segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O regresso de Eternus 9

Mais de 30 anos depois da publicação de “Um Filho do Cosmos”, Eternus 9, a mítica criação de Victor Mesquita, regressa com “A Cidade dos Espelhos”, segundo volume de uma anunciada trilogia de ficção científica, género de que Mesquita é um dos raros cultores em Portugal.
Definido pelo próprio Mesquita, como “um portal caleidoscópico para um mundo cujo coração é Lisboa, após a guerra nuclear que transfigurou a face do Planeta e fragmentou a Lisboa de hoje até quase não se poder reconhecê-la, mas onde continuam as referências que a distinguem”, a “Cidade dos Espelhos”, mais do que o regresso de Eternus 9, é o regresso de Victor Mesquita, aqui na dupla função de autor e personagem da sua própria história.
O primeiro álbum, cuja publicação se iniciou em 1975 na revista “Visão” (a de BD, não a de informação que ainda hoje se publica) de que Mesquita foi fundador e director, tendo sido publicado em álbum em 1979, com direito a edição em França pela Lombard, no ano seguinte, é filho do seu tempo, estando na linha do que melhor se fazia em revistas como a Pilote e Metal Hurlant, com Victor Mesquita a emprestar um fôlego épico ao seu traço, só com paralelo nos delírios cósmicos e arquitecturais de Philippe Druillet, autor com quem a crítica francesa (e não só…) não deixou de o comparar. Mas além do desenho espectacular e da arrojada planificação, sem equivalente em termos da BD nacional, “Eternus 9” era uma história plena de simbolismo e perfeitamente circular, e que, por isso mesmo, não precisava de continuação.
Essa continuação, tantas vezes anunciada pelo próprio, mas que já poucos esperavam, surgiu finalmente em finais de 2010, lançada de forma (demasiado) discreta, no último Festival da Amadora. E se a sombra de Eternus 9 se mantém imutável, apesar da sua presença ser bastante mais simbólica do que efectiva, a verdade é que a meio da história o leitor é levado para o outro lado do espelho, em que Eternus 9 dá lugar a Victor Mesquita, numa narrativa com claros contornos autobiográficos sobre o processo de criação do livro que estamos a ler. E nesta segunda parte, que é mais uma continuação de “O Sindroma de Babel” (veja-se a cidade de Olissipólis, ou os cães bicéfalos), uma história curta publicada em álbum em 1996, pelo Festival da Amadora, a presença de Eternus 9 está quase reduzida às maquetes que enchem o estirador de Vick Meskal/Victor Mesquita, cedendo lugar ao autor cheio de dúvidas e inquietações, em luta com uma história que ganhou vida própria que, como bem lembrou João Ramalho Santos, remete para o filme “8 ½” de Federico Fellini, paradigma máximo do filme sobre o autor em crise de inspiração.
Embora respeitando vagamente os cânones da ficção científica, sobretudo em termos estéticos, “A Cidade dos espelhos” é uma obra inclassificável, cujo principal fascínio vem precisamente da forma como o autor explora criativamente as suas dúvidas e complexidades, num complexo jogo de espelhos, mais próximo da Banda Desenhada autobiográfica.
Quanto à excelente edição da Gradiva, padece do mesmo problema da reedição de “Um Filho do Cosmos”, o preço demasiado elevado para a bolsa dos portugueses que, aliado à escassa divulgação, impedirá mais leitores de descobrirem este (tão feliz quanto inesperado) regresso de Victor Mesquita.
(“Eternus 9: A Cidade dos Espelhos”, de Victor Mesquita, Gradiva, 98 pags, 25 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 26/02/2011

