quarta-feira, 24 de abril de 2013

Lá Fora - Before Watchmen


Se houve um projecto editorial recente no mercado americano rodeado pela polémica mal foi anunciado, esse projecto foi Before Watchmen. Um conjunto de prequelas ao clássico Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, publicadas contra a vontade expressa de Moore. O mesmo Alan Moore que estava de relações cortadas com a editora há muitos anos, precisamente por causa dos direitos de Watchmen, que aquando da publicação original da míni-série, em 1986, tinha ficado acordado que reverteriam para os seus autores, quando a série deixasse de estar disponível nas livrarias. Mas o problema é que a série nunca deixou de estar disponível  nas livrarias, sucedendo-se as reedições ao longo dos anos, que tornaram Watchmen a graphic novel mais vendida de todos os tempos. Um sucesso comercial que o filme de Zack Snider a partir da graphic novel, que muitos, incluindo o próprio Moore, consideravam impossível de adaptar ao cinema, só veio aumentar de forma exponencial.

Perante um sucesso comercial tão grande e tão dilatado no tempo, era só uma questão de tempo até que a editora DC decidisse explorar o universo de Watchmen em histórias originais. Tendo em conta que o final de Watchmen não deixava grande espaço para continuações, uma prequela era o caminho mais lógico e foi esse que a DC seguiu, envolvendo no projecto alguns dos maiores nomes dos Comics americanos.
Se Dave Gibbons deu a sua benção mais ou menos envergonhada ao projecto, já Moore fez questão de gritar bem alto a sua oposição, apelando ao boicote da série e a controvérsia não se fez esperar, pois se houve autores que apoiaram Moore, houve também quem lembrasse que Moore não tinha grande autoridade moral para criticar os autores que iam utilizar as suas personagens, quando ele próprio construiu grande parte da sua carreira a trabalhar com personagens que não foram criadas por si, e em casos como Lost Girls e The League of Extraordinary Gentlemen, utilizando-as de uma forma que certamente não agradaria muito aos criadores originais.
Mas este texto não é sobre a polémica, mas sim sobre os livros e, num momento em que falta apenas publicar o último número da míni-série Comedian e os volumes encadernados já estão anunciados para Junho, já se pode fazer um balanço deste projecto. Embora nenhuma das seis míni-séries principais atinja o nível do original (o que seria muito difícil, uma vez que estamos a falar de uma das melhores histórias de super-heróis de sempre), a verdade é que estamos perante livros sólidos, com alto nível de produção escritos e desenhados de forma no mínimo eficaz por grandes autores que encararam este projecto como uma forma de homenagear a série original.
Embora o trabalho gráfico seja do melhor que os diferentes desenhadores já fizeram, a verdade é que este é um projecto, acima de tudo, de argumentistas.

Darwyn Cooke além de escrever e desenhar a míni-série Minutemen, respeitando a planificação habitual de Dave Gibbons, de 3 tiras de 3 quadrados por página, assina também a míni-série Silk Spectre, maravilhosamente desenhada por Amanda Conner.Dois trabalhos com ambições diferentes, mas muito conseguidos.
Brian Azzarello escreveu as míni-séries dedicadas ao Comendian e a Rorschach, os dois personagens mais sombrios de Watchmen. Se Comedian, com desenhos de Gerard Jones, mostra a ligação do Comediante à família Kennedy, e a sua participação na morte de Marillyn Monroe, a mando de Jacqueline Kennedy, já Comedian, com desenhos espectaculares de Lee Bermejo, mostra o lado negro de Nova Iorque dos anos 70, em que Roschach se cruza com Travis Bickle, o Taxi Driver do filme de Martin Scorcese. Se Roscharch é uma história policial simples, que tem lugar antes dos acontecimentos
de Watchmen, já Comedian tem um âmbito mais vasto, fazendo a ligação entre a história pessoal do Comediante e a história da América, num percurso que vai do fim do sonho americano, com a morte  de Kennedy (em que o Comediante não está envolvido, ao contrário do que insinua Moore na série original), até ao pesadelo da guerra do Vietnam.
J. M. Straczynski assina o argumento de outras duas mini-séries, Nite Owl e Dr. Manhattan. A primeira, ilustrada por Andy Kubert, com arte final do seu pai, Joe Kubert, que faleceu durante a publicação da série e teve que ser substituido por Bill Sienkiewicz, é talvez a menos interessante de todas as mini-séries, esperando-se mais dos nomes envolvidos. Já em Dr. Manhattam, Straczynski vai mais longe do que Alan Moore, jogando com as imensas possibilidades de uma personagem como o Dr. Manhattan, numa história inteligente, que joga com os paradoxos do espaço e do tempo, muito bem ilustrada por Adam Huges.
Por último, Len Wein, que tinha sido editor de Alan Moore na série Watchmen e na sua passagem pela série Swamp Thing, assina a mini-série dedicada a Ozymandias que, mais do que pela história, vale pela forma como Jae Lee trabalha as páginas, em composições magníficas. Também é de Wein o argumento da história Crimson Corsair, a história de piratas que os personagens de Watchmen liam nas revistas e que aqui corre paralela às várias mini-séries, em capítulos de 2 páginas em continuação. Como decidi esperar pelo volume encadernado para ler a história toda de seguida, apenas me posso referir ao desenho de John Higgins, que tinha sido o colorista original de Watchmen e que aqui se revela um desenhador bastante competente.
Face ao sucesso de vendas, já com as séries em publicação, foram anunciadas mais duas revistas. Moloch, uma mini-série em 2 números dedicada ao principal vilão de Watchmen, escrita por Straczynski para o traço inimitável de Eduardo Risso, o desenhador de Chicanos e 100 Bullets, e Dollar Bill, um one-shot dedicado ao malogrado super-herói, escrito por Len Wein, com desenhos cheios de elegância e de glamour de Steve Rude.  
Se qualquer um dos argumentistas envolvidos já fez melhor do que mostra na sua participação neste projecto, já em termos de desenho não se pode dizer o mesmo, pois desenhadores como Amanda Conner, Jae Lee e Lee Bermejo assinam aqui dos seus melhores trabalhos, muito bem servidos por excelentes trabalhos de cor.
Em suma, mesmo que Before Watchmen não vá ficar na história como ficou a BD que lhe deu origem, este é um projecto que mostra um grande respeito pela BD original, esmiuçando de forma eficaz e coerente, o passado das personagens que Moore e Gibbons apenas tinham esboçado.

