sexta-feira, 12 de julho de 2013

DC Comics UNCUT 1 - Liga da Justiça Terra Dois

Pela primeira vez, este Blog vai publicar um post não escrito por mim. Neste caso, o autor é o José de Freitas que aqui publica a versão integral, não censurada do editorial que escreveu para o 1º volume da Colecção DC Comics, que ontem chegou às bancas com o jornal Público.
Uma das diferenças desta colecção para as anteriores da Marvel, é que o controle editorial da DC é muito mais burocrático e apertado. Por isso, os textos introdutórios que escrevemos para os primeiros cinco volumes, tiveram que sofrer diversas alterações de modo a ficarem mais politicamente correctos e adequados às restrições temáticas impostas pela DC. Essas restrições impedem, por exemplo, referências à Marvel, a questões religiosas, ao 11 de Setembro e um extremo cuidado no uso da palavra "criado" em relação em relação a autores e personagens. Por exemplo, não se pode dizer que o Batman foi criado por Bob Kane e Bill Finger, pois oficialmente a DC não reconhece a Bill Finger esse estatuto de criador...
Mas como a DC diz que os textos originais, embora não adequados a uma publicação oficial da DC, podem perfeitamente ser publicados em blogs e revistas da especialidade, aqui iremos publicar as versões UNCUT desses editoriais, escritos pelo José de Freitas, pelo Filipe Faria e por mim, que tiveram que ser "retrabalhados."


A Liga da Justiça para além do Bem e do Mal


O que é que define a história de super-heróis? Quais são os seus critérios, os seus pressupostos? Quais as regras pelas quais este género se rege? Nascida há quase um século na sua forma moderna, a história de super-heróis mergulha as suas raízes num passado muito mais distante, um passado de mito e de imaginação, e reflecte de certo modo tudo o que de melhor a humanidade pode ser. E também o pior.

Ao longo das décadas em que a história de super-heróis evoluiu, passou por inúmeras fases, e acompanhou o desenvolver da sensibilidade dos seus fãs, as mudanças que as sociedades Ocidentais foram sofrendo, as suas esperanças e desilusões, e o processo de maturidade dos leitores. Desde os inícios até à nossa era pós-moderna, passou de um período ingénuo e algo linear, a um período caracterizado pela sua desconstrução e pelo experimentalismo. Quando relemos muitas histórias dos anos 30, 40 ou 50, ficamos surpreendidos pelas suas regras “básicas”, pelo seu lado ingénuo e por vezes infantil. Nas histórias clássicas de super-heróis, o Bem vence sempre, por exemplo. Ao longo dos anos fizeram-se muitas experiências, e muitos autores se "revoltaram" contra estes pressupostos das histórias de super-heróis, explorando histórias em que os heróis morrem, o Mal vence, o sentido final das sagas remete para o absurdo ou para o caótico e aleatório. Uma evolução muito paralela com a de todos os outros media que nos rodeiam, como por exemplo a televisão. Basta ver a diferença entre uma série antiga como Bonanza, e uma moderna como Deadwood, embora ambas se integrem no mesmo género codificado que é o Western.

E no entanto, as histórias de super-heróis mantiveram sempre o seu pressuposto central, o da vitória do Bem sobre o Mal, ao longo de décadas em que os leitores, no mundo real, foram testemunhas de vitórias objectivas do mal, e em que esse lado ingénuo do género foi sendo cada vez mais posto à prova. Mas o Bem continua a vencer nos comics. Talvez devido ao carácter mítico dos super-heróis, um dos últimos loci literários em que se perpetua a grande tradição do mito heróico. Mas por vezes, lado mítico ou não, por mais que gostemos desta ou daquela saga, essa primazia do Bem deixa por vezes um amargo de boca, e cria mais uma clivagem entre o mundo real e o mundo mítico, que suspende por vezes o gozo puro de ler uma história de super-heróis.
É por isso que Terra Dois de Grant Morrison é uma das mais belas e mais "correctas" histórias de super-heróis jamais escritas, e talvez a homenagem absoluta ao lado mítico do género, conseguindo, quase que numa operação Alquímica, resolver a Coincidentia Oppositorum - a síntese dos opostos! - entre o Bem e o Mal, e reconciliando o leitor com essa regra não-escrita que diz que o Bem vence sempre. E por isso é talvez a melhor história possível para iniciar esta colecção de Herois DC!