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A Cruz e o Escorpião

Embora a um ritmo não muito sustentado, as Edições Asa lá vão continuando as principais séries do seu catálogo de Banda Desenhada. Três anos depois de terem publicado o volume anterior, chegou a vez do “Escorpião”, de Marini e Desberg, já um clássico da moderna BD franco-belga cujo sexto volume, “O Tesouro do Templo”, já chegou às livrarias portuguesas, numa edição que, como também já vem sendo hábito, conta com uma capa diferente para a edição vendida na FNAC.
“O Escorpião” insere-se na linhagem clássica de títulos como “Os Três Mosqueteiros”, “Scaramouche” e “Lagardere”, que cultivavam a aventura folhetinesca em estado puro, mas introduz um toque de modernidade na receita, através da junção cuidadosa de outros ingredientes, como uma pitada de erotismo soft, representado pelas belas e perigosas Mejai e Ansea Latal, e um toque de teoria da conspiração “à la Dan Brown”, perceptível na organização secreta que se serve do poder da Igreja para controlar o mundo, a que o Escorpião se opõe.
Além do charme e da classe do Escorpião, um sedutor ladrão de antiguidades, que parece saído directamente de um filme com Errol Flynn, mas a quem Marini deu umas feições que lembram demasiado as de Drago, o vampiro de “Rapaces” (outra série desenhada por Marini), do carisma do “mau da fita”, o diabólico Cardeal Trebaldi, e da sensualidade das personagens femininas, temos uma intriga suficientemente complexa para manter o leitor em suspense, servida por uma eficácia narrativa ao alcance de poucos. Tudo isto, passado a imagens de forma notável pelo virtuosismo de Marini, um dos mais elegantes desenhadores realistas da BD europeia.
Neste volume chega ao fim a intriga, iniciada no volume 3, da busca da verdadeira cruz em que foi crucificado o apóstolo São Pedro. Relíquia suprema, cuja descoberta e revelação permitirá derrubar o poder de Trebaldi, eleito Papa por via de ter apresentado ao povo de Roma uma cruz de São Pedro que, tanto ele como o Escorpião, sabem ser falsa. Depois da Capadócia e de Jerusalém essa busca termina na fortaleza de Saint-Serrac, mas o resultado não foi bem o que o Escorpião esperava…
Embora a intriga evolua de forma demasiado lenta, e os últimos três álbuns contribuam muito pouco para o evoluir da trama global, vale a pena continuar a acompanhar este “Escorpião”, quanto mais não seja pelo excelente trabalho de desenho e de cor directa de Marini, cada vez mais à vontade como colorista,
(“O Escorpião Vol 6: O Tesouro do Templo”, de Marini e Desberg, Edições Asa, 48 pags, 12,50 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 8/01/2011

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Regresso ao Armazém Central

Aos poucos, as edições Asa começam a retomar a publicação de algumas séries que pareciam ter ficado pelo caminho. A última a ter essa sorte, foi “Armazém Central”, de Loisel e Tripp, de que acaba de sair o terceiro volume. A série, que Loisel, numa entrevista, define como “uma comédia à Frank Cappra (…) com um ambiente próximo das pinturas de Norman Rockwell”, passa-se em Notre-Dame-des-Lacs, uma aldeia perdida no Quebeque dos anos 20 do século XX, cujo dia-a-dia vai ser alterado quando a jovem viúva Marie Ducharme decide tomar conta sozinha do Armazém Central que era do seu falecido marido.
Curiosamente, a série acabou por ser mais notícia em França pelo facto de Loisel e Tripp trabalharem o desenho a meias, com Loisel a encarregar-se do desenho a lápis e Tripp a passar a tinta. Algo perfeitamente vulgar nos comics das grandes editoras americanas, onde o mais habitual é haver uma clara separação de tarefas, com um argumentista, um desenhador para o lápis e outro para a arte-final (passagem a tinta), um colorista e um responsável pela legendagem, muitas vezes com cada um numa cidade diferente, cabendo ao editor coordenar toda essa gente, mas que para a BD franco-belga é suficientemente exótico para justificar o destaque que a editora dá ao facto, incluindo duas páginas no início do álbum em que se explica o peculiar (para os franceses) método de trabalho.
Na origem desta colaboração em moldes poucos habituais para a BD franco-belga, está o facto dos dois autores partilharem o mesmo Atelier em Montreal, no Canadá, o que lhes permitiu descobrir que eram complementares, ou nas palavras de Tripp, que “um desenhador virtual, que fosse uma mistura dos dois, desenharia com muito mais prazer, sem esforço”. Com efeito, Loisel adora o desenho a lápis e aborrece-se mortalmente na fase de passar a tinta, enquanto que Tripp é exactamente ao contrário e, ao conseguirem que cada um faça apenas aquilo que mais gosta, conseguem produzir a um ritmo nada habitual no mercado francês, de tal modo que em pouco mais de três anos já são cinco os álbuns publicados nesta série, inicialmente pensada como uma trilogia e que, até ver, irá ter pelo menos seis álbuns…
Se em termos de ambiente a coisa funciona muito bem, com os autores a traçarem um conseguido retrato nostálgico da vida no campo nessa época, a verdade é que o ritmo narrativo é contemplativo e bastante lento, apesar das coisas aquecerem um pouco neste 3º volume, com os homens a regressarem à aldeia e a reagirem mal à presença de Serge Brouilet, um estrangeiro vindo de Montreal que abriu um restaurante nas traseiras do Armazém Central. E se a tensão que este novo elemento introduz na relação de Marie com o resto da aldeia, está muito bem explorada, sequências como a do aniversário de Gaetan, o típico tolo da aldeia, em nada contribuem para o avançar da história, nem funcionam tão bem como as brincadeiras entre um cachorro, um gatito e um pato que decorrem em segundo plano, em paralelo à acção principal.
(“Armazém Central 3: Os Homens, de Loisel e Tripp, Edições Asa, pags, 15,50 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 19/02/2011
Nota- Como a partir deste texto, a versão integral dos meus artigos passou também a estar disponível no site do Diário As Beiras no mesmo dia em que sai no jornal, optei por disponibilizá-lo desde já também aqui. Os textos anteriores que já sairam em papel e ainda não estão neste blog (estou quase com um mês de atraso nesse campo) irão sendo disponibilizados rapidamente.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Rip Kirby em português

