domingo, 28 de março de 2010

O Regresso dos Piratas do Tietê


Mais de um ano depois de ter distribuído o primeiro volume, a Devir volta a dar atenção ao humor surreal do brasileiro Laerte, fazendo chegar às livrarias o 2º volume da luxuosa edição em 3 volumes que recolhe a saga completa da série “Os Piratas do Tietê”. Nascida das páginas da revista “Chiclete com Banana”, onde Laerte publicou ao lado de outros grandes humoristas brasileiros, como Angeli, o criador dos Skrotinhos, rapidamente o sucesso da série fez com que os “Piratas...” ganhassem a sua revista própria, no início dos anos 90. Um título mítico que esta edição preserva, e de forma luxuosa, para a posteridade.
Excelente desenhador, com apurado sentido narrativo, e um grande jogo de sombras, Laerte cria aqui uma obra-prima do humor surreal ao transpor um grupo de piratas sanguinários como havia nos séculos XVII e XVIII, para a cidade de São Paulo contemporânea, onde vivia o autor (o Tietê do título é o poluidíssimo rio que banha a cidade de são Paulo).
Neste segundo volume temos direito, para além do texto integral da peça de teatro “Piratas do Tietê, o filme”, bem reveladora do sucesso que a série conheceu no Brasil, a alguns dos melhores episódios da série. O destaque, mais do que natural, vai antes de tudo para “O Poeta”, uma história que conta com a participação especial e diálogos (extraídos dos seus poemas) de Fernando Pessoa, em que se prova que a poesia pode ter mais força do que as armas dos piratas. Mas Fernando Pessoa não é a única personalidade que Laerte vai buscar para contracenar com os seus piratas. Também o Fantasma e a sua namorada, Diana Palmer, personagens criadas por Lee Falk, têm uma importante participação em “Vozes da Selva”, uma história em três partes, em que Diana descobre que a vida junto dos Piratas do Tietê pode ser muito mais divertida do que ao lado do Fantasma. Um belo exemplo da forma iconoclasta como Laerte trata os ícones da cultura pop, de que a BD americana faz parte, fazendo uma divertida guerrilha à colonização cultural americana, muito presente no Brasil.
Mas a mais memorável participação de um herói da BD numa história dos Piratas do Tietê, é, sem dúvida, a de Batman em “ A Terceira Margem”, uma história delirante que nos mostra o Batman mais surpreendente desde o “Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller e em que, para além de criticar o aproveitamento comercial da personagem que resultou do filme de Tim Burton, estreado pouco antes de Laerte ter feito esta história, é finalmente revelado o segredo do morcego, segredo esse que eu deixo para os leitores descobrirem, quando lerem o livro…
(“Piratas do Tieté: A Saga Completa” Livro 2, de Laerte, Devir Livraria, 112 pags, 18.00 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 27/03/2010

