domingo, 27 de dezembro de 2009

24: Jack Bauer interroga o Pai Natal



Descobri esta paródia à série 24, muito apropriada a esta época do ano, no You Tube. Não sei que foi o autor da montagem , mas fez um bom trabalho! Divirtam-se e matem saudades do Jack Bauer até chegar a próxima temporada do 24.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

FELIZ NATAL!


Imagem de Frank Le Gall

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Marvels


Por entre os milhares de comics de super-heróis que as grandes editoras publicam todos os anos nos E.U.A., poucos são os que sobrevivem ao passar do tempo. Obras feitas de forma (quase) industrial, cumprem, melhor ou pior, a sua função de entreter o leitor durante alguns minutos, caindo depois no esquecimento, de onde raros são resgatados.
Claro que há excepções. Séries como o “Sandman”, de Neil Gaiman, “Dark Knight Returns”, de Frank Miller, ou Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons, marcaram decisivamente, para o bem e para o mal, os comics americanos das últimas décadas. “Marvels”, o livro que motiva este texto faz parte dessas excepções de luxo. Fabulosa viagem aos tempos gloriosos da “silver age” e uma nova reinterpretação dos mitos que deram fama à então “casa das Ideias”, “Marvels” está finalmente disponível em português de Portugal, 15 anos após a sua publicação original.
Escrita por Kurt Busiek e pintada por Alex Ross, “Marvels” analisa as implicações inerentes à existência dos super-heróis num mundo real. O tema em si não é inovador. Alan Moore, em “Watchmen”tinha partido de uma premissa semelhante para concluir da impossibilidade da coexistência entre os super-heróis e o resto da humanidade. Isto é, ao humanizar os super-heróis, pôs em causa a sua própria razão de ser. Busiek opta por uma abordagem diferente e, embora integre os super-heróis na nossa realidade quotidiana de forma realista, não os pretende humanizar. Pelo contrário. Em “Marvels”, os super-heróis são vistos como deuses que desceram à terra, com os cidadãos de New York apenas a assistirem, sem poderem intervir, aos momentos decisivos em que a história do universo Marvel está a ser escrita.

Uma história que nos é apresentada do ponto de vista do homem comum, que assiste impotente à chegada dos novos deuses que caminham sobre a Terra. Esse homem comum é Phil Sheldon, um repórter fotográfico, testemunha visual da maioria dos acontecimentos que, desde 1939 até aos anos 70, marcaram a vida de milhões de leitores das revistas da Marvel.
Um ponto de vista tanto mais curioso quanto é exactamente o inverso do utilizado por Stan Lee no início da década de 60, no que se convencionou chamar a “revolução Marvel”, em que, pela primeira vez, os super-heróis foram apresentados como indivíduos atormentados pelos mesmos problemas do cidadão comum, capazes dos mesmos tipos de sentimentos e emoções. Essa espécie de transposição dos temas das telenovelas para o universo dos super-heróis atingiu o seu auge na série “Homem-Aranha”, um super-herói que, além de combater o crime, tem também de se preocupar com os exames, com a namorada, com as contas por pagar e com a precária saúde da sua frágil Tia May. Um esquema que já há muito atingiu a exaustão, resultando cada vez mais patética a vã tentativa de dar uma ilusão de mudança num universo em que todos os esquemas já foram tentados e em que qualquer morte, ou mudança, nunca é definitiva…
A opção em “Marvels” é outra. As histórias escolhidas por Busiek fazem já parte da história dos comics americanos. São lendas de um tempo que passou e Busiek trata-as como tal, sem as procurar desmontar, nem explicar. O repórter fotográfico que narra a história desempenha um mero papel de relator dos acontecimentos, através de cujo testemunho nos é dada a imagem dos heróis da Marvel. Daí que seja acertada a escolha de um repórter fotográfico que não procura interpretar os factos, apenas registá-los. Assim, dos super-heróis, apenas nos ficam as fotografias de Sheldon e as notícias dos jornais. Nunca sabemos o que eles pensam, nem de onde vêm. São “maravilhas” que pairam nos céus de New York e cuja existência vai marcar a vida dos seus habitantes.
Exercício nostálgico de inegável fascínio, principalmente para quem acompanhou mês a mês os acontecimentos retratados, “Marvels” consegue aliar a dimensão mítica a um grande realismo, o que não é fácil de compatibilizar. Grande parte do mérito vai para Alex Ross, um artista de grande talento, cujas imagens pintadas de forma hiper-realista dão vida e consistência aos heróis da Marvel.
Esta obra histórica, termina sintomaticamente com a morte de Gwen Stacy, a inocente namorada do Homem-Aranha, símbolo de uma idade da inocência que terminou, para dar lugar aos novos tempos. Tempos em que os heróis clássicos cedem a vez a psicopatas violentos como o Punisher ou o Wolverine, para referir só dois dos mais populares heróis actuais da Marvel.
A edição da Bdmania está à altura da importância de “Marvels”. Bem impressa e bem traduzida, numa encadernação de capa dura, a edição apenas peca na escolha dos extras. Bem mais interessante do que a reprodução das notícias do “Daily Bugle”, teria sido publicar os esboços de Alex Ross e as fotografias que este usou como modelo para a sua versão hiper-realista dos super-heróis.
(“Marvels”, de Kurt Busiek e Alex Ross, BdMania, 240 pags, 19,99 €)
Versão alargada de um texto publicado no Diário As Beiras de 19/12/2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Dellamorte Dellamore


