sábado, 31 de agosto de 2013

DC Comics UNCUT 8 -Crise nas Terras Infinitas (Parte 2)



MUNDOS VIVERAM, MUNDOS MORRERAM, E
O UNIVERSO DC NUNCA MAIS FOI O MESMO...


“Só uma crise — verdadeira ou percepcionada — produz verdadeiras mudanças. Quando essa crise ocorre, os actos dependem das ideias em circulação. Acredito que essa é a nossa principal função: desenvolver alternativas às políticas vigentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível passe a politicamente inevitável.”

As palavras são do economista Milton Friedman, mas aplicam-se perfeitamente àquilo que sucedeu ao Universo DC na década de 80. Com uma mitologia cada vez mais convoluta e um historial cada vez mais insondável para novos (e mesmo alguns velhos) leitores, havia necessidade premente de uma arrumação a fundo, de forma a energizar um multiverso que começava a vergar-se debaixo do próprio peso. Seria necessária uma «crise» sem precedentes para levar a cabo as «mudanças» de que o panorama da DC claramente necessitava. Os «actos» basear-se-iam nas «ideias em circulação», ou seja, o riquíssimo manancial de personagens e mundos disponíveis, e as «alternativas às políticas vigentes» passariam por uma mudança de paradigma, a partir da qual a confusa tapeçaria de múltiplos universos e infinitas terras seria unificada. O «politicamente impossível» de mudar a face de toda uma editora a partir de uma série limitada tornou-se «politicamente inevitável», e assim surgiu a Crise das Terras Infinitas, a que este segundo volume dá dramática conclusão. Quem percepcionou a crise vivida pela DC Comics e a solucionou com outra foi Marv Wolfman, que em criança idealizara um épico com todos os seus super-heróis favoritos, e que realizou esse sonho ao escrever um dos mais importantes capítulos da história dos comics.

Tudo começou com uma personagem circunspecta com o ainda mais circunspecto nome de «Bibliotecário», criado por um jovem Marv Wolfman. No imaginário do futuro argumentista, o Bibliotecário era um corretor de informações, vivia num satélite que orbitava a Terra e vigiava sorrateiramente os super-heróis, vendendo a informação aos inimigos deles. Seria este o malfeitor para a saga idealizada por Wolfman durante a sua infância, na qual congeminara uma aventura com todos os heróis do passado, presente e futuro da DC. Uma ideia que não foi fácil de vender, pelo que Wolfman rapidamente tirou daí o sentido quando se tornou argumentista profissional no final dos anos 60, e tanto o Bibliotecário como a ideia da saga permaneceram no Limbo das criações durante mais uma década. Não foi senão na esteira do tremendo sucesso dos Novos Titãs — a série que começou a delinear o nome de Wolfman no panteão dos argumentistas de topo do seu meio — que a personagem foi por fim apresentada aos leitores com o novo nome e identidade de «Monitor» em The New Teen Titans #21 (EUA, 1982), onde aparece nas sombras como um vilão misterioso. Alguns anos mais tarde, face às provas dadas de Wolfman enquanto autor de sucesso e à inegável necessidade de revigorar as propriedades intelectuais da DC, a ambiciosa saga foi então aprovada. Finalmente, o Bibliotecário/Monitor viria a cumprir o propósito que lhe fora destinado, embora com uma finalidade bem diferente da originalmente idealizada...

Uma vez aprovado o ambicioso projecto de uma «maxi-série» para fazer tábua rasa do passado, presente e futuro de todos os cantos do Universo DC, Wolfman e o seu companheiro de armas George Pérez viram no Monitor o veículo perfeito para levar a cabo essa operação. A personagem teve direito a várias aparições ao longo de um monstruoso prelúdio de 40 números agourentos, espalhados por praticamente todas as publicações da editora enquanto se preparava os leitores para a Crise iminente. Misterioso, insondável e com acesso aos mais bem guardados segredos do multiverso, seria ele o catalisador de uma crise sem precedentes que viria a mudar o panorama da DC durante mais de vinte anos. O panorama com o qual o próprio Wolfman crescera a ler, e que iria alterar decisivamente através de uma história que idealizara desde criança, embora com repercussões que dificilmente poderia ter imaginado. A começar pelo nobre sacrifício do Monitor, o «vilão» que no volume anterior desta presente colecção deu a vida para salvar os mundos que ainda não tinham sido destruídos pela investida da sua contraparte maligna: o Antimonitor. O «Bibliotecário» fechava assim o círculo, mas o seu legado viria a perdurar, surgindo inclusive vinte anos mais tarde noutra forma e numa outra crise, e mesmo morto tornou-se literalmente parte indelével da própria estrutura do Universo DC.

E assim chegamos a este segundo volume de Crise nas Terras Infinitas, no qual a parada está mais alta do que nunca e as terras sobreviventes se vêem à mercê do terrível poder do Antimonitor, uma ameaça de tamanha capacidade destrutiva, que nem mesmo o poder conjunto dos heróis de vários mundos parece ser o suficiente para o impedir. Numa história desta natureza, face a tão poderoso algoz e com os universos a ruírem em redor dos super-heróis desesperados, seria inevitável que houvesse algumas baixas. E há, de facto, o que tornou a série mais marcante ainda, pois a morte de super-heróis era algo de extremamente incomum à época. Normalmente, esse destino era reservado a companheiros e personagens secundárias e, embora a Crise das Terras Infinitas tivesse deixado bem claro desde cedo que ninguém estava a salvo e que o fim do universo como os leitores o conheciam estava próximo (só no volume anterior, a contagem de corpos de heróis e vilões ia já nas dezenas), ninguém teria conseguido prever o destino de duas das mais emblemáticas figuras dos comics.

No espaço de dois números (Crisis of Infinite Earths #7-8, 1985) um dos chamados «Sete Grandes» da Liga da Justiça e uma das mais queridas personagens da DC são também eles forçados a fazer o derradeiro sacrifício em prol dos seus companheiros e do que resta do multiverso. O choque da parte dos leitores foi tremendo e as mortes desses dois heróis ficaram imortalizadas como dois dos momentos mais dramáticos e memoráveis da história da DC Comics. Uma delas teve mesmo repercussões duradouras e significativas, que se fizeram sentir décadas mais tarde, mesmo no universo renovado pós-Crise — o termo que, a par de «pré-Crise», passou a situar cronologicamente a vasta história deste universo — e perdurou até ao recente advento dos Novos 52, a mais rasa das tábuas até à data... Mas essa é uma história para outro editorial.