quarta-feira, 24 de março de 2010

Torpedo: o Cinema Negro de Abuli e Bernet


Uma das mais populares séries europeias de finais do século XX, Torpedo 1936, de Abuli e Bernet há muito que está ausente das livrarias portuguesas, apesar de ter tido vários episódios publicados em álbum pela Futura e nas revistas Mosquito e Selecções BD. Felizmente, o mesmo não sucede noutros países, onde a série tem sido reeditada com frequência.
Criada em 1981, por E. Sanchez Abuli nas páginas da revista Creepy, na sequência de uma encomenda de Marcelo Miralles, um dos colaboradores do editor Josep Toutain, que encomendou ao argumentista uma história com uma loura e um gangster, que pudesse ser usada como teste a um desenhador, Torpedo cedo ganhou vida própria. Pelo carisma do personagem, e sobretudo, pelas possibilidades que uma série destas dava a Abuli de homenagear o cinema negro e a literatura hard boiled, em histórias curtas que utilizam todos os clichés do género, subvertendo-os ao dar o protagonismo, não ao detective privado, mas a um mafioso cínico e sem ponta de escrúpulos, cuja figura se vai humanizando muito lentamente, à medida que vamos conhecendo o seu passado.
Para ilustrar esta viagem aos tempos áureos dos gangsters, foi escolhido o mestre americano Alex Toth, que deu também a sugestão do título: Torpedo era o nome dado na América dos anos 30 aos pistoleiros a soldo. Uma título que, como reconhece Bernet, “revela-se uma imagem perfeita para definir aqueles tipos que, uma vez que recebem o dinheiro e a incumbência de matar alguém, põem-se em marcha e não param até atingir o alvo. Exactamente como um torpedo!”
Desenhador veterano, ligado aos EC Comics e às revistas da editora Warren, Alex Toth pôs toda a sua elegância e sentido narrativo ao serviço da série, procurando no entanto suavizar o carácter demasiado explicito dos guiões de Abuli, o que não foi muito bem visto pelo argumentista espanhol. Como consequência dessas divergências criativas, Toth abandonaria a série ao fim de apenas dois episódios, incomodado com o sexo, violência e amoralidade dos argumentos de Abuli. Suceder-lhe-ia Jordi Bernet, filho de Jorge Bernet, um célebre desenhador espanhol, que, depois de substituir o seu pai, com apenas 15 anos, na série Doña Uraca, por morte deste, iniciaria uma carreira internacional nas páginas da revista Spirou, para onde desenhou as séries Dan Lacombe e Paul Foran, publicadas em Portugal no Mundo de Aventuras.
Justamente considerado como o mais americano dos desenhadores espanhois, Bernet cedo se conseguiu libertar da influência de Frank Robbins (desenhador a quem, curiosamente, Torpedo foi oferecido, após a desistência de Toth) para criar o seu próprio estilo, feito de dinamismo, sensualidade e uma notável eficácia narrativa.
Um estilo que o crítico italiano Francesco Coniglio definiu como “uma arquitectura gótica de sinais brancos e pretos que lembram de perto os filmes de Orson Welles e o jogo de luz do seu fotógrafo favorito, Greg Toland”. E não há dúvida que a série Torpedo é bem um exemplo da apurada técnica de preto e branco de Bernet, que reproduz fielmente no papel a estética do film noir, de que Torpedo é um legítimo herdeiro. Conforme o próprio Bernet declarou numa entrevista, “o branco e preto é o ideal para as histórias realistas, sobretudo as do género noir. Gosto de acentuar o dramatismo nas sequências que assim o exijam e, brincando com o preto e branco, consigo obter efeitos muito mais directos do que com a cor. O preto e branco é bem mais simples e eficaz. É mais forte, directo, natural.”
E Bernet não é o único a pensar assim. Também Will Eisner, o criador do Spirit, num texto publicado no 1º volume da edição espanhola, segue esta teoria, ao referir que, sendo uma “tradicional série negra, com raízes na literatura e no cinema da época, (a série Torpedo) jamais conseguiria obter um tal alto nível ambiental, nem teria o impacto que teve junto dos apreciadores de BD, caso tivesse sido feita a cores.”
Mas, tal como acontece no cinema, o grande público prefere a cor ao preto e branco e assim, à medida que a série começou a ganhar adeptos em todo o mundo, Torpedo passou a ser publicado a cores, e a data 1936, que localizava a época em que se desenrolava a acção, acabou por desaparecer do título, deixando perceber a importância cada vez maior do herói. Uma mudança que, mais do que traduzir a vontade natural dos seus autores, resultou da pressão dos editores, como a Glenat, editora francesa de Torpedo, que considerou esta medida indispensável para que Torpedo passasse, de uma série de culto, para um sucesso de grande público. A mudança deu-se no 4º álbum (que corresponde ao 6º volume da edição portuguesa da Futura, onde foi publicada a preto e branco) que, curiosamente, é o primeiro ocupado por uma única história, em vez dos tradicionais episódios curtos. E se a cor dos álbuns, relativamente discreta, não perturba, também não se afirma como uma grande mais valia, escondendo um pouco o excelente jogo de sombras de Bernet, cujo traço se vai gradualmente simplificando, sem perder personalidade.
Assim, ao longo de 20 anos e 15 álbuns, graças ao humor mortífero e aos notáveis diálogos de Abuli, e ao talento gráfico e à extraordinária eficácia narrativa de Bernet, a série Torpedo prosseguiu uma caminhada vitoriosa, com a mesma facilidade com que Luca Torelli liquidava os seus inimigos, preferencialmente a cores, mas também a preto e branco, como sucedeu com as edições americana e espanhola em formato comic book. Alvo de inúmeras homenagens e citações, como é o caso do Tornado, do nosso Estrompa, que só atestam a sua popularidade, Torpedo seria ainda transposto para a animação em 1995, num filme de 30 minutos realizado por J. A. Rojo, a partir da história Tic Tac, que pretendia ser o episódio piloto de uma série para televisão que não se chegou a concretizar. Extremamente fiel ao espírito e ao grafismo da BD original, esse filme foi editado em Portugal em 1996, pela Alfândega filmes, do Porto, e costumava estar à venda durante o Fantasporto.