Definitivamente, os zombies estão na moda, tanto no cinema, como na Banda Desenhada, onde a série Walking Dead, de Robert Kirkman, ao fim de 6 anos de publicação mensal continua a ser uma das mais interessantes séries em publicação no mercado americano. Depois de ver Zombieland, uma comédia com zombies, quase tão divertida como o inesquecível Shaun of the Dead, lembrei-me de recuperar um texto que escrevi em 2005 sobre um clássico dos filmes de zombies, publicado originalmente num site sobre cinema cujo nome não recordo e mais tarde reproduzido no fórum do site Tex.br pelo meu amigo José Carlos Francisco.
Esse clássico é Dellamorte Dellamore, (distribuído nos EUA com o título bem menos sujestivo de Cemetery Man) obra-prima de Michele Soavi, realizador sub-valorizado e discípulo inspirado de Dario Argento, mestre do “giallo” de quem Soavi foi assistente em Tenebrae e Phenomena, que aqui transpõe o universo peculiar de Ticianno Sclavi, o criador de Dylan Dog, para o grande ecrã.

Como refere António Pascoalinho, no catálogo da XVI edição do Fantasporto: “Michele Soavi não procurou afastar-se dos modelos associados ao gore: a morte, o sangue, o demónio, o Além, valores imutáveis de um imaginário que o público não dispensa neste género de filmes. O que ressalta à vista na sua obra é a vontade de adicionar poesia onde ela não deveria existir: na morte, no medo, nos crimes violentos. Através de um imenso cuidado estético. E, acima de tudo, com Arte. Como se Soavi não se considerasse um inventor. Limitando-se a fazer um trabalho idêntico a outros já existentes, mas reinventando-o. À sua maneira. E com alguns laivos de verdadeiro criador.”
Esse cuidado estético e a vontade de reinventar um género perfeitamente codificado, salientados por Pascoalinho, estão presentes em Dellamorte Dellamore, adaptação cinematográfica de um romance considerado “infilmável” de Sclavi, que através dos seus argumentos para a série Dylan Dog se afirmou como um dos mais singulares argumentistas italianos. Personagem deprimida e envolvida numa aura de mistério, Sclavi, que raramente dá entrevistas e muito menos se deixa fotografar, ganhou um prémio literário aos dezanove anos. Esse reconhecimento precoce do seu talento não lhe serviu de muito em termos de carreira pois, como refere “o público recebeu os seus livros com uma indiferença entusiástica”, o que o obrigou a trabalhar como jornalista, revisor e argumentista de BD para poder sobreviver, enquanto os seus romances, entre os quais Dellamorte Dellamore, aguardavam por um editor disposto a publicá-los.
É precisamente enquanto argumentista de BD que Sclavi vai iniciar uma colaboração com a editora Bonelli cujos “fumetti” (nome dado em Itália à BD) são um verdadeiro fenómeno editorial e sociológico. O segredo do sucesso de Bonelli, de que a série Tex é o exemplo mais representativo, consiste em fornecer aos leitores edições baratas, em pequeno formato, com muitas páginas, lançadas a um ritmo mensal. Essa receita, que consegue aliar uma produção quase industrial, com capacidade de lançar mais de mil páginas por mês, a uma qualidade muito razoável, nasceu como reacção ao boom da TV privada nos anos 70, que veio provocar uma crise no mercado da BD. Face a uma televisão que oferecia programas gratuitos para todos os gostos, Bonelli optou por propor aos seus leitores verdadeiras novelas gráficas de quase cem páginas, capazes de prender a atenção do leitor durante uma hora, ou mais, que vivem muito da notável capacidade produtiva de uma série de argumentistas de talento, como Sclavi aliado a um leque mais alargado de desenhadores.