A Crise nas Terras Infinitas foi um tremendo sucesso a todos os níveis, dando início a uma nova geração de histórias e actualizando para uma nova era o panteão dos mais famosos super-heróis do mundo. Também popularizou e abriu definitivamente o precedente para o chamado evento transversal (crossover), que desde então se tornou num dado adquirido da indústria: um evento anual a larga escala, que influencia de uma forma ou de outra quase todas as publicações de uma editora enquanto decorre, e no qual heróis morrem ou o status quo é drasticamente alterado — pelo menos durante algum tempo. Essa premissa foi cumprida a preceito pela Crise nas Terras Infinitas e as consequências foram consideráveis, deixando marcas tão profundas, que mais tarde acabou por ser encaixada como a primeira parte da chamada Trilogia do Multiverso, à qual se seguiram a Crise Infinita (2006) e a Crise Final (2008). As três formavam assim um tríptico que consistia da morte do multiverso, a reconstrução do multiverso e a saga final do multiverso, por essa ordem. Apesar dos vinte anos que separam a primeira Crise das restantes duas (com um breve seguimento em 1994 em Zero Hora: Crise no Tempo, no qual se rectificou a díspar cronologia do Universo DC, que ficara comprometida aquando da fusão dos universos), e tal como o leitor irá perceber no final deste volume, o último capítulo da saga deixa de facto indícios que permitiam margem de manobra a suficiente para dar seguimento ao épico. Isto porque, pese embora a inegável finalidade dos eventos que ocorrem nos dois volumes da saga, muita coisa fica em aberto.

Dito isto, o legado mais duradouro da Crise vai bem além da sua classificação como talvez a mais marcante e bem arquitectada reestruturação de um universo ficcional nos comics, a derradeira sublimação do mito apocalíptico como sacrifício necessário para a renovação, e do potencial de novas histórias que despertou. Afinal, esta «maxi-série» introduziu também de forma épica e empolgante novas formas de as histórias de super-heróis interagirem com os seus contextos históricos e com a sua audiência, explorando o seu próprio historial com laivos metatextuais e introspectivos que mais tarde viriam a ser recuperados e aprofundados na Crise Final, entre outras obras de relevo. Não será, portanto, grande exagero dizer que, com este volume, o leitor tem nas suas mãos um pedaço da história, não só da DC Comics, mas de toda uma indústria que nunca mais foi a mesma desde então.

FILIPE FARIA

terça-feira, 27 de agosto de 2013

DC Comics UNCUT 7 - Crise nas Terras Infinitas (Parte 1)



Embora a partir do volume 6, os editoriais tenham sofrido poucas e nenhumas alterações por parte da DC, decidimos continuar a divulgá-los neste blog, até porque em alguns casos, aproveitámos para acrescentar algumas coisas que não couberam na versão impressa, que tem um limite rígido entre os 8.000 e os 9.000 caracteres. Aqui fica pois o texto do José de Freitas para o Volume 1 da Crise nas Terras Infinitas, um dos títulos mais aguardados pelos leitores.

No cruzamento das estradas infinitas

Hoje em dia, a palavra Crise para um leitor da DC significa exactamente a saga que o leitor tem neste momento em mãos, a Crise nas Terras Infinitas. Mas ao longo das décadas, houve muitas outras Crises, que ajudaram a consolidar um dos aspectos mais marcantes do universo DC, o multiverso dos super-heróis que está na origem desta saga.

Em 1961, na história Flash of Two Worlds (Flash#123, Set. 1961 USA), as barreiras entre mundos quebravam-se. O Flash conseguia atravessar as dimensões e chegar a uma outra Terra, onde encontraria outro Flash, o Flash da Golden Age dos comics, dos anos 40. Baptizada Terra-2, os leitores descobririam rapidamente que nessa Terra os heróis da Terra-1, o mundo em que decorriam as aventuras que a DC publicava então, eram personagens de ficção para os heróis da Terra-2. A DC descobria assim uma solução brilhante para explicar porque razão os heróis cujas aventuras então contava não tinham envelhecido, ou tinham mudado de personalidade ou poderes: as aventuras dos anos 40 tinham decorrido num mundo paralelo, diferente do actual. Ao mesmo tempo, esta solução permitia à DC reutilizar muitas dessas personagens antigas, ressuscitando os heróis da Golden Age, o que inaugurou a época das Crises - números especiais que saíam anualmente e em que se juntavam os super-heróis da Terra-1 com os da Terra-2. Assim, logo em 1963 era lançada a história Crise na Terra-1 nas páginas da revista Justice League of America #21, a que se seguiria uma Crise na Terra-2 no número seguinte. E no ano seguinte a Crise saltaria para a Terra-3 - baptizada o mundo mais perigoso de todos, porque os heróis que os leitores conheciam tão bem eram aqui vilões!

E o número de Terras iria crescendo, lentamente formando um vasto multiverso em que era possível encontrar as variações mais incríveis e por vezes fantasiosas. Nalgumas Terras a DC instalou outros super-heróis que não pertenciam originalmente ao seu universo, e que tinha absorvido através da aquisição de outras empresas. Noutros casos, os conceitos foram ainda mais longe. Na Terra-2, os heróis da Terra-1 eram personagens de ficção (e vice-versa na Terra-1), mas e os autores? Quem eram? Pouco tardou para que os próprios autores da DC aparecessem nalgumas destas histórias, com ramificações filosóficas e meta-ficcionais aparentes. O Flash é atirado para a nossa Terra real, e procura "o único homem neste mundo que será capaz de acreditar em mim e ajudar-me, o editor daquela revista de comics do Flash"! O multiverso expandia-se como uma função de onda quântica, explorando todos os estados possíveis dos comics, qual gato de Schrödinger, ao mesmo tempo morto, vivo, e todos os estados intermédios! Mas uma tal explosão de criatividade trouxe consigo vários problemas, e o multiverso estava só à espera de aparecer um observador capaz de colapsar essa onda de mundos, de lhes dar um estado determinado, de decidir se o gato estava morto ou vivo.

Esse colapso da função de onda do universo DC viria em 1985, pela ocasião do 50º aniversário da editora, num evento colossal, a Crise que têm nas mãos, já não Crise da Terra-2 ou Terra-3, ou mesmo da Terra-8, mas Crise nas Terras Infinitas! A continuidade do universo DC tinha atingido uma complexidade tremenda, e para um leitor novo podia parecer demasiado avassaladora. Um único universo já representa um "mundo" de dificuldades, quanto mais quando esse mundo se multiplica por inúmeros mundos paralelos. Para além disso, todas estas Terras eram por vezes usadas para justificar histórias menos lógicas, ou como dei ex machina capazes de resolver qualquer dificuldade. O herói morria no início da história, mas o final revelava que era só um duplo de uma das Terras paralelas, por exemplo. Conseguir manter uma continuidade de heróis, com histórias que vinham desde antes da Segunda Guerra Mundial, mas se espalhavam por mundos paralelos, começava a ser uma tarefa hercúlea. A DC decidiu então actualizar o seu universo, criando um mega-evento que iria reorganizar toda a sua continuidade.

