi-me que o Lanterna Verde necessitava de um parceiro, alguém com quem discutir. O Arqueiro Verde era a escolha lógica e não só por causa dos nomes. O Arqueiro Verde era o “bombeiro de serviço” dos heróis da DC. Andava por aí desde 1941, mas nunca foi suficientemente popular para ter uma revista própria. (…) Tirei partido dessa existência fluida numa história da Liga da Justiça, fazendo-o perder a sua fortuna e com isso arrastar os seus amigos para uma crise. Tive autorização para fazer isso porque nenhum dos editores se parecia preocupar muito com ele; ninguém estava minimamente interessado no que acontecia ao Arqueiro Verde. Por coincidência, Neal Adams, tinha alterado a sua aparência, redesenhado o seu uniforme, e acrescentado uma barba, numa história para a revista Brave & Bold, escrita por Bob Haney. Assim, o Arqueiro Verde já tinha um uniforme novo e um estatuto social diferente. Porque não dar-lhe também uma nova personalidade, especialmente porque a antiga era tão indefinida que ninguém sabia bem qual era? Ele podia ser um anarquista saudável e com pelo na venta, em contraste com o calmo e cerebral cidadão-modelo que era o Lanterna Verde. Formariam as duas partes em diálogo sobre os assuntos que decidíssemos abordar nas histórias”.
Embora O’Neil tenha escrito a primeira história pensando que seria o veterano Gil Kane, então o desenhador regular da série, a desenhá-la, Schwartz decidiu entregar essa missão ao jovem Neal Adams, que tinha feito um excelente trabalho ao criar o novo uniforme do Arqueiro e o resultado só veio confirmar a visão de Schwartz na escolha dos autores certos para cada herói.

Vindo da ilustração e da publicidade, Neal Adams concilia o dinamismo próprio dos comics de super-heróis, com um hiper-realismo no tratamento das feições, que se revela extremamente adequado a uma série que introduz os problemas da sociedade moderna, num universo de ficção heroica. Ao longo do livro qua vão ler, são inúmeros os exemplos da excelência do traço dinâmico de Adams e do seu notável talento narrativo. Mas detenhamo-nos apenas numa sequência da primeira história, uma sequência de três quadrados, dos mais reproduzidos da história da BD, em que um velho negro confronta o Lanterna Verde com a sua passividade face ao racismo. A cena passa-se no terraço de um prédio em ruinas, mas esse cenário, mostrado na página anterior, está ausente desta sequência, pois só iria distrair os leitores da importância do diálogo. Em vez disso, a cor dos fundos, diferente nos três quadrados, transmite emoções, desde a raiva do velho negro, simbolizada pelo fundo vermelho, até o desmoronar das certezas do Lanterna Verde, que o fundo cinzento e cheio de ruído, tal como a sua postura, de um homem abatido e envergonhado, bem traduzem.
E, mesmo que o talento de Adams fale por si, não resisto a citar mais uma vez O’Neil, a propósito da arte de Neal Adams: “ele é um indivíduo imensamente talentoso, com uma abordagem própria à arte da Banda Desenhada. No fundo é um realista cuja imaginação consegue esticar os parâmetros das coisas-tal-como-são, de modo a incluir o extravagante e o fantástico. “Se os super-heróis existissem”, disse-me uma vez, “tinham que se parecer com os meus desenhos”.
Nas histórias de Adams e O’Neil, o Lanterna Verde vai trocar os combates intergalácticos a que estava habituado, pela realidade da América profunda, que percorre na companhia do Arqueiro Verde e de um dos guardiões. Uma América onde há racismo, trabalho escravo e a lei protege os corruptos. Uma América que chora a morte dos Kennedy e de Luther King, com uma juventude que procura fugir à ameaça real da guerra do Vietnam refugiando-se na droga. Tudo temas controversos, aqui tratados de forma directa e sem grandes subtilezas. Veja-se o famoso díptico de histórias dedicado ao problema das drogas, em que o Arqueiro Verde descobre que o seu pupilo Speedy, é viciado em heroína. Para além do inesperado de ver um super-herói, mesmo júnior, entregue a um vício mortal, há ainda a posição pouco confortável do Arqueiro Verde, demasiado ocupado a tentar mudar o mundo para se aperceber do drama que tinha em sua casa. Uma história incontornável, que representou um verdadeiro choque para os leitores da época e trouxe a Banda Desenhada para as primeiras páginas dos jornais, para além de ter motivado uma carta de agradecimento do Presidente da Câmara de Nova Iorque, pela forma realista e responsável como um tema tão importante para a juventude, foi tratado.