Assim, além de criar Gli Aristocratici, com Alfredo Castelli, Sclavi vai assinar argumentos para outras séries da editora, como Zagor, Ken Parker e Mister No, antes de criar Dylan Dog em 1986, abrindo assim as portas do sucesso com o carismático detective do paranormal, cujas aventuras estiveram disponíveis em português através das edições mensais da editora brasileira Mythos .
Antes de criar Dylan Dog, Sclavi tinha proposto a Bonelli recuperar os personagens de Dellamorte Dellamore e transformá-los em heróis de uma série de BD, sendo Dellamorte uma espécie de estudo preparatório para Dylan Dog, com quem compartilha o aspecto físico e a forma de vestir. Essa ideia acabou por não se concretizar no papel, mas acontecerá de forma indirecta no cinema, graças ao filme de Michele Soavi a partir do romance, entretanto transformado num best-seller graças à popularidade que Dylan Dog trouxe a Sclavi. Depois de ter servido de modelo para Dylan Dog, o actor inglês Rupert Everett vai ser o protagonista de Dellamorte Dellamore, o filme que motiva esta crónica e que reflecte com sucesso o objectivo de Soavi de transpôr para o grande ecrã o universo único de Tiziano Sclavi.
Filme em que uma grande beleza se alia a um humor (muito) negro, Dellamorte Dellamore narra o dia-a-dia de Francesco Dellamorte, o melancólico guarda do cemitério da aldeia de Bufarolla que, além de enterrar os mortos, tem ainda que os matar definitivamente com um tiro na cabeça, quando eles ressuscitam como zombies sete dias depois, o que faz com um tédio e uma fleuma típicas de um funcionário público. Isolado do mundo, com a excepção do seu companheiro Gnaghi, um mudo com um atraso mental, que é personagem recorrente dos romances de Sclavi, e do seu amigo (imaginário?) Franco, com quem tem longas conversas telefónicas, Dellamorte vai descobrir a mulher da sua vida na pele de uma viúva (belíssima Anna Falchi) que acabará por matar, convencido que ela se tinha transformado também num zombie, depois de ter sido mordida pelo marido, recém-saído do túmulo em cima do qual ela fazia amor com Francesco.
História a meio caminho entre o drama psicológico e a comédia surreal, com contornos góticos, Dellamorte Dellamore (título que reflecte os dois temas sempre presentes na obra de Sclavi e na própria vida, o amor e a morte) é um filme visualmente arrebatador onde Michele Soavi, tal como Sclavi costuma fazer nas histórias de Dylan Dog, não poupa nas citações. Assim, na cena em que Francesco e a viúva, com os rostos envoltos num véu, se beijam no ossário, a imagem remete para o quadro Os Amantes de Magritte, do mesmo modo que a fonte no meio do cemitério é uma miniatura da Ilha dos Mortos de Arnold Brocklin.
Filme absolutamente recomendável e obra com todas as características para se tornar (como se tornou) um filme de culto, Dellamorte Dellamore não está (naturalmente) editado em Portugal. Para além da edição italiana em zona 2, existe também uma edição espanhola com o título (bastante ridículo) de Mi Novia es un Zombie, mas que tem a grande vantagem de se encontrar com facilidade em qualquer canto de Espanha, nos saldos do El Corte Inglês a um preço muito acessível.
Aqui fica a sugestão para que descubram o trabalho singular de Tiziano Sclavi, quer através do filme de Soavi quer das BDs de Dylan Dog, o detective do paranormal a que Rupert Everett deu a cara tanto na BD como (indirectamente) no cinema.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Asteroid Fighters