Depois do “Principe Valente”, de Hal Foster e do “Tarzan” de Russ Manning, a editora Bonecos Rebeldes recupera mais um clássico da Banda Desenhada norte-americana publicada nos jornais: a série “Rip Kirby”, de Alex Raymond. Último trabalho de Raymond, falecido em 1956, num acidente de viação, “Rip Kirby” é a segunda incursão do criador de "Flash Gordon" e de “Jungle Jim”, pelo registo policial, depois de no início de carreira ter desenhado a série “Secret Agent X-9”, a partir de um argumento do escritor Dashiel Hammet.
"Rip Kirby" assinala o regresso de Raymond à Banda Desenhada depois de um período de 22 meses em que esteve alistado no exército americano. Terminada a II Guerra Mundial, Raymond regressou disposto a retomar a série "Flash Gordon", que tinha ficado a cargo do seu assistente Austin Briggs, mas como a King Features entretanto tinha assinado um contrato com Briggs para desenhar a série até 1948, Raymond viu-se obrigado a criar um novo personagem, um detective cheio de glamour chamado Rip Kirby, que traduzia uma abordagem mais madura às histórias policiais.
Ao contrário de "Flash Gordon" e Jungle Jim", que saiam a cores nas páginas dominicais dos jornais, "Rip Kirby" foi pensado desde o início para ser publicado a preto e branco, como tira diária, o que permitiu a Raymond trabalhar o seu estilo de um modo diferente. Sem o espaço para as composições barrocas da fase final de Flash Gordon, optou por jogar com as sombras, como ainda não tinha feito em trabalhos anteriores. Mas o que marca mais este trabalho é a elegância do traço de Raymond e a extraordinária sensualidade e glamour das mulheres que desenha, desde Honey Dorian, a eterna namorada de Kirby, até Pagan Lee, a sedutora e mortífera "má da fita", cujo visual serviu de inspiração para Bettie Page, que vai ser uma presença recorrente ao longo da série.
Este primeiro volume, de uma edição prevista para 13 volumes, recolhe em 56 páginas que recolhem em média 4 tiras por página, as três primeiras aventuras de Rip Kirby, publicadas entre Março e Novembro de 1946, precisamente no mesmo formato em que a editora está a editar o "Príncipe Valente".
E, embora o trabalho de Catherine Labey, que faz a tradução e execução gráfica, não atinja a perfeição a que Manuel Caldas nos foi habituando noutras reedições de clássicos, e a legendagem e o colorido em photoshop da capa não serem nada famosos, esta edição da Bonecos Rebeldes tem os seus méritos, não sendo tão má como alguns têm escrito, mesmo que o preço de 25 € por um livro de 56 páginas custe a dar, sobretudo tendo em conta que a edição do “Príncipe Valente da mesma editora, tem quase o dobro das páginas por volume e custa apenas mais 2,5 €… É que é muito importante não esquecer que a edição da Bonecos Rebeldes é, de todas as disponíveis no mercado, a única que reproduz na sua totalidade as tiras de Raymond.
Para poder jogar com as questões de espaço nos diferentes jornais que publicavam a série, a King Features disponibilizava duas versões diferentes de cada tira, uma integral e outra ligeiramente mais curta, com o desenho amputado em alguns milímetros. É essa versão cortada que foi usada para a maioria das edições, incluindo a luxuosa edição em 4 volumes que a IDW está a publicar nos EUA, (de onde tirei a maioria das ilustrações para este artigo) que também não reproduz as tiras desenhadas por Raymond na totalidade, cortando a parte de baixo de cada imagem. Imagens que a edição da Bonecos Rebeldes reproduz na íntegra, como facilmente podem ver pelos exemplos que a seguir mostro.
Imagem cortada em baixo, tal como vem reproduzida na edição da IDW
A mesma imagem, completa na edição da Bonecos Rebeldes, Repare-se no copo.
Mais um exemplo da edição da IDW
E a mesma imagem integral. Veja-se a mão do desenhador, que quase não aparece na edição da IDW