Nascido na Escócia, Grant Morrison fez parte da célebre "invasão britânica" dos comics americanos, que levou inúmeros argumentistas da Grã-Bretanha a atravessar o Atlântico e a estabelecer-se nos EUA, onde vieram revolucionar o género. Criados nos fanzines e revistas independentes da Grâ-Bretanha, traziam consigo uma sensibilidade muito diferente, bem mais política e radical, e mais disposta a questionar as bases fundamentais da história de super-heróis. Nomes como Alan Moore, Neil Gaiman, Peter Milligan, Jamie Delano ou Garth Ennis, encontraram nas grandes editoras americanas um lar novo, onde lhes foi permitido "experimentar" com as personagens e universos estabelecidos, ou criar os seus próprios universos, particularmente na Vertigo, o selo "adulto" da DC, onde foram publicadas muitas histórias seminais da BD anglo-saxónica dos nossos tempos. Grant Morrison tornou-se rapidamente numa das super-estrelas dos comics americanos, e ao contrário de muitos outros compatriotas seus (com a excepção de Alan Moore, diga-se) iniciou-se quase de imediato na história de super-heróis - em vez de ter começado por escrever as suas próprias criações - primeiro com Animal Man e Doom Patrol, duas séries a que imprimiu um cunho quase surrealista e algo pós-moderno, e logo depois com o espantoso Asilo Arkham, com arte de Dave McKean. Estes títulos estabeleceram desde logo algumas das preocupações centrais da obra de Morrison, e a sua capacidade imensa de analisar e desconstruir o género dos super-heróis. Morrison também foi ficando obcecado com a ideia da definição dos universos ficcionais dum ponto de vista meta-ficcional, ou seja, da história vista de fora e em que se analisam os pressupostos que a fazem funcionar, mas em que a própria reflexão sobre esses pressupostos e regras interage e influencia a história. A esta obsessão não será alheio o interesse de Morrison pelo oculto e pela magia, e a sua vontade de "contactar universos ficcionais distantes", como o próprio relata no seu livro Supergods, em que analisa profundamente o fenómeno da vida "independente" das criações literárias (e outras)!

Ao longo de uma década e meia, Grant Morrison fez um percurso complexo, que o levou de um ponto em que estava disposto a desconstruir completamente o género dos super-heróis, em criticá-lo, virá-lo do avesso, violar todas as regras que o definem, a um ponto de chegada em que redescobriu um respeito profundo pelos super-heróis, e em que mergulhou nas raizes míticas que o definem, e conseguiu revitalizá-lo duma maneira original. Podemos comparar este percurso de Morrison com o de Alan Moore, para termos uma uma ideia de quão revolucionário ele parece ter sido para um jovem irreverente da geração punk cuja missão inicial era arrasar tudo e chocar os leitores. Alan Moore também assinou comics de super-heróis que fizeram história - basta citar Piada Mortal, que integrará o volume dedicado ao Joker nesta colecção, ou o excelente Whatever Happened to the Man of Tomorrow? - e também ele desde o início pareceu questionar muitas das regras normais deste género. Mas a evolução de Moore levou-o a assinar Watchmen, com desenho de Dave Gibbons, que é nem mais, nem menos, do que a prova de que os super-heróis, como género clássico, com os seus universos e a sua continuidade, são impossíveis e não fazem sentido - e não estamos a falar da impossibilidade de seres com super-poderes, mas sim da incoerência interna deste género literário.

Morrison e Moore afastam-se assim um do outro na sua análise do género. Ao longo dos anos, Morrison foi ganhando novo respeito pelos super-heróis, chegando até de certo modo a lamentar o seu período desconstrucionista. E atira muitas culpas a Alan Moore pela idade das trevas que o género chegou a viver nos anos 80 e 90, e pelo antagonismo que muitos autores pareceram nutrir pelos seus heróis. Mas Morrison também sentiu que depois de Watchmen, passava a ser possível fazer algo diferente, e reflectir de modo mais produtivo acerca dos super-heróis, acerca daquilo que os torna míticos. Em Supergods, escreve "Mas por mais que tentássemos, o super-herói regressou dos mortos com novos poderes, como sempre fez, para se vingar daqueles que o quereriam destruir. Muito mais do que matar o género dos super-heróis, Watchmen tinha aberto caminho para o conceito ser examinado e para o seu potencial ser revigorado. (...) Eu queria mais das minhas ficções. Como sempre fui do contra, cansei-me de me dizerem o que os super-heróis seriam se fossem reais, e de descobrir sempre que eles não eram mais do que nós no nosso pior: venais, corruptos, mistificados e estúpidos. O realismo tinha acabado por ser confundido com um tipo muito particular de pessimismo adolescente e de sexualidade colérica, que me começou a parecer limitativa." O percurso desconstrucionista de Morrison tinha chegado ao fim, e quando em 1996 lhe confiaram a série da Liga da Justiça, relançou-a, imprimindo-lhe um cariz mitológico e arquetípico que teve um sucesso tremendo. A transformação acabou finalmente com este Terra Dois, e Morrison abandonou o seu papel de desconstruidor, para inaugurar a sua fase de reconstruidor de universos de super-heróis.