Num mercado como o nacional onde, face à ausência de uma indústria de Banda Desenhada em Portugal, abundam as propostas de carácter autoral, não se pode falar propriamente em Banda Desenhada alternativa. Ao ser mais a regra do que a excepção, a BD alternativa deixa por não poder ser vista como tal, pois quase não há um “mainstream” em relação ao qual se possam apresentar alternativas.
Nos últimos tempos, tem-se notado por parte de alguns autores nacionais uma preocupação em alterar esse “status quo”, produzindo histórias de acção, deliberadamente comerciais e que vão buscar inspiração ao que se vai fazendo lá fora, no mundo dos comics americanos e do mangá japonês. Lançadas no último Festival da Amadora, edições como “Bang Bang Ultimate”, de Hugo Teixeira, “BRK” de Filipe Andrade e Filipe Pina e “Asteroid Fighters”, de Rui Lacas, são um reflexo evidente desta tendência.
E é precisamente o último destes títulos, “ Asteroid Fighters”, que motiva este artigo. Trabalho com que Rui Lacas regressa à BD depois do sucesso do álbum anterior, “Obrigada, Patrão”, editado em França e premiado como Melhor Álbum Português no Festival da Amadora de 2008, “Asteroid Fighters” troca o registo neo-realista de “Obrigada, Patrão” e dos álbuns anteriores de Lacas, pela acção e aventura, na melhor tradição dos comics americanos de super-heróis, ou do mangá japonês, com a série “Akira” à cabeça, com mutantes super-poderosos, ameaças globais e vilões maléficos e misteriosos.

Passada num futuro próximo, em que o maior perigo que a humanidade, finalmente unida, enfrenta é a constante chuva de asteróides que se abate sobre a Terra, o que levou à criação de uma força especial para os destruir, os Asteroid Fighters, a história criada por Lacas remete-nos para séries televisivas como “Heroes”, ou filmes como “Armagedon”, tudo revisto pelo humor de Lacas, que transformou alguns dos seus colegas do Lisbon Studio em personagens de BD.
Primeiro de uma série prevista para seis volumes, “O Início” apresenta uma grande diferença em relação ao 1º volume de “BRK”. É que aqui acontecem montes de coisas, numa narrativa “sempre a abrir”, que consegue transmitir bastante informação de forma eficaz. A outra grande diferença é que Lacas (felizmente) não se leva tão a sério como Andrade e Pina em “BRK”.
“Asteroid Fighters” é um divertimento inconsequente, mas também não pretende ser muito mais do que isso. E a conseguida história, que revisita vários clichés do género, está muito bem contada, graças ao traço personalizado de Lacas, tão à vontade nas cenas mais espectaculares, como no tratamento das expressões faciais das personagens. E há ainda o modo peculiar (e divertido) como Lacas usa as onomatopeias, bem patente na explosão que vitima Pepito.
Parabéns à Asa, que desta vez decidiu não esperar pela edição francesa para publicar este trabalho de Rui Lacas, e nós cá ficamos à espera do 2º volume, para saber se Takeshi vai conseguir salvar a Terra e os Asteroid Fighters conseguem descobrir algo mais sobre o misterioso inimigo que os está a tentar aniquilar.
(“Asteroid Fighters: Tomo 1 – O Início”, de Rui Lacas, Edições Asa, 78 pags, 15,0 €)

Texto publicado originalmente no Diário As Beiras de 12/12/2009

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Lá Fora I - Scalped



Desde o início que optei por publicar na minha coluna no Diário As Beiras textos apenas sobre edições nacionais e/ou de autores portugueses. Aqui no blog, não tendo essas limitações irei escrever sobre algumas das edições estrangeiras que for lendo. Da BD franco-belga ao mangá, passando pelos comics americanos, a ideia é falar dos livros cuja leitura me motivar uma reflexão.
E para começar temos este Scalped, série criada por Jason Aaron e R. M. Guéra, que, para mim, é actualmente a melhor série editada pela Vertigo e uma das melhores revisitações do género policial feita em Banda Desenhada.

Se, durante muitos anos a Vertigo, o ramo adulto da editora DC Comics foi associada às séries de fantasia, muito por via do sucesso de Sandman, gradualmente aquela “imprint” foi alargando os seus horizontes temáticos, através de séries como 100 Bullets, Y, the Last Man, ou DMZ. Catalogado por alguns como Neo Western Noir, Scalped está mais próximo do policial negro do que uma série como Preacher, de Garth Ennis e Steve Dillon, essa sim uma homenagem óbvia à mitologia do velho Oeste e, se dúvidas houvesse sobre a filiação de Scalped no policial negro, basta reparar no primeiro nome do herói, que é o mesmo do escritor Dashiel Hammet, criador do detective Sam Spade.