Até que, em Dezembro de 2000, a carreira de Torpedo chegou ao fim. Aquilo que nem a polícia nem a Mafia tinham conseguido, pôr termo à vida do mais amoral dos heróis da BD, fizeram-no os seus próprios autores na sequência de um conflito de personalidades. Tudo começou quando o cantor espanhol Loquillo dedicou uma música a Torpedo, referindo no CD que o personagem era uma criação de Jordi Bernet, sem referir sequer o nome de Abuli. Ao saber que Bernet tinha tido conhecimento do facto, ainda antes do disco sair, e nada fez para o alterar, Abuli, enquanto verdadeiro criador de Torpedo, veio pedir explicações a Bernet. O temperamento latino dos dois autores espanhóis fez o resto, e assim ficou irremediavelmente desfeita uma das mais eficazes duplas da BD europeia, que para além dos 15 álbuns de Torpedo, já tinha dado provas da sua empatia em dezenas de histórias curtas, na série Snake e no álbum De vuelta a Casa.
A verdade é que, apesar do seu notável instinto de sobrevivência, Torpedo não chegou vivo ao século XXI. O que não impede que esteja a ser recuperado para os novos leitores, em edições integrais, a preto e branco. Seja graças à excelente edição francesa da Vent D'Ouest que recolhe os 15 álbuns da série num único volume de mais de 600 páginas, com uma relação qualidade/preço imbativel, ou da mais recente edição americana da IDW, de que saiu apenas o 1º volume e que conta com uma muito adequada tradução do desenhador e argumentista Jimmy Palmiotti, com quem Bernet tem colaborado na série Jonah Hex.
Versão actualizada de um texto escrito originalmente para a 2ª série da revista Selecções BD, que não chegou a ser publicado devido ao fecho da revista

segunda-feira, 22 de março de 2010

Asa e Público Recuperam as Primeiras Aventuras de Alix


Depois de "Os Passageiros do Vento" a Asa e o jornal "Público recuperam mais um clássico da Banda Desenhada franco belga, a série "Alix" de Jacques Martin. Uma série de que a Asa já tinha publicado 4 álbuns, mas que, só agora, passados quase vinte anos depois da publicação pelas Edições 70, que, durante os anos 80, lançaram 19 títulos da série, volta a ter os primeiros volumes novamente disponíveis em português.
E são precisamente os álbuns já editados pelas Edições 70, alguns dos quais já tinham saído antes na versão portuguesa da revista “Tintin”, que vão ser distribuídos com o jornal “Público”. Ou seja, com a excepção de “O Príncipe do Nilo” e “O Filho de Espártaco”, já editados pela Asa de forma autónoma, estão nesta colecção todos os álbuns escritos e desenhados por Jacques Martin entre 1948 e 1988, antes deste, afectado por graves problemas de visão, passar inteiramente o desenho da série para as mãos dos seus assistentes, como Rafael Morales, ou Cristophe Simon.
Publicado originalmente no "Tintin" belga, em 1949, "Alix, o Intrépido" mostra um Jacques Martin ainda a apalpar terreno, à medida que vai estabelecendo as bases da série. Não só em termos gráficos, com a estrutura demasiado carregada de 4 tiras por página a dar lugar nos álbuns posteriores a uma planificação mais arejada, mas sobretudo em termos do argumento, que Martin confessa que foi inventando à medida que a história ia sendo publicada.