O trabalho de criar esta história recaiu sobre o argumentista Marv Wolfman e o artista George Peréz, dois dos nomes maiores da DC, que a completaram sob a forma de uma série de doze números. Nascido em 1946, Wolfman começou a trabalhar para os comics no final dos anos 60, com algumas histórias para Teen Titans da DC, antes de trabalhar durante os anos 70 para a Marvel, tanto como escritor, como editor. Ficou particularmente conhecido pelo seu trabalho em Tomb of Dracula, em colaboração com Gene Colan, ainda hoje considerado um dos melhores comics de terror de todos os tempos. Nos anos 80 regressou à DC, onde voltou a escrever histórias para os Teen Titans, que se tornaram num dos grandes sucessos da editora. Foi aqui que iniciou a sua colaboração com George Pérez. Pérez está indelevelmente ligado à Crise nas Terras Infinitas que o estabeleceu como talvez o maior desenhador de super-heróis da sua época - com ênfase na metade Super da palavra. Pérez nasceu em Porto-Rico em 1954, no seio duma família humilde que se mudou depois para Nova Iorque. Durante os anos 70 estreou-se nos comics em títulos da Marvel, antes de começar a desenhar a série Teen Titans com Wolfman. Foi o seu trabalho nesta série que o estabeleceu e lhe deu fama. Quando os dois foram recrutados para escrever e desenhar a Crise nas Terras Infinitas, a arte de Pérez explodiu de criatividade e atingiu uma escala grandiosa raramente vista nos comics de super-heróis. Ainda hoje os seus desenhos continuam a servir de verdadeira bitola de comparação para todas as histórias à escala cósmica. Pérez está também para sempre ligado à Mulher Maravilha, já que na segunda metade dos anos 80 ajudou a relançar e a recontar a origem desta heroína. Ao longo das décadas seguintes, ambos os autores continuaram a estar ligados ao universo dos super-heróis, com Wolfman a passar também cada vez mais tempo a escrever para a indústria da animação e do cinema, e Pérez a trabalhar em inúmeros projectos de super-heróis, dentre os quais podemos destacar o célebre crossover Liga da Justiça/Vingadores. São dois dos nomes maiores da banda-desenhada americana, e têm a seu crédito dezenas de histórias, personagens e aventuras de entre as mais marcantes de sempre.

A Crise nas Terras Infinitas arrancaria quase um ano antes da mini-série, com o surgimento do Monitor, uma estranha personagem quase omnisciente, que fez breves aparições em muitas histórias da DC ao longo dos meses. Tratava-se duma estratégia original que estabeleceu o carácter misterioso do Monitor e a sua importância. O Monitor era o oposto do Anti-Monitor, o vilão da série, cujo propósito era nada mais, nada menos, do que a destruição de todo o Multiverso, a cuja origem ambos tinham assistido. E para impedir essa destruição, os heróis viajariam até aos fins do tempo, e até ao nascimento do universo, e teriam que se sujeitar por fim ao colapso de infinitas dimensões num só universo, que se transformaria finalmente no único universo dos super-heróis da DC. Toda a continuidade da DC seria reajustada, por vezes retroactivamente. O multiverso anterior, com os seus mundos paralelos infinitos, tinha sido um erro cósmico causado por uma interferência aquando da sua origem, e agora tudo tinha voltado à "normalidade". Esta explicação serviu para racionalizar muitas das decisões editoriais tomadas pela DC, em que algumas personagens desapareceram, outras colapsaram várias encarnações numa só, com uma origem nova, outras saltaram da Terra-2 para a Terra-1 e assim por diante, e as próprias memórias dos sobreviventes se reajustaram a esta nova realidade. Dizemos “sobreviventes”, porque alguns dos maiores super-heróis da DC morreram nesta saga, como veremos no segundo volume.

É impossível exagerar o impacto e a importância desta saga, não só no universo da DC, mas em todo o género dos comics de super-heróis. Foi uma das primeiras vezes em que as decisões editoriais conscientes dos autores, de transformar um universo de modo a reorganizá-lo radicalmente, foram postas tão à vista, mas sem que isso prejudicasse a qualidade da história. Crise nas Terras Infinitas foi assim certamente a melhor prenda que a DC podia ter recebido, e oferecido aos seus leitores simultaneamente, pelo seu aniversário de meio-século: uma saga que lhe proporcionou o fôlego para encarar o meio-século seguinte com confiança e segurança, e com um universo coerente e acabado de renascer. E as histórias fenomenais que uma nova geração de autores criou para a DC no seguimento da Crise, recontando as origens dos maiores heróis de todos os tempos para uma nova geração de leitores, são disso a maior prova.

José Hartvig de Freitas

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

DC Comics UNCUT 6 - Mulher-Maravilha: Quem é a Mulher-Maravilha?


Se nos textos anteriores, a DC se limitou a "sugerir" alterações nas partes consideradas problemáticas dos textos, no caso do editorial da Mulher-Maravilha que vão poder ler, o texto foi considerado completamente inadequado e totalmente impublicável, começando logo pelo título... mas a verdade é que o Filipe Faria até conseguiu aproveitar boa parte do texto original, retirando naturalmente todas as referências às preferências sexuais de Marston. É a versão original do texto que ia provocando uma síncope aos advogados da DC que a seguir se publica.

BALAS, BRACELETES E BONDAGE

EMBORA PARTE INTEGRANTE DA TRINDADE DOS HERÓIS DA DC (NA QUAL INVARIAVELMENTE FIGURA EM DESTAQUE, DEVIDAMENTE ACOMPANHADA PELOS OUTROS DOIS ÍCONES SUPER-HOMEM E BATMAN), NÃO SERÁ INJUSTO DIZER QUE A MULHER-MARAVILHA É BASTANTE MENOS CONHECIDA E COMPREENDIDA QUE OS SEUS DOIS COMPANHEIROS PELO PÚBLICO EM GERAL
O que não é de admirar, tendo em conta que os puristas da personagem — que goza da afeição de alguns dos mais ferrenhos e dedicados fãs do mundo dos comics — consideram que a maior parte dos autores que escrevem sobre a Mulher-Maravilha também não a compreendem nem sabem tratar com a devida justiça. Em defesa destes autores, há que dizer que a personagem tem origens no mínimo conturbadas, debate-se com uma série de contradições que estão na base do seu ser e, directamente ou por tabela, sofreu talvez o maior número de crises de identidade de qualquer outro super-herói: embaixadora, pacifista, guerreira, símbolo sexual, deusa, porta-estandarte do feminismo, ícone americano, virgem imaculada e mandatária de práticas sexuais alternativas. Quer sejam ou não actualmente reconhecidas, todas estas facetas em nada facilitam a tarefa de ir ao cerne da questão essencial à abordagem convincente a qualquer figura fictícia: quem é esta personagem? Quem é, afinal de contas, a Mulher-Maravilha?