Scalped, cujo 1º nº foi publicado em Janeiro de 2007, tem como cenário Prairie Rose, uma reserva índia fictícia no Dakota Sul, controlada pelo Chefe Lincoln Red Crow, um antigo militante radical pela causa índia que se transformou gradualmente num político corrupto e num mafioso, que controla a polícia local e se prepara para abrir um casino.
É a essa terra degradada, no limiar da pobreza, cuja população procura esquecer no alcool e na droga um futuro sem esperança, que regressa Dashiell Bad Horse, o (anti)herói desta série, como agente inflitrado do FBI junto de Red Crow. Filho de Gina Bad Horse, antiga companheira de armas e ex-amante de Red Crow, Dash foi encarregue desta arriscada missão pelo agente Nitz, do FBI, que pretende destruir a qualquer preço Red Crow, que considera responsável directo pela morte de dois dos seus colegas, abatidos pelos radicais do grupo de Red Crow e Bad Horse na década de 70. Se as estas personagens juntarmos Diesel Engine Fillenworth, um branco com 1/16 avos de sangue índio, que nunca conseguiu ser aceite pelos índios, Catcher, um ex-professor universitário e ex-radical em contacto com os espíritos, Carol, a filha de Red Crow, viciada em sexo e heroina, e os Hmongs, um gang de criminosos de origem asiática, com quem Red Crow vai ser obrigado a entrar em guerra, temos um cocktail verdadeiramente explosivo, cujos ingredientes Jason Aaron tem sabido manejar com grande mestria.
Optando por uma narrativa nada linear, em que sucessivos saltos temporais nos ajudam a perceber o que se está a passar e a motivação das personagens, Aaron cria uma intriga cativante, repleta de personagens com as quais acabamos por criar alguma empatia, apesar dos seus muitos, e mais do que óbvios, defeitos.
Há quem tenha comparado Scalped à série televisiva Os Sopranos e, se virmos que Red Crow, tal como Toni Soprano é alguém com quem o público se identifica apesar de ser um assassino e um criminoso, essa comparação não é nada descabida, mesmo que Scalped tenha bastante mais acção e violência do que a habitual num episódio dos Sopranos.

Ao longo dos 33 nºs já publicados, o principal desenhador da série tem sido R. M. Guéra, um artista nascido na ex-Jugoslávia e a viver em Espanha, com alguns trabalhos já publicados no mercado franco-belga,onde desenhou os últimos álbuns da série Le Lievre de Mars e criou a série Howard Blake, ambas editadas pela Glenat. Com um estilo realista que lembra Giraud e o Herman dos anos 60 e 70, Guéra faz um excelente trabalho, graças a um traço pormenorizado, extremamente eficaz nas cenas de acção, bem servido pelas cores sombrias de Giulia Brusco, que ajudam a criar o ambiente pretendido, mesmo que por vezes seja difícil apreciar os detalhes do desenho de Guéra, no meio de tantas sombras. A partir do nº 12, alguns números são ilustrados por outros desenhadores, como John Paul Leon, Davide Furnò e Francesco Francavilla, pois era praticamente impossível manter o ritmo de publicação mensal, com Guéra como único desenhador, mas a verdade é que nenhum dos artistas convidados faz esquecer Guéra…

Apesar das fracas vendas da revista mensal, as 5 recolhas já editadas até ao momento têm vendido bastante bem e as vendas vão em crescendo, muito por efeito do “passa a palavra”. O sucesso de Scalped levou ainda a que Aaron fosse convidado pela Marvel para escrever histórias de Wolverine, Ghost Rider e Punisher, enquanto Guéra ilustrou uma história escrita por Quentin Tarantino como complemento ao filme Inglorious Basterds, que saiu na revista Playboy americana, aquando do lançamento do filme.
E fala-se já em transformar Scalped numa série de televisão e, caso esse rumor se concretize, estações como a HBO ou a Showtime seriam as ideais, até porque não tenho grandes dúvidas que os fãs de séries como The Wire, ou Os Sopranos não iriam ficar indiferentes a Scalped.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Um Gato como o do Simon


