quinta-feira, 4 de abril de 2013

Evocando Fred (1931-2013)



Decididamente, os tempos têm sido madrastos para a Banda Desenhada, com o desaparecimento de uma série de autores importantes. Esta semana, para além do português Jobat, chegou a notícia da morte de Fred, o genial criador de Philemon e de Le Petit Cirque. Não sendo uma notícia totalmente inesperada, pois sabia-se que estava bastante doente, não tendo participado na reunião deste ano para os Prémios de Angoulême, em que era presença constante, o choque não é menor.

Tendo-se estreado na BD em 1954, na revista Zero, onde conhece Cavanna e Choron, com quem vai criar a mítica revista Hara-Kiri, a que se mantém ligado até 1966, foi na revista Pilote, então dirigida por René Goscinny, que vão nascer as suas principais criações. com Philemon à cabeça. Para além das histórias que escreveu e desenhou, Fred escreveu argumentos para desenhadores, como Pichard, Alexis e Jean-Claude Meziéres, escreveu e realizou uma série de 40 curtas-metragens para a Televisão francesa e até escreveu letras para algumas canções de Jacques Dutronc, o que não o impediu de regressar sempre à BD.

Bem conhecido em Portugal graças ao Diário de Jules Renard, e aos premiados História do Corvo de Ténis e História do Contador Eléctrico, Fred, que esteve por duas vezes no Festival da Amadora para receber o galardão de Melhor Álbum Estrangeiro, apenas viu publicado no nosso país o primeiro volume da sua série Philemon, de que acaba de sair em França o 16º volume, que Fred, já doente, concluiu expressamente para fechar o ciclo, podendo ser visto como o seu testamento artístico. Além de 15 álbuns de Philemon, recentemente reunidos numas edição integral em 3 volumes, que fez parte dos melhores livros que li em 2012, ficaram por publicar no nosso país, outros trabalhos incontornáveis, como o fabuloso Le Petit Cirque, uma história melancólica e nostálgica de um circo subterrâneo, cujos artistas foram hipnotizados por um mágico louco, que os obriga a actuar todos os dias para um público inexistente.

Se quisermos definir em poucas palavras a série Philemon, podemos dizer que se trata do relato bem humorado das deambulações surreais e oníricas de Philemon e do seu burro Anatole pelas letras do Oceano Atlântico. Uma viagem que  começa quando Philemon descobre uma mensagem dentro de uma garrafa, emergindo de um inocente poço abandonado. Garrafa lançada por Barthélemy, o escavador de poços, preso há mais de quarenta anos na letra A, tendo como companhia Sexta-Feira, um centauro com mau feitio mas óptimo cozinheiro. Personagens principais de uma série, juntamente com o curioso e inocente Philemon e o seu sensato burro Anatole, para além do pragmático pai de Philemon, onde se cruzam as mais delirantes criaturas e que, iniciada em finais da década de 60, se revela a mais perfeita materialização do slogan da revolta estudantil de Maio de 68, que reclamava “a imaginação ao poder”.
Embora sem ser um grande desenhador, Fred era um génio e um poeta, dotado de uma imaginação sem limites. E o universo que criou, apesar de surreal, é de uma lógica inabalável. Se as letras do Oceano Atlântico vêm nos mapas, porque não podem elas existir ? Do mesmo modo que, se as garrafas nascem nas arvores-garrafa, é natural que caiam quando estão maduras, ou que as plantas relógio expludam como bombas-relógio… É esse universo fantástico e inesquecível que os leitores puderam explorar ao longo de 16 álbuns, com Philemon e o seu burro Anatole como guias, em histórias em que o delirio do argumento se alia progressivamente a uma persistente e inovadora exploração e desmontagem dos mecanismos narrativos da BD, de uma forma que não era feita desde os tempos heróicos de Winsor McCkay e do seu Little Nemo, de quem Fred se afirma como um dos mais distintos discípulos.

Série simples e divertida, dirigida a um público juvenil, mas passível de ser devidamente apreciada por leitores de todas as idades que não tenham perdido a capacidade de sonhar, as aventuras de Philemon são a prova de que a BD nem sempre precisa de recorrer a histórias de fôlego épico, ou aos dramas existenciais dos seus autores, para se afirmar como Arte. Basta que os seus autores tenham talento e criatividade, duas coisas que nunca faltaram a Fred.
Para terminar esta evocação da memória de Othon Aristides, cidadão de origem grega nascido em Paris em 1931 e falecido no mesmo local a  2 de Abril e que o mundo da BD conhecia simplesmente por Fred, deixo-vos com mais alguns exemplos de como Fred desafiava as convenções da BD, em páginas tão criativas como espectaculares.








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