Uma das influências perceptíveis (e assumida por Martin) é a do livro "Ben Hur", de Lewis Wallace, onde Martin foi buscar a cena inicial em que Alix, ao apoiar-se num muro faz cair um pedra sobre um general romano, cujo nome "Marsalla" evoca imediatamente o de "Messala", um dos personagens principais de Ben Hur... Se a isso juntarmos a cena da corrida de quadrigas, também decalcada de Ben Hur, percebemos o peso que o romance de Wallace, que o filme de 1959 com Charlton Heston imortalizou, teve nesta primeira aventura de Alix.
Outro aspecto interessante deste álbum, em que Enak, o eterno companheiro de Alix, não está ainda presente, é a personagem ambígua de Arbacés, um indivíduo tão pérfido como inteligente, que não esconde o seu fascínio por Alix e que vai adquirir uma tal popularidade junto dos leitores que o próprio Martin, se vê obrigado a matá-lo no final de “A Ilha Maldita”, 3º álbum da série, para que ele não roubasse o protagonismo a Alix.
Paradigma da BD histórica bem escrita e desenhada e melhor documentada, a série “Alix” merece ser descoberta por quem se interessa pela história da Antiguidade, tanto mais que alguns destes álbuns, como “As Legiões Perdidas”, O Espectro de Cartago”, ou “Iorix, o Grande”, são excelentes. Só resta saber se, para além dos leitores que cresceram com a revista “Tintin” e que provavelmente já terão a edição anterior das Edições 70, haverá, entre as novas gerações, leitores suficientes para garantir o sucesso desta nova colecção Público/Asa…
("Alix, o Intrépido”, de Jacques Martin, Edições Asa/Público, 64 pags, 4,95 €
Todas as quartas-feiras, de 17 de Março a 30 de Junho de 2010, em venda conjunta com o jornal "Público")
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 20/03/2010

segunda-feira, 15 de março de 2010

Manuel Caldas junta Poe e Doré em O Corvo


Ao contrário do que é habitual neste espaço, dedicado à Banda Desenhada, o livro que motiva este texto, embora publicado por uma editora que se tem dedicado a recuperar clássicos da Banda Desenhada, a Librimpressi, de Manuel Caldas, não é BD. É um poema de um grande escritor americano, traduzido por um dos nossos melhores poetas, ilustrado por um mestre da gravura.
O grande escritor é o mestre do fantástico e do macabro, Edgar Alan Poe, a tradução é de Fernando Pessoa e as gravuras são de Gustavo Doré. Três grandes nomes, reunidos numa cuidada edição, com o rigor a que Manuel Caldas nos habituou.
Se os contos de Poe já têm sido adaptados aos mais diversos suportes, do cinema à Banda Desenhada, no caso concreto do poema “The Raven”, encontramos adaptações ao teatro, ao cinema, à música, à animação e à Banda Desenhada. Do filme homónimo de Roger Corman (muito vagamente inspirado pelo poema), a músicas de Lou Reed e dos Alan Parsons Project, passando por séries de televisão como os Simpsons, a “Vincent”, o primeiro filme de Tim Burton, com narração de Vincent Price, que recita parte do poema, até às adaptações à BD feitas por Richard Corben, primeiro no livro Tales of Edgar Alan Poe e depois na mini-série “Haunt of Horror: Edgar Alan Poe”, são inúmeras as homenagens ao poema de Poe, mas nenhuma ultrapassa a força do texto original, acompanhado pelas ilustrações de Gustavo Doré, notável pintor e ilustrador francês, cujas ilustrações acompanharam alguns dos maiores textos da literatura mundial, da Bíblia, à “Divina Comédia” de Dante, passando pelo “Dom Quixote” de Cervantes, até “The Rime of the Ancient Mariner”, de Samuel Taylor Coleridge, ou “Paradise Lost”, de Milton.
Último trabalho de Doré, que morreu antes de ser publicada a edição de “O Corvo” com as suas ilustrações, esta obra revela um Doré com um traço mais expressionista e perfeitamente adequado ao ambiente opressivo do poema, que devia ser bastante próximo do estado de espírito do próprio Doré, a braços com uma depressão que se viria a revelar fatal.

Publicada simultaneamente em Portugal e Espanha, numa versão trilingue, em que o texto original em inglês, surge acompanhado pela tradução portuguesa de Fernando Pessoa e pela tradução castelhana do poeta venezuelano Juan António Pérez Bonalde, esta edição de Manuel Caldas, tendo em conta a qualidade da impressão, o prestígio dos autores e o preço acessível, tem tudo para ser um sucesso.
Esperemos que assim seja e que o sucesso comercial de “O Corvo” permita a Manuel Caldas continuar com o seu trabalho na recuperação dos clássicos da Banda Desenhada.
(“O Corvo”, de Edgar Alan Poe e Gustavo Doré, Librimpressi, 64 pags, 13,00 €)
Texto originalmente publicado no Diário As Beiras de 13/03/2010
PS - Como sou simpático, e os visitantes deste blog merecem, além do poema de Poe lido por Christopher Walken, aqui vai também, graças ao mundo maravilhoso do You Tube, o filme Vincent, primeiro filme de Tim Burton, narrado pela voz única do grande Vincent Price, cujo nome ficou para sempre ligado ao de Poe, graças aos filmes realizados por Roger Corman que Price protagonizou.