Nesta série, que embora escrita e publicada no início da década de 70, está firmemente ancorada na década de 60, não falta uma homenagem a Bob Dylan e aos cantores de protesto, através da personagem de Johnny Walden, cuja música incentiva os habitantes de Desolation, uma pequena aldeia mineira, a lutarem contra o dono da mina que os escraviza. Memorável é também a história que encerra este volume, em que a figura de Jesus Cristo é actualizada para o século XX, através de Isaac, um líder ecologista disposto a morrer pelos seus ideais, que acaba crucificado na asa de um avião.
Apesar do impacto que a série teve, e da qualidade e da relevância das histórias que publicaram, a colaboração da dupla limitou-se a apenas doze números, os nºs 76 a 89 da revista Green Lantern publicados entre 1970 e 1972, para além de quatro histórias curtas, publicadas como complemento na revista Flash, entre 1973 e 1974. O seu esforço não foi suficiente para salvar a revista, que foi cancelada no nº 89. Mas então a dupla já estava mais centrada noutra aventura. Reformular o Batman, em histórias inesquecíveis, como as que tivemos o privilégio de ler no volume anterior desta colecção.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Dez Anos sem Johnny Cash


Passam precisamente  hoje dez anos sobre o falecimento de um dos maiores nomes da música americana do século XX, Johnny Cash, o "Man in Black". Descobri Cash algo tardiamente, mas fiquei absolutamente fascinado com os álbuns da fase final da sua carreira, a série "American Recordings", produzida por Rick Rubin, em que Cash cria versões definitivas de temas de gente tão díspares como U2, Nick Cave, Depeche Mode, Sting, ou Nine Inch Nails.

Apesar das excelentes interpretações de Joaquin Phoenix e de Reese Witherspoon (que até lhe valeu um Óscar) o filme Walk the Line, talvez por ser muito centrado na relação dele com June Carter, não me parece que tenha captado bem toda a complexidade de Johnny Cash. Algo que Cash: I See a Darkness, a biografia em Banda Desenhada do Man in Black escrita por Reinhard Kleist em que a vida e as canções de Cash se fundem e confundem, conseguiu bastante melhor. Não por acaso, a primeira edição da segunda série do programa Planeta Calafrio, um programa radiofónico sobre BD que fiz na Rádio Universidade de Coimbra, com a Maria Santos, foi dedicada a Johnny Cash e à novela gráfica de Kleist. Além da capa do livro, deixo-vos com o autógrafo que Kleist me fez em Angoulême e com o belíssimo  videoclip de Mark Romanek para a versão que Johnny Cash fez do Hurt dos Nine Inch Nails. Uma versão tão poderosa que o próprio Trent Raznor reconheceu que a canção deixou de ser dele para pertencer a Johnny Cash.



sexta-feira, 6 de setembro de 2013

DC Comics UNCUT 9 - Batman: saga de Ra's Al Ghul


Este volume, que é um dos meus favoritos da colecção, deveria logicamente ter publicado primeiro do que Herança Maldita, o vol 2 da colecção, cuja acção não só é posterior, mas deriva directamente dos acontecimentos narrados neste volume, mas por razões comerciais, a DC achou melhor publicar primeiro a história em que Batman conhece e treina o seu filho, do que a saga em que conhece Talia, a mãe do seu filho e esse filho é gerado... Por isso, se por acaso ainda não leram nenhum dos volumes, sugiro que comecem por este e só depois leiam o Herança Maldita...