É relativamente comum uma série de tiras cómicas ser transposta para a animação, face ao seu sucesso nos jornais, ou em livro. Dos “Peanuts”, a “Garfield”, ou a “Dilbert”, não faltam exemplos do género. O que já é menos vulgar é uma série de animação, nascida na Internet, dar origem a um livro de tiras, mas foi isso que aconteceu com “O Gato de Simon” de Simon Tofield, acabado de chegar às livrarias portuguesas numa edição da Objectiva, uma divisão literária nacional do grupo editorial espanhol Santillana.
Lançado em simultâneo em mais de 16 países, mesmo a tempo do Natal, “O Gato de Simon” tem tudo para ser um grande sucesso de vendas, também em Portugal, sobretudo tendo em conta o extraordinário sucesso das animações originais, que já tiveram mais de 45 milhões de visionamentos na Internet.
Animador na Tandem Films, um premiado estúdio de animação londrino, Simon Tofield teve a ideia para o primeiro filme de Simon’s Cat, “Cat Man Do”, uma vez em que o seu gato Hug o acordou, pondo-se a saltar em cima da cama e a miar, tentando chamar a atenção do dono para que já não tinha comida. Esse foi o ponto de partida para o filme, animado inteiramente pelo próprio Simon numa mesa gráfica, usando o programa Adobe Flash. Quanto o resultado final chegou ao You Tube, teve mais de 3 milhões de visionamentos em pouco tempo e ganhou o prémio para “Melhor Comédia” nos British Animation Awards, de 2008. Seguiram-se mais 4 filmes de animação, o último dos quais, “Hot Spot”, foi lançado em finais de Setembro deste ano, pouco antes da saída do livro.
Da passagem da animação para as tiras de BD, o “Gato do Simon” (a série ficou com esse nome, porque Simon não sabia que nome lhe dar e como todos os amigos se referiam ao protagonista dos filmes como “o gato do Simon”, essa designação acabou por pegar) manteve as suas principais características, graças ao traço muito simples, mas de grande expressividade e eficácia de Toliver e ao facto de ser uma série sem quaisquer diálogos, em que a acção é contada apenas com o recurso à imagem. Se algumas das histórias criadas para a animação são recontadas em tiras (embora em alguns casos, com perda de eficácia), as tiras permitem alargar o universo da personagem tirando-o de casa e levando-o para o jardim, onde interage com os pássaros e com uma daquelas estatuetas de um anão de jardim, que o gato do Simon trata como se tivesse vida, nas mais conseguidas tiras do livro, a par com algumas extremamente simples, como a tira que escolhi para ilustrar este artigo, em que o gato de Simon estraçalha alegremente um saco de papel, depois de se enfiar dentro dele.

A principal diferença entre o gato do Simon e outros felinos famosos, como o Garfield, ou o Mooch da série “Mutts”, é que o gato de Simon não fala nem temos acesso aos seus pensamentos, o que não nos impede de perceber exactamente o que ele quer, sobretudo se também tivermos um gato em casa…
Mas a força do “Gato de Simon” é também a sua limitação. É uma série feita por alguém que adora gatos (além do Hugh, Simon Tofield tem mais 3 gatos) com que as pessoas que têm gatos se identificam imediatamente, mas que deixa razoavelmente indiferente, ou admirado com a passividade de Simon e com vontade de meter o gato no micro-ondas, aqueles que não gostam de gatos.
No meu caso, como feliz tratador de um casal de gatos (já há muito que perdi as ilusões de que sou dono deles) devo confessar que adorei os filmes e o livro de Simon Tofield, que me parece a prenda de Natal ideal para quem tiver gatos.


(“O Gato do Simon”, de Simon Tofield, Objectiva, 238 pags, 14 €
http://www.simonscat.com)

Texto originalmente publicado no Diário As Beiras de 5/12/2009

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Mort Cinder, ou a morte que nunca deixa de o ser


Considerado muito justamente como o maior argumentista de Banda Desenhada de língua espanhola, Hector German Oesterheld, ao longo da sua carreira de quase três décadas (carreira extremamente produtiva, mas que foi tragicamente encurtada pela repressão da ditadura militar argentina) escreveu mais de cento e sessenta histórias para cinquenta desenhadores diferentes. Conciliando a quantidade com a qualidade na sua escrita, Oesterheld soube sempre encontrar desenhadores à altura do seu talento, conseguindo criar as parcerias adequadas a cada projecto.
De Solano Lopez em El Eternauta, passando por Arturo Del Castillo em Randall, até uma colaboração com Dino Battaglia em Capitan Caribe, foram inúmeros os desenhadores com quem Oesterheld colaborou, mas as suas parcerias mais importantes foram as que estabeleceu com Hugo Pratt e Alberto Breccia. Dois artistas que se vão encontrar em Buenos Aires, como professores na Escola Panamericana de Arte, instituição que vai formar artistas como José Muñoz, ou Eduardo Risso, entre (muitos) outros talentos argentinos e que foi criada em 1956, no mesmo ano em que foi abortado um golpe militar que pretendia recolocar Peron no poder.