segunda-feira, 8 de março de 2010

As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy


Depois de dois livros escritos por José Carlos Fernandes, a editora Tinta da China volta a aventurar-se na publicação de Banda Desenhada com “As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy”, uma surpreendente Banda Desenhada de Filipe Melo e Juan Cavia, que presta tributo ao cinema e à BD de temática fantástica e de terror, mas centrando a acção em Lisboa.
Projecto pensado inicialmente para o cinema, área onde Filipe Melo deu nas vistas, como argumentista e produtor de “I’ll See You in My Dreams”, o primeiro filme de zombies português, “Dog Mendonça…”, que iria ter Nicolau Breyner como protagonista, acabou por nunca passar da fase de produção. Perdeu o cinema nacional, mas ganhou a BD, pois o resultado é francamente conseguido, com qualidade suficiente para ombrear com o melhor que se faz no género, em França, Itália e Estados Unidos, como bem salienta John Landis no prefácio.
Tendo como protagonistas Eurico, um entregador de pizzas, Dog Mendonça, um investigador do oculto, ex-lobisomem, alcoólico e adepto do Benfica, que tem como assistente Pazuul, um demónio centenário num corpo de uma miúda adolescente e uma cabeça de gárgula, que fala pelos cotovelos (que já não tem…), a história de “As Extraordinárias Aventuras…” gira em torno do misterioso desaparecimento em Lisboa de centenas de crianças. Mistério que vai levar Eurico, o Pizzaboy, que entra em contacto com Dog Mendonça depois de uma gárgula lhe ter roubado a moto, a descobrir uma Lisboa secreta e subterrânea, povoada por monstros, demónios e outras criaturas mitológicas, refugiadas em Lisboa desde a 2ª Guerra Mundial e que agora se vêem ameaçadas por um mal bastante mais terreno.
Divertida homenagem ao cinema de terror e a Bandas Desenhadas como “Hellboy”, The Goon”, e “Dylan Dog” (claramente o modelo para a personagem de Dog Mendonça), a novela gráfica de Filipe Melo e Juan Cavia concilia a acção e o humor, dado não só pela personagem da cabeça de gárgula (uma ideia genial, desenvolvida com muita graça), mas também pelas inúmeras piscadelas de olho e homenagens ao cinema de Hollywood (do “Terminator” ao “Apocalipse Now”, passando pela série “Star Wars”, não faltam as referências).
O desenho de Juan Cavia, cujo traço caricatural evoca ligeiramente Humberto Ramos, funciona perfeitamente para esta história, em que a acção, o fantástico e o humor estão de braço dado. As expressões que desenha são divertidas, a planificação das páginas é espectacular e, além disso, trata com grande dinamismo as cenas de acção, não se poupando a pormenores (veja-se a dupla página em que as criaturas fantásticas, lideradas pelo Dog Mendonça lobisomem atacam os nazis). Quanto ao trabalho de cor de Santiago Villa, está à altura do resto, embora algumas páginas, especialmente na parte final, nos esgotos de Lisboa, estejam demasiado escuras.
Em relação à capa, sem qualquer imagem, algo pouco habitual num livro de BD, e com um lettering claramente inspirado no filme “Regresso ao Futuro”, poderá funcionar precisamente por ser diferente das outras, mas pessoalmente, preferia uma capa com imagens, até porque ao longo do livro não faltam imagens espectaculares que funcionassem bem como ilustração de capa.
Divertimento despretensioso, assumidamente série B, mas feito com grande profissionalismo, bem patente na quantidade de gente que aparece referida na ficha técnica, este é um livro que dá tanto gozo a ler, como o que terá dado a fazer aos seus autores. Cá ficamos impacientemente à espera da próxima aventura de Dog Mendonça e Pizzaboy, em que Filipe Melo já está a trabalhar!
(“As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy”, de Filipe Melo e Juan Cavia, Tinta da China, 120 pags, 16,90 €
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 06/02/2010

quarta-feira, 3 de março de 2010

Dia 10 de Março, eles vão estar na Livraria Dr Kartoon



"Desta vez, o destino do Mundo será decidido… em Lisboa! Durante a Segunda Guerra Mundial, todas as criaturas sobrenaturais procuraram refúgio em Portugal. Vampiros, lobisomens, gárgulas e fantasmas vivem pacificamente, nas sombras, entre os humanos. Porém, no subsolo, o pior de todos os monstros ganha forças e prepara o seu regresso. Um jovem distribuidor de pizzas, um investigador do oculto, um demónio de seis mil anos e a cabeça de uma gárgula serão os únicos capazes de fazer frente às forças do mal que ameaçam a Humanidade.»