BATMAN CONTRA O DEMÓNIO

Se quisermos encontrar a palavra que melhor define a passagem de Neal Adams e Denny O'Neil pela série Batman, entre os finais dos anos 60 e inícios da década de 70, essa palavra será mudança. Uma palavra que traduz bem o zeitgeist (espírito da época) de uma América a braços com a guerra do Vietname e a ainda a recuperar do pesadelo da morte de Kennedy, que assinalou o princípio do fim do sonho americano, que o escândalo de Watergate que levou à demissão de Nixon em 1974, enterraria de vez.
Nessa América em mudança, é natural que os jovens leitores já não se identificassem com a versão kitsch do Batman que marcou a década de 60, de que a série televisiva com Adam West foi o expoente máximo em termos mediáticos. Daí a necessidade de criar um novo herói para uma nova era, um Batman mais sombrio e realista, na linha da dura realidade que rodeava os leitores. Julius Schwartz, o editor da DC encarregue da personagem, sabia quem eram os homens certos para esse trabalho e optou por reunir novamente o escritor Denny O'Neil com o desenhador Neal Adams, depois da revolucionária passagem da dupla pela série Lanterna Verde/Arqueiro Verde, de que poderemos ler uma selecção dos melhores episódios no próximo volume desta colecção.

Se Adams, com o seu traço único, que alia um realismo fotográfico a uma planificação dinâmica e espectacular, já tinha desenhado e modernizado a imagem de Batman na série The Brave And the Bold, ilustrando histórias de Bob Hanney, O'Neill, que começou a sua carreira como repórter especializados em assuntos criminais, vai introduzir uma série de alterações na vida da personagem, que farão com que os leitores percebam que estão perante um novo Batman, um Batman diferente. Para além do tom das histórias, mais sombrias e realistas, essas mudanças passam pela ida de Robin para a Universidade de Hudson, colocando fim ao duo dinâmico e levando Bruce Wayne a trocar a Mansão Wayne, demasiado grande para ele e o seu mordomo Alfred viverem lá sozinhos, por um luxuoso apartamento com terraço no centro de Gotham. Mas, a mais importante de todas essas mudanças e aquela que nos interessa especialmente foi o aparecimento de um novo inimigo do Batman, um inimigo diferente, sem uniformes vistosos, ou superpoderes, mas com os meios, a motivação e o intelecto que lhe permitem afirmar-se como uma tremenda ameaça para o Cavaleiro das Trevas. Esse vilão é Ra's Al Ghul.
Com um nome de origem árabe, sugerido por Schwartz, que numa tradução literal significa "cabeça do demónio", Ra's Al Ghul revela-se um adversário poderoso, com a perspicácia e os meios que lhe permitem descobrir a identidade secreta de Batman. Um homem a quem o Poço de Lázaro, dispositivo que lhe permite regenerar o corpo, dá uma espécie de imortalidade, e que está obcecado com a sua missão de transformar o mundo decadente que o rodeia num mundo melhor, sem crime, nem poluição. Uma missão que pretende cumprir a todo o custo, independente dos milhões de pessoas que seria preciso sacrificar para tornar esse sonho realidade. E que, embora tenha pelo Batman grande respeito e até admiração, não hesitará em matá-lo, caso o Cavaleiro das Trevas se atravesse no seu caminho.