Além da experiência de docência, os dois desenhadores atrás referidos vão igualmente partilhar os serviços de Oesterheld, chegando até Breccia a desenhar alguns episódios de Ernie Pike, uma das séries que ajudou a cimentar a fama de Pratt. Mas a primeira colaboração entre Alberto Breccia e Oesterheld deu-se em 1957, com Sherlock Time, um policial com toques de ficção científica e de fantástico, protagonizado por um detective que podia viajar no tempo (o nome, Sherlock Time, não engana), em que Breccia conseguiu criar um ambiente estranho e fantástico, sem no entanto abdicar de uma representação minuciosa e realista da cidade de Buenos Aires, onde se desenrola a intriga. Ou seja, algo que encontramos também em El Eternauta, em que os leitores argentinos descobriram um espaço quotidiano que bem conheciam, a cidade de Buenos Aires, retratada com rigor fotográfico por Solano Lopéz, perturbado por fenómenos extraordinários (no caso de El Eternauta, uma invasão extraterrestre).
José Muñoz , discípulo de Breccia, define assim o traço do mestre em Sherlock Time: “em cada toque de pincel, frio, preciso e rigoroso, encontramos o tempo fechado definitivo de cada desenho. Esse pincel frio, queima”.

Em 1962, ano em que um golpe militar pretende pôr fim à actividade da guerrilha argentina, iniciada três anos antes, começa a ser publicada na revista MISTERIX aquela que é considerada a obra-prima da dupla Breccia/Oesterheld: a série Mort Cinder. Mort Cinder, como o definiu o próprio Oesterheld: “é a morte que nunca deixa de o ser (...) um herói que morre e ressuscita, e no qual há angústia e tortura". Esta capacidade de morrer e viver de novo, permite à personagem atravessar diferentes épocas e locais da história, dos quais guarda uma memória latente. O filósofo argentino Óscar Masotta, compara Mort Cinder a o Fantasma, personagem criado por Lee Falk, salientado o que os separa: “na verdade, Mort Cinder, o “homem das mil e uma mortes”, é uma interessante inversão do esquema que rege a personagem de Lee Falk, o ‘‘fantasma que caminha”, o único herói de BD que morre... (no Fantasma, o personagem não morre, só morrem os homens que vestem o fato de Fantasma, que passa de gerações em, gerações; em Mort Cinder o homem é imortal, só morrem as suas múltiplas incarnações históricas).”

Pessoalmente, prefiro antes ver Mort Cinder, como a sequência lógica de outras personagens criadas anteriormente por Oesterheld, pois tal como Sherlock Time, ou o Juan Salvo de El Eternauta, Mort Cinder é mais um herói criado por Oesterheld que está liberto das leis do espaço e do tempo.
Se no caso de Juan Salvo e Sherlock Time essas viagens são feitas com recursos a máquinas sofisticadas, Mort Cinder viaja através da sua memória e das recordações que ela encerra. Recordações que são normalmente espoletadas por um qualquer objecto, cuja história está ligada a uma anterior vivência de Cinder. De modo a facilitar o reviver dessas experiências, Oesterheld criou como co-protagonista e narrador da série, a personagem de Ezra Winston, um antiquário amigo de Mort, que tem as feições do próprio Alberto Breccia, numa perturbante antevisão do que seria o rosto envelhecido do desenhador, algo que Breccia já tinha tentado antes com Eustáquio Mendez, personagem que aparece en El Ídolo, o segundo episódio de Sherlock Time, e cujas parecenças com Ezra Winston e com o próprio Breccia, são tão evidentes como inegáveis. Já o rosto de Mort Cinder, que Breccia demorou a encontrar, razão que obrigou Oesterheld a retardar a entrada em cena de Cinder no episódio inicial, Os Olhos de Chumbo, é inspirado em Horácio Lalia, um futebolista que mais tarde se tornaria também ele desenhador, tendo um dos seus álbuns, com adaptações de Edgar Alan Poe (O Gato Preto), sido publicado em Portugal pelas Edições Asa.

Demos outra vez a palavra a Oesterheld, desta vez partindo de um texto escrito em 1972, em que a personagem de Ezra Wiston se define na primeira pessoa e tenta explicar quem é Mort Cinder: “as coisas velhas ficam impregnadas da vida que as envolveu. Mas muito poucos conseguem captar as angústias, as emoções que ficaram aprisionadas, fósseis invisíveis, dentro das coisas velhas. Sou uma dessas raras pessoas, daí me ter tornado antiquário. Também sinto fascinação pelos templos, não importa a religião. Tantas preces, tanta dor, tanta esperança, dormem nas paredes de um templo. Também me fascinam as armas, carregadas para sempre com a morte que alguma vez deram. Morte talvez criminosa, talvez libertadora.
Mort Cinder consegue captar melhor, muito melhor do que eu ou qualquer outro, toda essa vida cristalizada para sempre. Mort Cinder é talvez essa vida que ficou incrustada na matéria inerte (nunca direi morte) das coisas. E digo talvez, porque nem eu, que vivi tanto tempo com ele, sei dizer quem é Mort Cinder”.