Criada em 1941 pelo psicólogo e escritor William Moulton Marston, que sentia haver uma lacuna por preencher no meio dos comics, a Mulher-Maravilha foi concebida como um novo tipo de super-herói: uma mulher que triunfaria, não através da violência, mas do amor. Para criar a personagem, Marston inspirou-se em Elizabeth, a sua esposa, e Olive Byrne, a amante que com eles vivia numa relação polígama. Baseada nas características a que essas duas mulheres emancipadas davam corpo — e mesmo no guarda-roupa e nos acessórios que uma delas usava, segundo reza a história — a Mulher-Maravilha seria, segundo Marston, propaganda psicológica para um novo tipo de mulher que, a ver dele, deveria mandar no mundo (Marston especializara-se em Estudos de Género, e uma das suas teorias defendia que os EUA se tornariam num matriarcado). Uma heroína logo à partida pouco convencional, portanto.

Nessa génese reside logo uma das primeiras contradições inatas que caracterizam a personagem: Marston quis criar uma super-heroína por achar que a falta de força e poder dos arquétipos femininos tinha como consequência o facto de as raparigas já nem quererem «ser raparigas». Dessa forma, não desejariam ser ternas, submissas e pacíficas, as qualidades que, segundo Marston, eram desprezadas devido à sua fraqueza inata. A solução passaria, portanto, por criar uma personagem feminina que tivesse a força do Super-Homem e a complementasse com os encantos de uma mulher bela e sã de espírito, ensinando dessa forma às jovens raparigas as virtudes da submissão através de uma heroína insubmissa, cujo tremendo poder as deixaria mais aberta à ideia de serem... submissas. E não só: originalmente, a Mulher-Maravilha era Diana, princesa de uma tribo de amazonas que residiam num matriarcado na chamada Ilha Paraíso, onde homem algum alguma vez assentara pé. Além de ser a campeã de uma raça de mulheres já de si detentoras de atributos físicos e psíquicos sobre-humanos, Diana fora moldada a partir de argila por Hipólita, rainha das amazonas, e a deusa Afrodite concedera-lhe vida — uma história com assumidos paralelos com a de Pigmaleão, rei de Chipre, que esculpiu a mulher ideal e desejou de forma tão ardente que ela vivesse, que Afrodite se compadeceu dele e concedeu vida à estátua. Em suma: uma forma de vida artificial com super-poderes, nascida num berço dourado e criada numa sociedade isolacionista deveria inspirar jovens raparigas a quererem «ser raparigas». Mas adiante.