(“Rip Kirby”, Vol. 1, de Alex Raymond, Bonecos Rebeldes, 56 pags, 25,00 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 31/12/2010

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Newborn: 10 Dias no Kosovo

Um ano depois da publicação de “Israel Sketchbook”, Ricardo Cabral regressa às livrarias com um novo caderno de viagem, desta vez dedicado ao Kosovo. “Newborn: 10 Dias no Kosovo” nasceu de um projecto de Banda Desenhada para a editora francesa Soleil, que acabou por não se concretizar. Gorado esse projecto, a viagem de recolha de elementos gráficos para uma BD ambientada no Kosovo do pós-guerra, que Ricardo ia desenhar a partir do argumento de um autor nascido no Kosovo, serviu-lhe para conhecer por dentro a realidade do Kosovo actual, realidade essa que Ricardo nos transmite de forma despretensiosa neste caderno de viagem.
Mais uma vez, a visão de Ricardo Cabral não é a do vulgar turista, mas sim de alguém que, durante 10 dias, partilhou a vida daqueles cuja terra visita. Um país bonito e que lentamente vai curando as cicatrizes de uma guerra sem quartel, que não poupou albaneses nem sérvios. Conforme o próprio Ricardo refere: “pensei encontrar um país martirizado pela guerra. Das notícias das valas comuns, das deportações forçadas, dos milhares de refugiados e desaparecidos, era de esperar um país cinzento e triste, mas a vida decorre normalmente… e as raparigas aqui são realmente muito bonitas.”
Tal como acontecia em “Israel Sketchbook”, embora a memória da guerra paire em alguns momentos do livro, o que fica é um bonito país e, sobretudo, a sua gente, gente bonita e que procura ser feliz.
E, embora se mantenha o mesmo método de trabalho, com os esboços feitos no local a serem posteriormente coloridos por computador, com auxílio de fotografias, a principal diferença em relação ao livro anterior é uma maior diversificação de
registos visuais, com imagens apenas esboçadas, publicadas tal como foram desenhadas na altura, diferentes desenhos sobrepostos na mesma imagem, ou sequências em que se misturam de forma explícita o desenho e a fotografia, num processo que de alguma forma evoca o magnífico trabalho de Emanuel Guibert a partir das fotografias de Didier Lefevre em “Le Photographe”.
A publicação deste segundo caderno de viagem pela Asa, mostra que há um público para este tipo de livros, talvez até mais vasto do que o da BD. Esperemos, é que o sucesso do Ricardo Cabral viajante, não nos prive do trabalho do autor de BD…
(“New Born: 10 Dias no Kosovo”, de Ricardo Cabral, Edições Asa, 144 pags, 19,20 €)
Texto publicado no Diário As Beiras de 24/12/2010

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

As Melhores Bandas desenhadas que li em 2010

Um pouco mais tarde do que o prometido, aqui está finalmente a minha lista das Melhores BDs que li em 2010. Para não atrasar ainda mais a coisa, optei por publicar primeiro a lista, sem mais comentários, deixando uma posterior analise de cada um dos livros escolhidos para futuros posts. A organização dos títulos está feita por ordem alfabética, até porque não faz grande sentido comparar em termos meramente qualitativos, "Asterios Polyp" com Batwoman: Elegy", ou "Bernard Prince" com "Elmer". Todos são bons livros, mas completamente diferentes. Como sempre, há vários títulos que ficam de fora e que podiam estar nesta lista, e outros, como a reedição do "Quim e Manecas", de Stuart Carvalhais, ou o último "ACME Novelty Library", de Chris Ware, que não estão apenas porque só os comecei a ler já em 2011. Mas vamos então à lista dos 10 melhores livros de BD que li em 2010:
1 - Asterios Polyp, de David Mazzucchelli, Pantheon
2 - Batwoman: Elegy, de Greg Rucka e J. H. Williams III, DC Comics
3 - Bernard Prince Integrale, de Hermann e Greg, Le Lombard
4 - Beasts of Burden: Animal Rites, de Evan Dorkin e Jill Thompson, Dark Horse
5 - Chateau de Sable, de Oscar Levy e Frederick Peeters, Atrabile
6 - Elmer, de Gerry Alanguilan, SLG Publishing
7 - Fórmula da Felicidade, de Nuno Duarte e Osvaldo Medina, Kingpin Books
8 - Planetary, de Warren Ellis e John Cassaday, DC/Wilstorm
9 - Parker: the Outfit, de Richard Stark e Darwyn Cooke, IDW
10 - The Walking Dead vols 11 a 13 , de Robert Kirkman e Charlie Adlard, Image