A partir deste esquema narrativo simples, mas engenhoso e cheio de potencialidades, a série foi sendo construída, de forma não muito planeada e quase mecânica, com o tema dos primeiros episódios a ser estruturado à medida que eram escritos, o que justifica alguns desequilíbrios. Mas Oesterheld não se preocupava em esconder o jogo, pois declarou numa célebre entrevista a Carlos Trillo e Guilhermo Saccomano, publicada em Portugal na revista Tintin, que: “as faltas e indefinições de Mort Cinder foram mais tarde elogiadas como uma descoberta acertada. Mas mentiria se afirmasse ter sido intencional. Na realidade, esse êxito, se assim se pode considerar, foi resultado das circunstâncias”.

Este carácter experimental está igualmente patente nos desenhos de Breccia, que, quando começou a desenhar a série, “não podia saber o que devia fazer, nem tão pouco comecei a ver o que os outros faziam”, optando por um estilo próprio, em que o jogo contrastante de luz e sombras e as figuras angulosas se adaptavam ao clima específico de cada história, ajudando a criar um ambiente de permanente tensão, com Breccia a variar as técnicas conforme as necessidades das histórias, como é o caso dos dois episódios passados na prisão, em que o trabalho de tramas de Breccia é absolutamente notável. Do mesmo modo, a iluminação que Breccia dá às pranchas, digna do melhor cinema expressionista, vai tornando-se cada vez mais dramática ao longo da série, fruto do próprio estado de espírito do desenhador, cuja primeira mulher estava à morte. Para esse efeito dramático contribui, e muito, a troca do “pincel frio que queima”, usado em Sherlock Time, pela lamina que rasga a pele e as sombras, mais exactamente, laminas de barbear utilizadas como espátulas, aspecto em que Breccia foi pioneiro, tal como o seu jogo de sombras em negativo e o preto e branco de alto contraste, influenciou vários desenhadores, de José Muñoz, a Frank Miller, em Sin City.

Em 1964, após terem sido publicadas mais de duzentas pranchas, correspondentes a dez episódios, em que Mort Cinder nos guiou da construção da Torre de Babel até às trincheiras da I Guerra Mundial, passando pela Batalha das Termópilas, em que 300 espartanos retardaram o avanço do poderoso exército de Xerxes (episódio que, décadas depois, seria novamente adaptado à BD por Frank Miller, em 300) a série chega ao fim. O episódio dedicado à batalha das Termópilas é mesmo o último e nele, Mort Cinder, único sobrevivente das tropas espartanas, é deixado ir em paz pelo próprio Xerxes que, impressionado com a sua coragem lhe diz: “vai-te homem de Esparta... tu és mais Rei do que eu, és rei de ti próprio...” Um último diálogo, que poderia funcionar como epitáfio do próprio Oesterheld, “desaparecido” em 1977 e que, provavelmente durante o ano de 1978, terá pago com a vida o ter querido ser Rei de si próprio, numa terra onde os militares não tinham a nobreza de espírito do Rei Xerxes...
O grande investimento artístico e humano dos seus autores foi recompensado, pois não só Mort Cinder é tida como uma das séries mais importantes da BD mundial, como o próprio Breccia a considerava, muito justamente, como a melhor coisa que fizera.
Em Portugal, onde a obra de Oesterheld tem sido insuficientemente divulgada, Mort Cinder é honrosa excepção. O episódio O Vitral, foi publicado em 1976 no jornal Lobo Mau, numa época em que, na Argentina, Oesterheld, ligado à guerrilha montonera, já tinha entrado na clandestinidade. O resto da série está parcialmente editada em álbum pelas Edições Asa, que lançou apenas Os Olhos de Chumbo, o primeiro dos dois volumes da magnífica edição da Vertige Graphic, que publica pela primeira vez no seu formato original, todos os episódios desta magnífica série, ponto mais alto da frutuosa colaboração entre Alberto Breccia e Hector German Oesterheld.
Versão integral de um texto publicado (com alguns cortes, por questões de espaço) no catálogo da Exposição Oesterheld, o Homem como Unidade de Medida, organizada pelo Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem da Amadora, por ocasião do Amadora BD 2009