Quando um avião americano se despenha na Ilha Paraíso, Diana salva o piloto, naquele que é o seu primeiro contacto com um homem, e apaixona-se por ele, voluntariando-se e ganhando posteriormente o direito de o levar de volta ao «mundo do Homem», ao vencer um desafio decretado pela sua mãe. A princesa segue então com o piloto para os EUA, onde ganha pela primeira vez o cognome de «Mulher-Maravilha» e onde se torna num ícone americano, vestida a rigor (ou despudor, a avaliar pelo código de vestuário que lhe foi subsequentemente imposto, cobrindo as suas costas descaradamente expostas) com as cores da bandeira ao combater forças nazis e, ocasionalmente, super-vilões ao lado do seu amado. As suas aventuras cedo lhe mereceram um lugar na Sociedade da Justiça da América — o primeiro grupo de super-heróis da história dos comics — na qual, apesar de ser dos membros mais poderosos, recebeu de pronto o não lá muito prestigiante título de secretária. A razão da notoriedade da Mulher-Maravilha não se prendeu, contudo, tanto com o facto de ser uma super-heroína num meio dominado por homens, mas sim com o elemento que desde então tem estado inextricavelmente ligado a toda a mitologia da personagem: o subtexto de bondage. Marston era adepto de práticas sexuais alternativas, e explorou a fundo o conceito de submissão, que implementava regularmente nas histórias da personagem que criou; consta que há um painel da Mulher-Maravilha numa situação de bondage em quase todos os números escritos por Marston, e muitas das capas retratam a heroína aprisionada às mãos de homens, presa com correntes, grilhetas ou corda. Tão transversal era este aspecto à realidade da Mulher-Maravilha, que mesmo os famosos braceletes que a heroína usa (habitualmente para desviar balas, numa pose que se tornou icónica) são símbolos da derrota e cativeiro das amazonas às mãos de Hércules, e foram durante muito tempo conhecidos como os «braceletes da submissão», com os quais as amazonas juraram fidelidade a Afrodite. O que por sua vez deu origem à chamada «Lei de Afrodite», segundo a qual uma amazona perderia os seus poderes caso se visse acorrentada ou atada por um homem(!), algo que sucedeu bastantes vezes ao longo da carreira da Mulher-Maravilha. Consta que a situação chegou a um ponto tal, que foi pedido a Marston que reduzisse em 50-75% o número de situações nas quais a heroína se via acorrentada. Quase caso para dizer que a Mulher-Maravilha era um comic «maroto», portanto.
Mas os inimigos também não escapavam a esse tratamento, e mesmo neste tomo temos várias instâncias de pessoas presas ou atadas em contexto de submissão (conseguirá o caro leitor encontrá-las a todas?). Supostamente, tudo isto estava relacionado com o contexto alargado em que o criador da Mulher-Maravilha via os elementos de bondage e submissão, estabelecendo uma ligação entre eles e as suas teorias acerca da reabilitação de criminosos (Marston trabalhara como psicólogo numa prisão). E, diga-se em abono da verdade, no início da carreira a Mulher-Maravilha não era de facto adepta de bater em criminosos e metê-los na prisão, mas sim de os reabilitar. Uma das pedras basilares dessa abordagem era o conceito da «submissão amorosa», segundo a qual a bondade para com outros resultaria em submissão voluntária derivada de ágape, o vínculo que liga duas almas que se compreendem mutuamente, tal como preconizado pelos antigos. Já com os homens a coisa talvez não fosse tão romântica assim, pois os escritos de Marston defendiam a ideia de que as mulheres não só podiam, como inevitavelmente acabariam por escravizar homens através do sexo, dominando-os dessa forma.. É aqui que entra um dos mais conhecidos elementos da Mulher-Maravilha: o Laço da Verdade, mais um elemento de bondage, este com o condão de obrigar as pessoas a dizerem a verdade (apropriado, tendo em conta que Marston, verdadeiro polímata, foi pioneiro da ideia básica por detrás do polígrafo, embora a importância do seu papel na concepção do engenho seja ponto de discórdia). No entanto, durante vários anos não houve qualquer alusão a um «laço da verdade»: era apenas o «laço mágico» ou o «laço dourado», e o seu o único condão era o de obrigar quem por ele era atado a obedecer à pessoa que o prendera. Embora pudesse de facto ser usado para obrigar alguém a dizer a verdade, não deixava de ser essencialmente uma ferramenta de dominação, bem como uma extensão do poder de sedução e coerção feminino que está ao alcance de qualquer mulher, e que Marston tanto invocava como o motivo pelo qual deveriam ser as mulheres a mandar no mundo. O laço apenas viria a ser oficialmente conhecido como o «Laço da Verdade» uns quarenta anos mais tarde, quando a faceta bondage da Mulher-Maravilha estava já reduzida a mero elemento folclórico da sua história. Antes disso, todavia, houve uma série de televisão de culto, com a vistosa Lynda Carter no papel principal (EUA, 1975), que até hoje continua a ser a maior afirmação de notoriedade da personagem. Nesta série, o laço da Mulher-Maravilha obrigava as pessoas a dizerem a verdade, mas de resto não tinha o poder de obrigar ninguém a fazer coisa nenhuma, o que o tornou um objecto um pouco menos sujeito às piadas de índole sexual que durante anos tinham perseguido a Mulher-Maravilha — até porque a personagem já recebera entretanto uma «limpeza» de imagem após passar das mãos de Marston para as de outros autores na década de 50. O feminismo radical tornou-se mais moderado e os elementos helénicos e mitológicos passaram a representar um papel mais importante nas histórias da personagem, cujos poderes se deviam agora explicitamente às bênçãos dos deuses gregos: a beleza de Afrodite, a sabedoria de Atena, a celeridade de Hermes e a força de Hércules. Aqui reside mais uma contradição da personagem: aquela que se queria como o modelo feminino arquetípico a seguir por todas as mulheres era, na verdade, um receptáculo divino, cujos atributos físicos lhe tinham sido concedidos por deidades masculinas, e logo por uma que escravizara a sua tribo em tempos. Uma contradição da qual os autores pareceram cientes, afirmando que Diana era tão sábia quanto Atena e tão bela quanto Afrodite, mas mais forte do que Hércules e mais rápida do que Hermes, num algo chauvinista jogo de semântica. Tudo isso deixou de fazer diferença nos anos 60, altura na qual, salvo algumas excepções, a popularidade dos super-heróis estava em queda. Em resposta ao zeitgeist de então e à popularidade de séries televisivas de espiões como Os Vingadores, a Mulher-Maravilha prescinde dos seus poderes, uniforme e título, assumindo em definitivo a identidade de Diana Prince e tornando-se numa agente secreta à imagem de Emma Peel. Dos seus anteriores elementos restava apenas o ubíquo bondage e os laivos feministas, mas as histórias de guerra e super-vilões deram lugar a aventuras de espionagem, artes marciais e — num claro sinal dos tempos — a abertura de uma butique de acessórios da subcultura mod. Esta fase durou até ao início dos anos 70, quando a Mulher-Maravilha recuperou os seus poderes e voltou à primeira forma, chegando ao ponto de regressar no tempo à 2ª Guerra Mundial, como para matar saudades. Esta reviravolta deu-se muito por culpa da activista feminista Gloria Steinem, que crescera a ler a Mulher-Maravilha e que se insurgiu numa série de artigos e ensaios contra aquilo que via como um rebaixar do estatuto da mais famosa super-heróina de todas. Tudo viria a mudar novamente em 1985, na Crise das Terras Infinitas (também a não perder nesta colecção). Neste evento sem precedentes, a DC Comics premiu o botão «Reiniciar» para todo o seu universo, e a Mulher-Maravilha não foi excepção, vendo novamente alterados vários aspectos da sua história, desta feita pela mão do lendário George Pérez. A origem a partir da argila manteve-se, mas os deuses que concederam os poderes a esta encarnação da personagem eram algo diferentes: a beleza de Afrodite, a sabedoria de Atena, a habilidade de discernir a verdade de Héstia, a perícia na caça de Artemisa e a força de Deméter, que substituiu Hércules — apenas a celeridade de Hermes se manteve como contributo masculino no cardápio divino. Também o papel da Mulher-Maravilha mudou, passando a ser emissária e embaixadora de Temiscira (o novo nome da Ilha Paraíso, baseado na cidade ancestral das amazonas da mitologia grega), com a missão de promover a paz no mundo do patriarca, pronta a lutar por ela, caso necessário. Nova contradição: uma embaixadora proveniente de um meio homogéneo, matriarcal e hermético, que, com o intuito de pregar a paz, vem guerrear para um mundo heterogéneo para além da sua compreensão e sujeitá-lo a ameaças mitológicas que, de outra forma, talvez o tivessem deixado sossegado.