Voltemos à Liga da Justiça, um dos mais antigos grupos de super-heróis, e um dos mais populares. Surgida pela primeira vez pelas mãos do escritor Gardner Fox, a Liga da Justiça da América é de algum modo a sucessora da Sociedade de Justiça da América, o primeiro grupo de super-heróis de sempre, que tinha sido também criada por Fox com a ajuda do editor Sheldon Maier, e que tinha servido a função de "mostruário" de heróis menos conhecidos da editora. Foi o mítico lendário editor Julius Schwartz que pediu a Fox (com a ajuda do artista Mike Sekowsky) que recriasse a Sociedade dos anos 40, mas Fox decidiu actualizar o seu nome para Liga da Justiça da América. A Liga estreou-se na revista The Brave and the Bold #28 (Fevereiro/Março de 1960), mas a sua imediata popularidade levou a que logo no mesmo ano recebessem a sua própria revista e que se transformassem na espinha dorsal do universo DC.

Schwartz ajudou também à criação de conceitos revolucionários, que transformariam profundamente o universo de super-heróis da DC. A editora queria reaproveitar muitos dos heróis dos anos 40 que já não usava, e em Setembro de 1961 na história Flash of Two Worlds, também com argumento de Gardner Fox, o Flash criado dos anos 50, Barry Allen, descobre que consegue vibrar as suas moléculas a tal velocidade que viaja através das dimensões para chegar a outro mundo, que seria baptizado Terra-2, onde encontra o Flash dos anos 40, Jay Garrick, que lhe tinha servido de inspiração! Nesta Terra-2, o Flash da Terra-1 era uma personagem fictícia, o que não impediu que pouco tempo depois os heróis da Terra-1 se aventurassem com os da Terra-2 em aventuras cada vez mais empolgantes, que a DC publicava em revistas anuais, como por exemplo os team-ups da recém-criada Liga da Justiça (da Terra-1) com a Sociedade da Justiça (que vivia na Terra-2). E a proliferação de mundos continuou, com cada vez mais Terras paralelas em que existiam heróis ou vilões diversos, como por exemplo a Terra paralela em que os super-heróis nossos conhecidos - Super-Homem, Batman, etc... - eram vilões e tinham formado o Sindicato do Crime da América! Esta explosão de criatividade acabou por criar problemas de continuidade, que a DC tentaria mais tarde resolver numa saga épica, que veremos também nesta colecção, a Crise nas Terras Infinitas.

Neste volume, Terra Dois - um título que encerra uma surpresa, como veremos - o argumentista Grant Morrison recupera muitos destes conceitos para escrever uma história que questiona os próprios fundamentos do comic de super-heróis, o que faz dela mais do que uma simples história de super-heróis, embora seja uma muito boa "simples" história de super-heróis. Morrison pega naquela criação antiga do universo DC, o Sindicato do Crime da América - um grupo de super-vilões que são a contraparte maléfica da Liga da Justiça num universo paralelo - e transforma-os nos ditadores absolutos dum planeta Terra alternativo. Neste universo, Lex Luthor, o vilão das histórias do Super-Homem do universo regular da DC, é o único "super-herói" que se opõe ao Sindicato do Crime. Luthor consegue viajar para a Terra da Liga da Justiça para pedir a sua ajuda na luta contra os opressores do seu mundo. Embora os membros da Liga se questionem sobre se essa intervenção é correcta, acabam por aceder, e partir para a outra Terra. Aqui, conseguem triunfar temporariamente e prender o Sindicato no seu satélite espacial, enquanto desfazem a estrutura ditatorial e corrupta com que ele governa o mundo. Mas as coisas não são tão fáceis, e o próprio Coruja - o reflexo negro de Batman neste mundo - percebe que o Sindicato não precisa de fazer nada, e que num movimento cósmico de reequilíbrio, o Sindicato será transportado para o mundo da Liga, para restabelecer a simetria universal. Os heróis descobrem então que no mundo que invadiram, o Mal é mais forte que o Bem, e que está destinado a triunfar sempre no fim, tal como no seu mundo, o mundo regular do universo DC, o Bem triunfou sempre sobre o Mal, desde as primeiras histórias de comics de super-heróis... assim, os dois mundos são o reflexo um do outro, e de certo modo dependem um do outro, num delicado equilíbrio cósmico.
Quando ambos os mundos parecem estar destinados a destruir-se um ao outro, devido à ruptura deste equilíbrio com ambos os grupos de personagens a viajarem para os mundos um dos outros e com uma ameaça final a aparecer, na figura do Brainiac, Batman faz a descoberta simétrica da do Coruja: se não fizerem nada, os super-heróis serão de novo transportados para o seu mundo, enquanto os super-vilões regressam ao seu para derrotar Brainiac - afinal, no seu mundo os maus estão "condenados" a vencer! - numa espécie de princípio de wu-wei - não-acção - Taoista, neste verdadeiro símbolo do Yin e Yang que são os dois mundos, para sempre opostos e para sempre complementares. O lado pós-moderno e relativista da história é posto a nu pelo facto de a Terra Dois do título ser o universo DC normal, e a Terra Um ser aquela em que o Mal triunfa sempre no fim!