Este é o ponto de partida de "As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy", uma espectacular novela gráfica que esteve para ser um filme, com argumento de Filipe Melo (I'LL See You in My Dreams")e desenhos, adaptação e cor dos argentinos Juan Cavia, Martin Tejada e Santiago Villa. Livro, com prefácio do grande John Landis que vai ser apresentado em Coimbra, na próxima Quarta-feira, 10 de Março, pelas 18h30m, na Livraria Dr Kartoon, com a presença de todos os autores (menos o John Landis, claro!). Apareçam!

segunda-feira, 1 de março de 2010

Recordando Manfred Sommer, a propósito de Tex


Já está disponível nos quiosques portugueses, o nº 452 da revista “Tex”, que recolhe a primeira parte da última história completa desenhada pelo espanhol Manfred Sommer, falecido a 3 de Outubro de 2007, com 74 anos de idade. Um bom pretexto para voltar a evocar Sommer neste jornal, depois de já lhe ter dedicado um texto, a propósito do Tex Gigante nº 12 que deu início à sua colaboração com a editora Bonelli.
Nome grande da BD realista espanhola que, tal como os seus colegas, José Ortiz, Alfonso Font, Esteban Maroto e Victor De La Fuente, continuou a trabalhar em Banda Desenhada, graças à editora Bonelli, findo o boom das revistas de BD em Espanha nos anos 90, Manfred Sommer é conhecido em Portugal graças ao jornalista e correspondente de guerra Frank Cappa, interessante e carismática personagem publicada em Portugal em finais da década de 80, primeiro na revista “O Mosquito” e mais tarde em álbum pela Meribérica. Em inícios dos anos 90, Sommer tinha trocado a Banda Desenhada pela pintura, até que a persistência de Sérgio Bonelli o convenceu a regressar à BD para desenhar o ranger “Tex”, primeiro num Tex Gigante e, posteriormente, na revista mensal do ranger da Editora Bonelli.
Uma colaboração a que a morte pôs fim, mas que deu origem a alguns dos seus melhores trabalhos, em termos gráficos. Mesmo que esta não seja a última vez que Manfred Sommer desenhou o Tex, pois antes falecer já tinha desenhado mais de 90 páginas de uma nova história, que foi finalmente publicada no Almanaque italiano de 2009 (e que a Mythos publicou no Brasil no Almanaque Tex nº 37, ainda não distribuído em Portugal) depois de concluída pelo desenhador Massimiliano Leonardo, mais conhecido por Leomacs, “A Última Diligência” foi o seu derradeiro trabalho finalizado.
A história, escrita por Mauro Boselli, que termina apenas no nº 453 da revista “Tex”, coloca Tex em confronto com Scott Dunson, um ladrão de bancos inteligente e cuidadoso e apela bastante à versatilidade de Sommer, tão à vontade a desenhar as cenas nocturnas na cidade mineira abandonada de Silver Lodge, em que joga muito bem com as sombras para efeitos dramáticos, como as sequências em espaço aberto no deserto do Arizona, plenas de dinamismo e detalhe rigoroso. Igualmente competente nas cenas de acção, como no tratamento fisionómico das personagens, Sommer tinha também uma excelente técnica narrativa, bem visível na forma como, através da alternância de planos e de enquadramentos, torna mais agradável a leitura das cenas expositivas, em que o argumentista tenta passar o máximo de informação através dos diálogos, como acontece, por exemplo, entre as páginas 70 e 75. Pena que a sua morte tenha privado a Bonelli de um dos seus melhores desenhadores, privando-nos a nós leitores, do prazer de (re)ver um grande desenhador, que conseguiu manter intacto até ao fim da vida, todo o seu talento gráfico.
(“Tex nº 452: A Última Diligência”, de Boselli e Sommer, Mythos Editora, 114 pags, 2,90 €)
Versão alargada do texto publicado no Diário As Beiras de 27/02/2010