Muita coisa aconteceu à personagem desde então, e este editorial não tem espaço para tanto, mas com o intuito de preparar o leitor para as histórias contidas neste tomo, bastará dizer que, no espaço de quase trinta anos e entre uma série de crises de identidade, a Mulher-Maravilha encontrou uma tribo de amazonas rebeldes no Médio-Oriente, foi substituída, morta, promovida a deusa da verdade, destituída do Olimpo, substituída pela sua mãe Hipólita, forçada a assistir à destruição da Ilha Paraíso e obrigada a matar um homem a sangue-frio para salvar os seus companheiros. Situações complicadas que certamente em nada ajudaram à tarefa de Phil Jimenez e Allan Heinberg, os escribas de serviço nas duas histórias aqui apresentadas. O primeiro é considerado por muitos o discípulo do supra-referido George Pérez, e o seu capítulo Paraíso Perdido explora com sinceridade as consequências de um meio hermético como a Ilha Paraíso abrir as suas portas a pessoas do mundo exterior, ainda que essas pessoas sejam irmãs amazonas de uma outra tribo. O segundo é mais conhecido pelo seu trabalho como argumentista da série televisiva Anatomia de Grey, tendo sido recrutado para dar uma nova demão à personagem após tantos e tão traumáticos eventos, tarefa que não enceta de ânimo leve no capítulo Quem é a Mulher-Maravilha, que dá o nome a este volume.
Quem é ela, então? Ou melhor, o que é a Mulher-Maravilha? Pacifista ou guerreira nata? Porta-estandarte feminista ou símbolo do amor para homens e mulheres em igual medida? Apologista do bondage ou defensora da liberdade? Deusa grega ou estátua de argila com pretensões de humanidade? A resposta é simples: tudo isso. Mais do que qualquer outro super-herói, a Mulher-Maravilha é mais ícone do que personagem, como o prova o facto de que, ao longo de mais de 70 anos de história, houve quatro Mulheres-Maravilha, todas elas presentes neste tomo, e praticamente todos os elementos dessas décadas ainda se fazem sentir de uma forma ou de outra na actual encarnação da heroína. Contraditório? Até pode ser. Mas, da mesma forma que a contradição está enraizada na condição humana, será porventura essa a principal característica que torna mais familiar uma estátua de barro com poderes divinos, e que fez da Mulher-Maravilha uma figura com inegável e duradouro apelo multigeracional. Alguns dirão que a popularidade dela se deve apenas aos seus atributos físicos e indumentária reveladora, mas, num meio como o dos comics, em que todas as mulheres são bonitas e 86-60-86 (para cima, baixo e cima, respectivamente) é necessário algo mais para uma personagem se tornar na mais famosa das super-heroínas. E foi esse «algo mais» abordado neste editorial e explorado nos seguintes capítulos, a par de uma série televisiva de sucesso, o que lhe mereceu o lugar no pódio da Trindade dos heróis da DC.
FILIPE FARIA

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

DC Comics UNCUT 5: Joker: O Último a Rir


No caso da introdução ao volume do Joker, também da minha autoria, as alterações em relação à versão inicial, têm a ver com a questão da criação do Batman, que oficialmente só foi criado por Bob Kane, e com uma referência ao litígio de Alan Moore com a DC na sequência de Watchmen. Ou seja, pouca coisa, quando comparado com outros textos... Curiosamente, esta versão publicada nem é mais politicamente correcta, pois cheguei a escrever uma terceira versão, mas que não chegou a ser mandada para a DC, porque não foi preciso, uma vez que esta segunda acabou por ser aprovada sem quaisquer cortes.

O HOMEM QUE RI


JÁ DIZIA HITCHOCK QUE O SUCESSO DE UM FILME DEPENDIA, E MUITO, DO CARISMA DO VILÃO. E NA BEM RECHEADA GALERIA DE INIMIGOS DE BATMAN, NÃO HÁ VILÃO MAIS CARISMÁTICO DO QUE O JOKER. O IMPREVISÍVEL ARLEQUIM TEM SIDO O PRINCIPAL ANTAGONISTA DO BATMAN AO LONGO DE MAIS DE SETENTA ANOS, MAS NAS DUAS HISTÓRIAS QUE COMPÕEM ESTE VOLUME, O PROTAGONISMO VAI TODO PARA O JOKER, QUE SE ASSUME AQUI COMO A PERSONAGEM PRINCIPAL, ECLIPSANDO O CAVALEIRO DAS TREVAS COM O BRILHO DA SUA LOUCURA.

Criado por Bob Kane, Jerry Robinson e Bill Finger em 1940, o Joker foi o antagonista do Batman na primeira aventura na sua própria revista, Batman # 1, título que surgiu na sequência do sucesso das aparições do Cavaleiro das Trevas na revista Detective Comics, a partir do hoje mítico nº 27. Embora os relatos divirjam quanto à importância de cada um dos autores na criação do personagem, com Bob Kane e Jerry Robinson a disputarem entre si o mérito da criação da imagem do Joker, ambos reconhecem a importância de Bill Finger como argumentista e o contributo decisivo de uma fotografia do actor Corand Veidt no filme The Man Who Laughs, de 1928, baseado no romance homónico de Victor Hugo, para o sorriso rasgado que torna o Joker imediatamente reconhecível.
Presença constante nas aventuras de Batman ao longo de décadas, o Joker chegou a ter direito à sua própria série, em meados dos anos 70. Uma série que durou apenas nove números e na qual defrontou os mais variados adversários, incluindo... Sherlock Holmes. Foi também durante a década de 70 que o Joker voltou às origens em termos de comportamento, deixando de ser apenas um comic relief para se transformar num personagem ameaçador e mortífero, nas histórias de Denny O’Neil e Neal Adams que depois dos delírios kitsch dos anos 50 e 60, trouxeram o Batman e os seus adversários para um caminho mais realista, que possibilitou histórias como as assinadas por Frank Miller na década de 80, ou A Piada Mortal, a novela gráfica de Alan Moore e Brian Bolland que abre este volume, dedicado não a um herói, mas ao principal vilão do Universo DC.