sábado, 20 de abril de 2013

Oh, Miúdas!. O regresso de Lepage




Depois do díptico “Muchacho”, que lhe valeu o Prémio de Melhor álbum, com uma exposição e consequente passagem pelo Festival da Amadora, Lepage regressa às livrarias portuguesas com “Oh, Miúdas!”, uma história publicada originalmente em duas partes, que as Edições Asa reuniram num único volume de pequeno formato.


Desta vez Lepage troca os cenários exóticos da América do Sul, e as cores garridas da natureza selvagem, presentes em “A Terra sem Mal” e “Muchacho”, os seus trabalhos anteriores, pelas ruas de uma Paris cinzenta, numa história mais intimista, que acompanha a vida de três raparigas de diferentes estratos sociais, desde o seu nascimento, até à idade adulta. Uma história, escrita pela sua ex-companheira, Sophie Michel que, nas palavras do próprio Lepage, “permitiu surpreender-me, a mim e aos leitores”. Leila, filha de imigrantes árabes, Clhoe, com uma mãe divorciada e sem grandes meios, e Agnés, nascida numa família da alta burguesia, mas criada pela ama portuguesa, vêm de meios sociais diferentes e têm histórias de vida diversas, o que não as impede de criarem uma sólida amizade, que resistirá ao tempo e aos diferentes problemas que as afectam.

Naturalmente, ao trocar a aventura em cenários exóticos, por uma história do quotidiano, centrada em personagens femininas, o resultado final tinha que ser visualmente menos espectacular, como de facto é. Mas mesmo com essa mudança de registo, não restam dúvidas de que Lepage é um grande desenhador e um notável colorista, que domina perfeitamente a linguagem da BD, estando tão à vontade nas cenas de movimento, como a transmitir emoções através de um simples olhar, ou de um sorriso, ou uma careta. Em termos narrativos, vejam-se duas sequências exemplares protagonizadas por Leila, em que as imagens contam a história sem necessitarem de qualquer texto de apoio: na página 16, em que Leila apaga e acende a luz, ao mesmo ritmo que a irmã vai sendo espancada pela polícia; e na página 61, a preparação do corpo da mãe de Leila segundo os rituais islâmicos, para o funeral.

Quanto à edição da Asa, bem impressa, num papel amarelado que se adapta às belas cores de Lepage, tem a vantagem de agrupar num único livro, os dois volumes da edição original francesa da Futuropolis. O grande problema é o formato em que o livro foi impresso. Um tamanho inferior ao dos comics americanos, que implica uma grande redução do desenho de Lepage. E é fácil de ver que o belo desenho de Lepage merecia outro formato. Uma formato que, não sendo o formato original, podia muito bem ser o formato que a Asa usa para a nova edição da série “Tintin”, que implica uma redução menor em relação à edição original.