Mas por mais que Terra Dois reflicta muitas das preocupações pós-modernas e desconstrucionistas da história de super-heróis moderna, e que ela constitua uma reflexão meta-ficcional sobre elas, é ao mesmo tempo um tour de force maravilhoso: restaura a nossa fé nos clichés da história de super-heróis, permite-nos continuar a aceitar o pressuposto "ingénuo" de que nestas histórias o Bem triunfa sempre, e reconcilia-nos com isso, mantendo a suspensão de cepticismo que é o garante da dimensão mítica destas histórias, ao dar-nos uma explicação meta-ficcional para esses pressupostos, e ao permitir uma reflexão sofisticada e filosófica que "desculpa" a ingenuidade destas histórias! Como diz Julian Darius na sua análise do livro, Terra Dois permite "que os leitores deixem de necessitar que os heróis percam uma luta de vez em quando, para poderem ser mais realistas, e leva-os a reflectir sobre as implicações desses mesmos heróis serem invencíveis, uma reflexão que não é menos sofisticada!"

Terra Dois é maravilhosamente ilustrado por Frank Quitely, um dos nomes grandes dos comics, também ele escocês, e companheiro de longa data de Grant Morrison em muitas sagas. Conhecido pelo pormenor do seu desenho, trabalhou com Morrison em Novos X-Men, a mega-saga da Marvel que ambos assinaram (já publicada em Portugal pela Devir), bem como em Batman and Robin e All-Star Superman, só para citar livros de super-heróis, embora possamos também mencionar o espectacular WE3, também editado no nosso país.

Terra Dois foi a primeira grande obra de Morrison em que ele usou um universo de super-heróis estabelecidos para fazer uma reflexão profunda e meta-ficcional sobre o género. Já o tinha feito com outros títulos (como Flex Mentalo, por exemplo), mas Terra Dois marcou um ponto de viragem na sua percepção deste tipo de histórias. Como diz Metron em World War III, outra saga assinada por Morrison, a Liga mostra-nos uma visão de relance do futuro da humanidade, o futuro a que devíamos aspirar, e compete-nos a nós estar à sua altura. Este é o volume inaugural duma colecção que quer mostrar algo do melhor que se fez na história de super-heróis, no universo DC. Onde as personagens da Marvel são criadas para ser parecidas com pessoas reais, com os seus defeitos e peculiaridades, com os quais os leitores se identificam facilmente, os heróis da DC tendem as ser figuras mais míticas, e funcionam mais como símbolos das muitas facetas da personalidade e comportamento humano. Em 20 volumes, os leitores portugueses poderão poderão tomar contacto com as melhores sagas e os mais conhecidos heróis da DC.

José Hartvig de Freitas

AGRADECIMENTOS - Os meus agradecimentos, primeiro ao próprio Grant Morrison pelo extraordinário livro que escreveu sobre as suas aventuras com super-heróis, Supergods; a Julian Darius, crítico maravilhosamente perspicaz; ao João Miguel Lameiras, e ao meu amigo João Nuno Azevedo, que em muitas conversas acompanhadas de jantar e copos foi realimentando o meu gosto pela DC!

1 comentário:

Optimus Primal disse...

"Novos X-Men, a mega-saga da Marvel que ambos assinaram (já publicada em Portugal pela Devir),"

Mega saga desde quando!!!!?????