Última história escrita por Alan Moore para a DC, em 1988, pouco antes de cortar relações com a editora devido a divergências sobre os royalties de Watchmen, A Piada Mortal é descrita por Moore, como “apenas uma história de Batman”, mas tanto o desenhador, Brian Bolland, como os leitores, sabem que não é bem assim. A Piada Mortal é uma das mais importantes histórias de Batman de sempre, até pelas consequências que teve na vida de Barbara Gordon, que uma bala do Joker deixa paralisada numa cadeira de rodas, pondo fim à sua carreira como Batgirl, durante mais de 20 anos. Situação que só se alterou em 2011, quando na sequência do relançar das principais revistas da DC, no âmbito da iniciativa conhecida como “Novos 52”, Barbara voltou a andar e pode voltar a vestir a fato de Batgirl.
Exemplo perfeito da articulação harmoniosa entre texto e imagem, com Bolland, que agora se dedica sobretudo à ilustração de capas, a brilhar a grande altura no seu último trabalho de grande folego como desenhador, A Piada Mortal explora a relação entre Batman e o Joker e a forma como funcionam como reflexo um do outro, dando-nos a conhecer os acontecimentos que levaram o Joker à loucura.
Numa sequência de flahbacks magistralmente executados, Moore dá-nos a sua versão da origem do Joker, apresentado como um comediante falhado que se envolve com um grupo de criminosos para ganhar dinheiro que lhe permitam sustentar a mulher e o filho prestes a nascer e que perde a sanidade, na sequência de um dia que lhe corre extremamente mal. Um dia que o deixa viúvo, sem filho e deformado. Um passado trágico que justificaria a sua actuação, mas que o próprio Joker não sabe se é real, pois, como o próprio refere: "as minhas memórias nem sempre são as mesmas... Já que tenho que ter um passado, que seja de escolha múltipla!"
Embora Brian Bolland, por falta de tempo, não tenha podido na altura colorir a história, como pretendia, tendo esse trabalho ficado a cargo de John Higgins, que já tinha colaborado com Moore em Watchmen, em 2008, por ocasião do 20º aniversário da publicação de The Killing Joke, o livro foi reeditado numa edição de luxo, como novas cores digitais de Bolland, mais próximas da sua intenção original e que o leitor português pode apreciar pela primeira vez, pois a anterior edição portuguesa da Devir utilizava as cores originais de John Higgins.
Separadas por mais de 20 anos, as duas histórias que compõem este volume, têm em comum o facto de atribuírem o principal protagonismo ao Joker, que surge sorridente e destacado em ambas as capas. Capas essas em que Batman prima pela ausência. Mas a principal diferença entre a Piada Mortal e Joker, é uma diferença de ponto de vista do narrador. Enquanto Moore nos dava a conhecer as recordações do Joker, o que nos permitia perceber as suas motivações, em Joker, Azzarello opta por ter como narrador um pequeno criminoso, Jonny Frost, que vai servir como motorista do alucinado vilão, transmitindo por isso ao leitor uma perspectiva externa.
Depois da mini-série Broken City, publicada em Portugal pela Devir com o título Batman: Cidade Destroçada, Joker assinala o regresso de Azzarello a Gotham City e ao universo do Batman. Um universo onde, curiosamente, se aventurou pela primeira vez ao lado de Bermejo, na mini-série Batman/Deathblow: after the Fire, que juntava o Cavaleiro das Trevas ao mercenário criado por Jim Lee e Brandon Choi. Desta vez, Batman está muito menos presente (embora a sua sombra paire por todo o livro) mas mantém-se a aproximação realista, mais próxima do film noir do que das histórias de super-heróis, que faz do Croc não um mutante com genes de crocodilo, mas apenas um brutamontes com um sério problema de pele. Do mesmo modo, Harley Quinn a companheira do Joker que tinha surgido inicialmente na série de animação do Batman, num episódio escrito por Paul Dini e Bruce Timm, surge aqui numa versão muito realista e sensual, mesmo que, coisa rara numa personagem de Azzarello, que trabalha os diálogos como poucos autores, não a ouçamos dizer uma palavra… Também o Enigma nos aparece modernizado, trocando o uniforme de licra por um vestuário bastante mais urbano. O próprio Joker, acabado de sair do Asilo Arkham, comporta-se mais como um Senhor do Crime que pretende recuperar o seu território, do que como um simples louco, sem um objectivo lógico perceptível. O que não impede que a sua loucura se manifeste de forma assustadoramente inesquecível, sobretudo na violência exacerbada, que Bermejo traduz em imagens hiper-realistas capazes de perturbar os estômagos mais sensíveis.  
Talvez por o livro ter saído muito próximo da estreia de The Dark Knight, o segundo filme da trilogia cinematográfica que Cristopher Nolan dedicou ao Homem Morcego, houve quem visse no Joker de Azzarello e Bermejo, uma versão em papel do Joker magistralmente interpretado por Heath Ledger no cinema, mas as semelhanças entre o livro e o filme são apenas coincidência, pois Azzarello escreveu a história em 1986, dois anos antes do filme estrear, sem ter tido acesso ao argumento, o que não impede que um desenho que Bermejo fez para o site Batman on Film, em 2006, quando começou a trabalhar no livro, possa ter servido de inspiração aos responsáveis pela concepção visual do filme de Nolan.
  Se Azzarello constrói com grande eficácia uma história extremamente violenta de luta pelo poder, o maior responsável pela visão perturbadora que esta história transmite ao leitor é Lee Bermejo. O desenhador passou quase dois anos a desenhar as mais de cem páginas desta história, mas o resultado valeu a pena, mesmo que em alguns casos seja evidente o uso de referências fotográficas, como numa imagem em que o Joker aparece em contrapicado a apontar um revolver que apresenta grandes semelhanças com um dos mais emblemáticos planos do filme brasileiro Cidade de Deus.
 Alternando na mesma páginas imagens desenhadas a traço, com ilustrações em cor directa, Bermejo, contando com a arte-final de Mick Gray consegue imagens espectaculares, de um realismo perturbador, acentuado pelas cores sombrias de Patrícia Mulvihill, que já tinha sido a colorista de 100 Bullets. E, num livro cheio de pormenores, que justificam sucessivas leituras, não falta mesmo uma homenagem à Piada Mortal, na cena no restaurante italiano, em que o Joker a comer camarões numa mesa rodeado de bandidos, nos remete para uma cena idêntica num dos flash backs da Piada Mortal, só com a grande diferença que, em vez de um jovem inseguro, pressionado por um grupo de criminosos a participar no assalto que vai mudar a sua vida, desta vez é o Joker quem comanda o jogo.    

terça-feira, 6 de agosto de 2013

DC Comics UNCUT 4 - Super-Homem: Pelo Amanhã (Parte 2)


E chegamos finalmente ao primeiro texto introdutório da minha autoria. Texto que teve que sofrer uma série de alterações que, basicamente, passaram pela supressão de quaisquer referências religiosas e aos atentados do 11 de Setembro. "Temas sensíveis" que, na opinião dos senhores da DC, "poderiam perturbar os leitores..." Confiante na falta de sensibilidade dos leitores deste blog, aqui fica a versão integral e não censurada do dito texto. No caso, improvável, de algum leitor se sentir perturbado pelo texto, o meu conselho é para que beba um copo, que isso passa-lhe logo...

O HOMEM QUE VEIO DO ESPAÇO

 SÍMBOLO MAIOR DA REINVENÇÃO PELA AMÉRICA DOS HERÓIS DA MITOLOGIA GREGA, O SUPER-HOMEM, TAMBÉM PELA SUA ORIGEM, DE IMIGRANTE CHEGADO Á TERRA PROMETIDA, É O MAIS AMERICANO DOS SUPER-HERÓIS. ISTO APESAR DE SER UM EXTRATERRESTRE, QUE SENDO SUPER, FOI EDUCADO COMO UM HOMEM E QUE, SOB O DISFARCE DE CLARK KENT, VIVE NO MEIO DOS HOMENS. ESSA DUALIDADE SUPER/HOMEM, KAL-EL/ CLARK KENT É UM DOS ASPECTOS MAIS FASCINANTES DA PERSONAGEM, QUE TEM SIDO OBJECTO DAS MAIS DIVERSAS ABORDAGENS AO LONGO DOS TEMPOS.
 Numa cena do filme Kill Bill vol 2, que se tornou marcante para os fãs da BD de super heróis, Quentin Tarantino desenvolve uma interessante teoria sobre o que torna o Super-Homem único e diferente dos restantes super-heróis. Essa teoria, que Tarantino nos dá a conhecer pela boca de Bill, personagem interpretada de forma inesquecível por David Carradine, consiste no seguinte: “A questão do alter ego, ou identidade secreta, é uma parte importante da mitologia dos super-heróis e aquela que torna precisamente a personagem do Super-Homem mais fascinante. Ao contrário do Batman e do Homem Aranha que, quando acordam são, respectivamente, Bruce Wayne e Peter Parker e só depois de vestirem o fato se transformam no Batman e Homem-Aranha, já o Super-Homem é diferente e único. O Super-Homem não se transforma em Super-Homem. O Super-homem nasceu Super-homem, quando acorda já é o Super-Homem. Clark Kent é apenas o seu alter ego. O S que serve de símbolo ao Super-Homem já estava no cobertor que o embrulhava quando os Kent o encontraram nos destroços da nave. É a sua roupa. Já o fato e os óculos de Clark Kent, são o disfarce que o Super-Homem usa para se misturar no meio de nós. Clark Kent é como o Super-Homem nos vê. Clark Kent é a apreciação do Super-homem sobre a raça humana”.