(“Oh, Miúdas!”, de Emmanuel Lepage e Sophie Michel, Edições Asa, 128 pags, 21,90 €) Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 20/04/2013

domingo, 7 de abril de 2013

Daytripper: As Memórias Póstumas de Outro Brás



Já está nos quiosques portugueses, a edição brasileira de Daytripper, o premiado título dos irmãos gémeos Fábio Moon e Gabriel Bá, dois brasileiros nascidos em São Paulo, em 1976, que dão cartas no mercado americano. Senhores de uma apurada técnica de preto e branco e com um universo pessoal extremamente poético, que não passou despercebido a Frank Miller, que os escolheu pessoalmente para participarem na colectânea “Autobiographix” da Dark Horse, o trabalho dos gémeos, que estiveram no Festival de Beja, em 2010, tem chegado a Portugal, via Brasil, através das edições da Devir, da série “10 Pãezinhos”, mas este é o seu primeiro trabalho feito directamente para o mercado americano, a chegar a Portugal.
Conforme refere Gabriel Bá, no Blog da dupla, o processo de internacionalização da obra dos dois gémeos foi acontecendo de modo natural: “ um trabalho chama o outro (no caso, um quadrinho independente que fizemos, o “ROCK'n'ROLL”, chamou a atenção do editor da Image, que nos colocou em contato com o Matt Fraction, e desse contato fizemos o “CASANOVA”, que chamou a atenção do Scott Allie, editor da Dark Horse, que nos colocou em contato com o Gerard Way, e daí veio o “Umbrella Academy”, que foi o primeiro trabalho de Quadrinhos que pagava nossas contas).”

Mas a melhor maneira de descobrir o universo de Gabriel Bá e Fábio Moon, para além das edições brasileiras de “10 Pãezinhos” que a Devir distribuiu em Portugal (“Fanzine”, “Crítica” e “Mesa para Dois”) é através deste “Daytripper”, uma série da Vertigo, publicada originalmente em 10 capítulos, que este volume recolhe. Definida muito simplesmente pelos seus autores como “uma história sobre a vida”, Cada capítulo de “Daytripper” incide sobre um momento específico, um dia, da vida de Brás de Oliva Domingos, o filho de um escritor famoso que ser ele próprio também escritor, personagem vagamente inspirada no músico e escritor Chico Buarque, e sobre a forma como as escolhas que faz podem modificar a sua vida, e a sua morte. E a morte é um elemento muito importante nesta história, não só porque, como diz uma das personagens: “a morte é parte da vida”, e o próprio Brás, um escritor que “queria escrever sobre a vida”, ganha a vida a escrever obituários para um jornal, ou seja a escrever “sobre a morte”, mas principalmente, porque cada um dos capítulos termina com a morte de Brás de Oliva, num toque de realismo mágico, que mostra os diferentes caminhos (e finais) que a sua vida podia ter tido.
Intimista e surpreendente, Daytripper mostra a dupla ao seu melhor nível, numa história profundamente brasileira nos cenários e nas personagens, mas que lida com questões universais, como a vida, a morte e as escolhas que se fazem. Ao contrário de outras duplas de autores, em que há uma divisão clara entre desenhador e argumentista, Moon e Bá tanto escrevem, como desenham. Neste caso, a história foi escrita a meias e o desenho entregue a Fábio Moon, enquanto Gabriel Bá se encarregou das capas, sendo o americano Dave Stewart, colaborador habitual de Mignola, o responsável pela cor. Numa entrevista sobre as influências literárias por trás de “Daytripper”, a dupla fala de Jorge Amado, Will Eisner, Fernando Pessoa, João Guimarães Rosa e Machado de Assis. De todas estas influências, a de Machado de Assis, escritor brasileiro do século XIX, contemporâneo do nosso Eça de Queirós, é a mais evidente e a mais constante em toda a obra da dupla, que adaptou à BD o conto “O Alienista”, de Machado de Assis. Não só Brás, o protagonista de “Daytripper” tem o mesmo nome que outro Brás, o das “Memórias Póstumas de Brás de Cubas”, um dos mais célebres romances de Assis, mas também pela forma como termina cada capítulo, “Daytripper” podia perfeitamente ter como sub-título, As “Memórias Póstumas de Brás de Oliva Domingos”. Daí, o título que escolhi para este texto… >br> Trata-se, como já deverão ter percebido, de um livro excelente, de leitura imprescindível, que tem arrebatado prémios um pouco por todo o lado, com destaque para os Eisners, na San Diego Comic Con. A edição da Panini, que já está nos quiosques nacionais, tem ainda a vantagem do preço extremamente convidativo, de 12 Euros, para um livro de mais de 250 páginas a cores, bem impresso, em bom papel.
(“Daytripper”, de Fábio Moon e Gabriel Bá, Panini Books, 258 pags,12 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 6 de Abril de 2013

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Evocando Fred (1931-2013)



Decididamente, os tempos têm sido madrastos para a Banda Desenhada, com o desaparecimento de uma série de autores importantes. Esta semana, para além do português Jobat, chegou a notícia da morte de Fred, o genial criador de Philemon e de Le Petit Cirque. Não sendo uma notícia totalmente inesperada, pois sabia-se que estava bastante doente, não tendo participado na reunião deste ano para os Prémios de Angoulême, em que era presença constante, o choque não é menor.