O nome de origem árabe e o uso do terrorismo como meio de impor a sua ideologia, poderão levar alguns leitores a ver na personagem de Ra’s Al Ghul uma alusão, mais ou menos indirecta, ao terrorismo islâmico, mas esta é claramente uma interpretação abusiva, pois na época o terrorismo não era ainda um tema que tivesse grande impacto no público americano, para além de ser então, tanto na Europa como Médio Oriente, um processo mais colectivo, sem um líder carismático e claramente identificável. Parece-nos pois mais provável a interpretação de Jess Nevins, no livro Heroes and Monsters, que defende que a filiação de Ra’s Al Ghul vem mais de personagens da literatura pulp, como o Dr. Fu Manchu, de Sax Rohner. E a verdade é que Ra’s Al Ghul partilha com o Dr. Fu Manchu uma série de características, para além da origem não ocidental. Ambos são autênticos génios que pretendem a todo o custo moldar o mundo aos seus ideais. Os dois comandam uma rede de assassinos bem treinados, a Liga das Sombras de Al Ghul e os Si-Fan de Fu Manchu. E ambos têm filhas belas e independentes, Talia e Fah So Luee, que se vão envolver romanticamente com os inimigos dos pais, Batman e Sir Denis Nayland Smith  
E a sua filha Tália é outro aspecto que torna Ra’s Al Ghul uma personagem fundamental do universo DC. Uma mulher fatal, tão bela quanto perigosa, que se vai tornar o grande amor de Batman, apesar de muitas vezes estarem em lados diferentes da barricada. E essa história de amor, que as actividades criminosas de Talia e do seu pai, tornam proibido, vem revelar uma dimensão mais humana do Cavaleiro das Trevas, dividido entre o amor e o dever.

Curiosamente, Talia até aparece antes do pai nas aventuras do Batman, salvando a vida do herói numa história publicada em Maio de 1971 no nº 411 da revista Detective Comics, que O’Neil escreveu para os desenhos de Bob Brown e Dick Giordano e que, por uma questão de espaço não incluímos neste volume. E se o nome de Ra’s Al Ghul é aqui referido pela primeira vez, a sua primeira aparição física acontece apenas um mês depois, na história A Filha do Demónio, que abre este volume, em que Dick Giordano passa a tinta os desenhos de Neal Adams, de quem, curiosamente, era o editor na série Deadman. A imagem imediatamente identificável de Ra’s Al Ghul, com a testa larga, ausência de sobrancelhas que acentuam o olhar penetrante, nariz aquilino e lábios finos, é da inteira responsabilidade de Adams, que quis desenhar uma personagem que fosse imediatamente reconhecível, mesmo sem um uniforme colorido. Como refere O’Neil numa entrevista: “ na altura, não tinha nenhuma ideia para o visual dele. Foi uma surpresa quando vi o que Neal tinha feito com a personagem. Mas foi uma surpresa muito agradável.”
Embora o trabalho de Denny O’Neil com Ra’s Al Ghul seja incontornável, tanto nas histórias que escreveu para Neal Adams, como em trabalhos posteriores, como a novela gráfica Birth of the Demon, ilustrada por Norm Bretfogle que explora o passado de Al Ghul, entre a história e a lenda, O’ Neil não foi o único a utilizar a personagem em histórias com grande impacto na mitologia do Cavaleiro das Trevas. Para além de inúmeros exemplos na Banda Desenhada, veja-se a trilogia cinematográfica que Cristopher Nolan dedicou ao Cavaleiro das Trevas, em que Ra’s Al Ghul e a Liga das Sombras têm um papel fundamental, no primeiro e no terceiro filme.

Outro exemplo da importância de Ra’s Al Ghul na mitologia do Batman é O filho do Demónio, a novela gráfica de Mike W. Barr e Jerry Bingham que encerra este volume. Uma história épica, ilustrada de forma dinâmica por Bingham, com os cenários a acção e a grandiosidade dos melhores filmes de James Bond, em que Batman e Ra’s Al Ghul se aliam para derrotar Quain, um fanático religioso que tinha sido responsável pela morte da mãe de Talia e pretendia provocar a 3ª Guerra Mundial. É nesta história que se desenvolve até às últimas consequências o romance entre Batman e Talia. Uma complexa história de amor, finalmente consumado, e que vai dar origem a um filho.
Filho de cuja existência Batman só terá conhecimento anos mais tarde, quando Grant Morrison decide reintegrar Damian - assim se chama a criança que Talia vai criar e educar como um guerreiro - na continuidade oficial do Cavaleiro das Trevas. Isso aconteceu numa história que os leitores puderam acompanhar na saga Herança Maldita, já publicada no volume 2 desta coleção.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Ainda está nas bancas um dos melhores Tex Gigante de sempre