 Se na mini-série Superman For All Seasons, de Jeph Loeb e Tim Sale, ou na série televisiva Smallville, o enfoque é posto claramente no alter ego Clark Kent, já Brian Azzarello e Jim Lee, na história que se conclui neste volume, dão o protagonismo a Kal-El, o todo-poderoso Super-Homem, fazendo de Clark Kent, apenas uma construção (literal) do Super-Homem, um simples autómato. Um Super-Homem que, ao criar com as melhores intenções uma nova Zona Fantasma, a Metropia, onde se poderia refugiar a humanidade, no caso de um desastre semelhante ao que destruiu o planeta Krypton, acaba por involuntariamente provocar o desaparecimento de um milhão de pessoas, incluindo a sua amada, Lois Lane. Essa catástrofe, a que o leitor não assiste, não deixa de evocar no leitor americano outra tragédia, esta bem real, e que ainda estava fresca na memória colectiva: os atentados de 11 de Setembro de 2001, que abalaram profundamente os Estados Unidos da América.
 Se a escolha de Jim Lee, vindo do sucesso estrondoso de Batman: Hush, para ilustrar esta história, era mais do que óbvia, conhecendo a espectacularidade, pormenor e dinamismo do seu traço e a sua popularidade junto dos leitores, já o mesmo não se pode dizer da opção de Brian Azzarello como argumentista. Conhecido principalmente pelo seu trabalho para a Vertigo, o selo mais adulto da editora DC, na premiada série 100 Bullets, um policial muito negro, com elementos conspirativos, ilustrado pelo argentino Eduardo Risso, o único trabalho de Azzarello com super-heróis até a altura tinha sido Broken City, uma história do Batman desenhada por Risso, muito mais próxima do policial negro do que das histórias de super-heróis. Perante os (anti)heróis tremendamente humanos, sobretudo nos seus defeitos, que marcam as suas histórias anteriores, os leitores esperavam talvez um Super-Homem mais frágil e humanizado, mas Azzarello raramente faz aquilo que os leitores esperam. Um dos problemas de escrever um personagem tão poderoso como o Super-Homem é a dificuldade em criar obstáculos credíveis a esse poder. A Kryptonita, o calcanhar de Aquiles do Super-Homem, foi criada precisamente para ajudar a resolver esse problema. Mas Azzarello não vai por aí, esquecendo a kryptonita, tal como esquece Jimmy Olsen, Perry White, o Daily Planet e a cidade de Smallville, todos os elementos habituais à face humana do Homem de Aço, o seu alter ego Clark Kent. Azzarello opta antes por mostrar um herói poderoso como um deus, capaz de criar mundos, mesmo que depois se esqueça que os criou…

Perante seres tão poderosos, como o Super-Homem, Mulher-Maravilha, e a feiticeira Alcióne, a personagem mais humana e mais tipicamente azzarelliana, é a do misterioso Sr. Orr, um mercenário amoral, ao serviço de uma poderosa corporação. Também na escolha do principal vilão, a opção de Azzarello foi atípica, deixando de fora Lex Luthor, o mais famoso inimigo do Homem de Aço (embora pegue nele pouco tempo depois, na mini-série Lex Luthor: Man of Steel, ilustrada por Lee Bermejo). Para além dele próprio, o principal adversário do Super-Homem nesta história é o General Zod, um kryptoniano como o Homem de Aço, que escapou à destruição do seu planeta-natal por estar aprisionado na Zona Fantasma. Criado em 1961, por Robert Bernstein e George Papp, nas páginas da revista Adventure Comics, o General Zod acabou por ficar mais conhecido graças à interpretação inesquecível de Terence Stamp nos dois primeiros filmes do Super-Homem, realizados por Richard Donner e Richard Lester, não admirando que tenha sido escolhido também para vilão principal do filme Man of Steel, com que Zack Snyder acaba de relançar o Super-Homem no cinema. Depois de uma primeira parte mais expositiva, é a acção que comanda os capítulos finais de Pelo Amanhã, dando oportunidade a Jim Lee de brilhar a alto nível nos combates entre Super-Homem e a Mulher-Maravilha e, principalmente, no combate épico entre o Homem de Aço e Zod.

E se, tal como refere Filipe Faria no editorial do primeiro volume, as referências à religião cristã são diversas e bem evidentes ao longo da história, essa tendência mantém-se nos capítulos finais, com o padre Leone a ser transformado numa arma viva chamada Pilatos, nome do cônsul romano que nada fez para impedir a condenação de Jesus Cristo. Mas também a este nível, Azzarello consegue surpreender o leitor, dando uma interpretação diferente a uma das mais simbólicas imagens da iconografia cristã, a cena da Criação do Mundo, pintada por Miguel Ângelo no tecto da Capela Sistina. Aqui, numa espectacular dupla página do capítulo final, Jim Lee recria, subvertendo-a, a imagem de Miguel Ângelo, com Zod no lugar de Deus, a fechar a mão no último momento, recusando a salvação que o Super-Homem lhe estende.
 Publicado originalmente entre Junho de 2004 e Maio de 2005, nos nºs 204 a 215 da revista Superman, este Pelo Amanhã vinha rodeado de grandes expectativas. Se na altura, as reacções dos leitores foram desiguais e extremadas, face à forma como Azzarello contrariou as suas expectativas, hoje, quase 10 anos depois, o tempo encarregou-se de lhe fazer justiça, e já não restam grandes dúvidas de que estamos perante um verdadeiro clássico, com lugar cativo numa coleção com estas características, que pretende dar a descobrir ao público português as melhores histórias com os maiores heróis da editora DC.