Tendo-se estreado na BD em 1954, na revista Zero, onde conhece Cavanna e Choron, com quem vai criar a mítica revista Hara-Kiri, a que se mantém ligado até 1966, foi na revista Pilote, então dirigida por René Goscinny, que vão nascer as suas principais criações. com Philemon à cabeça. Para além das histórias que escreveu e desenhou, Fred escreveu argumentos para desenhadores, como Pichard, Alexis e Jean-Claude Meziéres, escreveu e realizou uma série de 40 curtas-metragens para a Televisão francesa e até escreveu letras para algumas canções de Jacques Dutronc, o que não o impediu de regressar sempre à BD.

Bem conhecido em Portugal graças ao Diário de Jules Renard, e aos premiados História do Corvo de Ténis e História do Contador Eléctrico, Fred, que esteve por duas vezes no Festival da Amadora para receber o galardão de Melhor Álbum Estrangeiro, apenas viu publicado no nosso país o primeiro volume da sua série Philemon, de que acaba de sair em França o 16º volume, que Fred, já doente, concluiu expressamente para fechar o ciclo, podendo ser visto como o seu testamento artístico. Além de 15 álbuns de Philemon, recentemente reunidos numas edição integral em 3 volumes, que fez parte dos melhores livros que li em 2012, ficaram por publicar no nosso país, outros trabalhos incontornáveis, como o fabuloso Le Petit Cirque, uma história melancólica e nostálgica de um circo subterrâneo, cujos artistas foram hipnotizados por um mágico louco, que os obriga a actuar todos os dias para um público inexistente.

Se quisermos definir em poucas palavras a série Philemon, podemos dizer que se trata do relato bem humorado das deambulações surreais e oníricas de Philemon e do seu burro Anatole pelas letras do Oceano Atlântico. Uma viagem que  começa quando Philemon descobre uma mensagem dentro de uma garrafa, emergindo de um inocente poço abandonado. Garrafa lançada por Barthélemy, o escavador de poços, preso há mais de quarenta anos na letra A, tendo como companhia Sexta-Feira, um centauro com mau feitio mas óptimo cozinheiro. Personagens principais de uma série, juntamente com o curioso e inocente Philemon e o seu sensato burro Anatole, para além do pragmático pai de Philemon, onde se cruzam as mais delirantes criaturas e que, iniciada em finais da década de 60, se revela a mais perfeita materialização do slogan da revolta estudantil de Maio de 68, que reclamava “a imaginação ao poder”.
Embora sem ser um grande desenhador, Fred era um génio e um poeta, dotado de uma imaginação sem limites. E o universo que criou, apesar de surreal, é de uma lógica inabalável. Se as letras do Oceano Atlântico vêm nos mapas, porque não podem elas existir ? Do mesmo modo que, se as garrafas nascem nas arvores-garrafa, é natural que caiam quando estão maduras, ou que as plantas relógio expludam como bombas-relógio… É esse universo fantástico e inesquecível que os leitores puderam explorar ao longo de 16 álbuns, com Philemon e o seu burro Anatole como guias, em histórias em que o delirio do argumento se alia progressivamente a uma persistente e inovadora exploração e desmontagem dos mecanismos narrativos da BD, de uma forma que não era feita desde os tempos heróicos de Winsor McCkay e do seu Little Nemo, de quem Fred se afirma como um dos mais distintos discípulos.

Série simples e divertida, dirigida a um público juvenil, mas passível de ser devidamente apreciada por leitores de todas as idades que não tenham perdido a capacidade de sonhar, as aventuras de Philemon são a prova de que a BD nem sempre precisa de recorrer a histórias de fôlego épico, ou aos dramas existenciais dos seus autores, para se afirmar como Arte. Basta que os seus autores tenham talento e criatividade, duas coisas que nunca faltaram a Fred.
Para terminar esta evocação da memória de Othon Aristides, cidadão de origem grega nascido em Paris em 1931 e falecido no mesmo local a  2 de Abril e que o mundo da BD conhecia simplesmente por Fred, deixo-vos com mais alguns exemplos de como Fred desafiava as convenções da BD, em páginas tão criativas como espectaculares.