Por regra, os meus textos destinados ao Diário As Beiras, saem primeiro no jornal, antes de serem publicados em versão alargada neste blog. Mas no caso do texto desta semana, dedicado ao Tex Gigante nº 25, que termina o seu percurso nas bancas no início da próxima semana, decidi abrir uma excepção para evitar que muitos dos meus leitores só se apercebam da saída deste belíssimo livro, quando ele já não estiver à venda.
E a verdade é que é mesmo um crime perder o melhor Tex Gigante que já li e que, por isso mesmo, já tinha feito parte da lista das minhas Melhores Leituras de 2011, apresentada neste blog em Janeiro de 2012.

Escrito por Gianfranco Manfredi, o argumentista do excelente Western “Mágico Vento”, outra bela série da Bonelli que também chegou a Portugal via edição brasileira da Mythos, o argumento de “Na Trilha do Oregon” surpreende pelo destaque pouco habitual dado às personagens femininas. Personagens essas que, por regra, brilham pela ausência no universo do ranger criado por G. L. Bonelli e Aurelio Galleppini, mas que aqui estão no centro da bem urdida intriga, centrada no percurso de uma caravana de mulheres, que se dirige para o Oregon, onde as esperam os futuros maridos e que se cruzam com Tex e Kit Carson, que seguem o mesmo caminho, em perseguição de um assassino fugitivo.  E, ao contrário do que seria de esperar, estas mulheres não são meras figurantes, mas personagens bem definidas, tal como o assassino que os heróis perseguem e que se revela uma figura trágica, por quem o leitor acaba por sentir alguma piedade.
Mas, apesar do belo argumento de Manfredi, o melhor deste Texone é o desenho do argentino Carlos Gomez. Numa coleção por onde já passaram grandes nomes da BD mundial, como Magnus, Joe Kubert, Jordi Bernett, Victor De La Fuente, Manfred Sommer, Guido Buzelli, ou José Ortiz, o traço elegante e pormenorizado de Gomez destaca-se ainda assim, confirmando o extraordinário talento do desenhador argentino, praticamente desconhecido em Portugal, mas muito popular em Itália graças à série “Dago”, que desenhou entre 1997 e 2008. Série que narra as aventuras de um nobre veneziano do século XVI que se torna mercenário, “Dago” foi o maior sucesso da Eura Editoriale, a grande concorrente da Bonelli nos quiosques italianos, muito por força do desenho de Gomez.

Tendo começado a sua carreira como assistente dos desenhadores argentinos Lito Fernandez e Horacio Lalia, Gomez saltou para a ribalta em 1997, quando substituiu Alberto Salinas, o filho do mítico José Luis Salinas, o desenhador de Cisco Kid, na série “Dago”, escrita pelo prolífico argumentista Robin Wood. Habituado a desenhar cavalos na série “Dago”, Gomez revelou-se uma escolha inspirada para desenhar um Western como Tex. Mas não é só nos cavalos que o desenhador argentino brilha, pois o desenhador argentino revela-se exuberante no tratamento dos cenários, notável na expressividade dos rostos e extraordinariamente eficaz nas cenas de acção. Com um traço de raiz clássica, que alia a visceralidade e o dinamismo à elegância, Gomez revela-se à altura dos grandes desenhadores do seu país, como Solano Lopez, José Muñoz, Alberto Breccia, Enrique Breccia, Eduardo Risso ou Horacio Altuna.
  Em resumo, se a coleção Tex Gigante merece sempre atenção, este “Na Trilha do Oregon” é mesmo a não perder, para quem gosta de uma história bem contada, servida por um excelente desenho realista de um artista argentino que se revelou um mestre dos fumetti, a BD italiana.
(“Tex Gigante nº 25: Na Trilha do Oregon”, de Gianfranco Manfredi e Carlos Gomez, Mythos Editora, 242 pags, 10,00 €)
Versão integral do texto a publicar no Diário As Beiras de 7 de Setembro de 2013